Alguns efeitos inesperados da redução artificial dos juros

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6265-desempregoOnde estamos hoje

Em julho, entramos no sexto ano desta crise, embora vários setores da mídia continuem determinados a chamar a atual situação de “recuperação”.  Mero auto-engano.  O mundo está em uma crise contínua há meia década.  Enormes doses de Valium e Prozac — as quais os bancos centrais tecnicamente rotulam de “afrouxamento quantitativo” (quantitative easing, ou simplesmente QE) — foram ministradas para acalmar os nervos e dar a falsa impressão de cura.

Um QE, obviamente, nada mais é do que a simples criação de novas quantias de unidades monetárias digitais.  Tais dígitos eletrônicos inicialmente inundam os bancos com reservas extras que podem ser utilizadas livremente, as quais são majoritariamente injetadas nos mercados financeiros.  O propósito dos bancos centrais ao criar dinheiro é manipular os preços dos ativos e as taxas de juros.  O QE é uma droga extremamente perigosa.  É um alucinógeno.  Pode fazer o paciente se sentir melhor por algum tempo, mas é incapaz de curar a doença.  Com efeito, deixa o paciente ainda mais doente.  A economia global sofre de graves distorções que são o resultado de vários anos de crédito artificialmente barato: bancos excessivamente alavancados, endividamento excessivo, preços dos ativos inflacionados, capital direcionado para investimentos insustentáveis.  E baratear ainda mais o crédito — e manipular com ainda mais intensidade os preços dos ativos — é justamente o objetivo do QE.  O QE serve apenas para estimular mais endividamentos e aumentar a oferta monetária.

O QE e taxas de juros forçosamente baixas são uma política equivalente ao crack.  Ela vicia.  Não há fim a ela.

Sempre que os bancos centrais mundiais anunciam novas rodadas de afrouxamento quantitativo — seja na forma de mais redução de juros ou de monetização direta dos títulos da dívida pública —, a motivação é a mesma.  Tais medidas possuem um perceptível toque de desespero, algo que não passa despercebido do público.  Toda política monetária expansionista sempre será, em última instância, ineficaz.  Ou, para ser mais exato, ela será eficaz apenas em postergar um pouco mais a necessária correção e liquidação dos enormes desequilíbrios gerados pelas políticas monetárias expansionistas anteriores, o que significa que ela estará contribuindo apenas para que o inevitável ajuste final seja ainda mais doloroso.  Trata-se de uma medida contraproducente e destrutiva.  E certamente não está ajudando a restaurar a confiança.

Ainda assim, vários acadêmicos e vários comentaristas econômicos não desistem.  Segundo eles, se o Banco Central Europeu houvesse cortado 0,5 pontos percentuais em vez de 0,25, o mercado poderia ter reagido de maneira mais otimista.  Talvez isso teria restaurado a confiança.  É mesmo?  Os principais bancos centrais mundiais — BCE, Fed e Banco da Inglaterra — já estão hoje submetendo suas economias a taxas de juros abaixo de 1%.  Quão realista é pressupor que a chave para a recuperação está em mais um corte de mais 0,25 pontos percentuais?

Aos entusiastas das infindáveis políticas de ‘estímulo’ monetário restou apenas se agarrar com crescente vigor à sua própria retórica.  O que mais eles podem fazer?  Sua purpurinada visão de mundo — segundo a qual em um sistema de ilimitado poder de criação de dinheiro fiduciário o banco central sempre poderá gerar mais “demanda agregada” ao simplesmente fornecer mais dinheiro ao sistema bancário — está na lona.

O dinheiro nunca é neutro

Que a política monetária dos principais bancos centrais mundiais fosse acabar neste beco sem saída não é nenhuma surpresa para quem conhece a teoria econômica.  Foi surpresa apenas para aqueles que possuem a simplista e limitada visão convencional sobre estímulos monetários.  Frases do tipo “o BCE está tentando desobstruir o fluxo de crédito na zona do euro” servem apenas para mascarar a complexidade dos reais efeitos da criação de dinheiro e da manipulação dos juros, e fazem com que as recorrentes políticas de estímulo monetário pareçam não apenas inócuas como também francamente positivas.  Afinal, quem poderia ser contra o nobre propósito de desobstruir o crédito, fornecer liquidez aos mercados e estimular a atividade econômica?

Uma das principais contribuições de Ludwig von Mises à teoria monetária foi a sua demonstração categórica danão-neutralidade da moeda.  Ele demonstrou que alterações no poder de compra do dinheiro fazem com que os preços de diferentes bens e serviços se alterem de uma maneira que não é simultânea e nem uniforme, e que é incorreto afirmar que alterações na quantidade de dinheiro geram mudanças proporcionais e simultâneas no ‘nível’ de preços.

Sendo assim, um estímulo monetário nunca afetará o PIB e a inflação — dois agregados estatísticos aos quais a mídia e os economistas atribuem avassaladora importância — de maneira direta e exclusiva.  Todo e qualquer estímulo monetário irá afetar e alterar várias outras variáveis também, e esses outros efeitos possuem consequências bem mais profundas: a política monetária sempre irá alteras os preços relativos, sempre irá alterar o direcionamento dos investimentos, sempre irá alterar a maneira como recursos escassos são alocados na economia, e sempre irá alterar a distribuição de renda e riqueza.  Todo estímulo monetário sempre irá criar ganhadores e perdedores.  Inevitavelmente.

Os defensores das políticas de expansão monetária alegam que todos se beneficiam do “estímulo econômico” que elas geram.  No entanto, o dinheiro que é criado não chega a todas as pessoas da economia ao mesmo tempo; sendo assim, ele não afeta os preços de maneira uniforme e simultânea.  Como regra geral, aqueles que primeiro recebem este dinheiro recém-criado se beneficiam à custa daqueles que o recebem por último.  Aqueles que, na cadeia da distribuição deste dinheiro, estão localizados mais próximos do produtor de dinheiro (o banco central) serão sempre os ganhadores.  Estes normalmente são os bancos e todos os participantes do mercado financeiro.  Eles podem gastar o dinheiro recém-criado antes que este se disperse por toda a economia e eleve os preços.  Sendo assim, eles podem gastar um dinheiro cujo poder de compra ainda não foi afetado.  Aqueles que recebem este dinheiro por último veem seu poder de compra ser erodido, pois, quando sua renda nominal aumenta, os preços já subiram há mais tempo.

No presente estágio do mega-ciclo de crédito, mais acomodação monetária irá apenas ajudar os bancos a conceder mais empréstimos insustentáveis e a financiar ativos que já estão com preços artificialmente altos.  Várias ‘bolhas’ — que são resultado de expansões monetárias passadas — continuarão sendo formadas, sustentadas e infladas ainda mais.  As forças de mercado — que, caso contrário, iriam ajustar os preços, realocar os ativos e trazer a economia de volta ao equilíbrio — são desta forma completamente debilitadas.

Uma das consequências inesperadas da manipulação dos juros

A expansão monetária feita pelo banco central em conjunto com o sistema bancário é uma forma de intervenção de mercado.  E, como toda forma de intervenção, cria uma série de consequências inesperadas, muitas das quais são difíceis de serem identificadas claramente, e são ainda mais difíceis de serem quantificadas.  Mas são extremamente reais.  A seguir, um exemplo real e bastante perceptível.

Tanto nos EUA quanto na Europa está havendo uma tendência de se substituir atendentes nos caixas de supermercados por máquinas de autoatendimento que permitem aos fregueses escanear o código de barra de seus produtos e fazer o pagamento por conta própria.  Trata-se de mais um caso de trabalho humano sendo substituído por máquinas.  Uma análise superficial diria que isso é um mero sinal dos tempos, uma consequência inevitável do progresso tecnológico.  No entanto, tal fenômeno não é apenas uma consequência da tecnologia.  A substituição de trabalho humano por máquinas que, no fundo, geram mais trabalho do que comodidade para os consumidores é resultado de um cálculo econômico feito pelo empreendedor — neste caso, pelos gerentes e administradores dos supermercados.

O gasto com a aquisição das máquinas, o capital que o administrador do supermercado deixa de investir em outras áreas para poder adquirir as máquinas, os juros que ele tem de pagar sobre os empréstimos contraídos para adquirir as máquinas, e todos os potenciais prejuízos futuros decorrentes do manuseio inapropriado das máquinas pelos clientes do supermercado — ou até mesmo o possível aumento do roubo de itens do supermercado em decorrência da menor quantidade de empregados para vigiar os clientes — terão de ser comparados à redução de custo permitida pela redução do emprego de pessoas nos caixas do supermercado.

No atual cenário de juros forçosamente baixos, este cálculo econômico parece estar a favor das máquinas.  Afinal, quanto menores os juros, maior o incentivo para se contrair empréstimos para financiar a aquisição de máquinas para substituir o trabalho humano.  Este desemprego diretamente causado pela manipulação dos juros é certamente uma consequência inesperada de uma política monetária expansionista.

Seria assim em um genuíno livre mercado?  A resposta mais curta é: impossível saber.  Mas o que podemos saber com certeza é que, no atual arranjo artificialmente criado pelos bancos centrais, não é economicamente racional manter pessoas trabalhando como caixas de supermercado, pois é muito mais barato substituí-las por máquinas de autoatendimento.

Acrescente a isso as crescentes regulamentações exigidas pelo estado de bem-estar social, os encargos sociais e trabalhistas, as leis de salário mínimo, as licenças de maternidade e de paternidade, e todas as outras leis que visam à “proteção do trabalhador”, e vemos claramente como os governos estão elevando o custo de empregar pessoas e encarecendo a mão-de-obra humana ao mesmo tempo em que a política monetária dos bancos centrais em favor de taxas de juros cada vez menores e de empréstimos cada vez mais fartos e baratos estão facilitando cada vez mais a aquisição de máquinas.  Sob qualquer ângulo que se veja, os trabalhadores estão sendo expulsos do mercado pelos governos.  A legislação para protegê-los serve apenas para encarecer sua mão-de-obra ao passo que esforços para baratear o crédito tornam o investimento em máquinas uma alternativa bem mais barata.

Não me entenda mal: o padrão de vida de uma sociedade é sobejamente elevado quando se aumenta o uso de capital produtivo (máquinas) por trabalhador.  E para continuarmos elevando nosso padrão de vida, temos de continuar aumentando essa proporção de capital por trabalhador.  E máquinas de autoatendimento em supermercado sem dúvida representam um aumento da quantidade de capital na economia.  Aumentar a quantidade de capital é a única maneira de se expandir a produtividade humana.  Mas há uma maneira certa e uma maneira errada de se fazer isso.  A maneira correta é por meio da poupança, da abstenção do consumo, o que libera recursos reais de determinados setores da economia (aqueles mais próximos do consumo final) e os direciona para ser utilizados como capital em investimentos voltados para o longo prazo. [Veja mais detalhes deste processo aqui].  O quanto deve ser investido em capital não é algo que deve ser dependente das decisões de burocratas de bancos centrais e suas manipulações monetárias; deve ser o resultado de decisões voluntárias de poupança.

Estas decisões de livre mercado podem perfeitamente reduzir a velocidade de investimentos em capital, mas esta menor velocidade seria totalmente apropriada.  A estrutura produtiva resultante deste arranjo voluntário seria muito mais estável e sustentável.  Por outro lado, investimentos estimulados pela criação de dinheiro — e não pela poupança — levam a uma alocação insustentável de capital, justamente a causa primária dos ciclos econômicos.  O simples fato de grandes setores de uma economia dependerem de contínuas doses de estímulo monetário para serem sustentados em sua dimensão atual já é uma clara indicação das graves distorções geradas pelas políticas monetárias.  Quanto mais disso o sistema pode aguentar?

Conclusão

É uma enorme ingenuidade — ou um sinal de incrível arrogância — acreditar que bancos centrais podem antecipar todas as consequências de suas intervenções monetárias.  Dizer que elas são benéficas para todos é algo totalmente incorreto.

Uma política monetária expansionista pode lograr apenas um efeito: estimular mais pessoas a tomarem mais empréstimos e a se endividarem ainda mais.  A possível elevação do PIB que tal medida gera tem como efeito colateral o aumento da alavancagem dos bancos e o aumento da concessão de empréstimos de risco.  O atual martírio vivenciado pelo mundo foi gerado justamente por este tipo de estímulo monetário, o qual ocorreu por vários anos seguidos.  Foi isso que gerou a crise financeira, bancária e de endividamento.  No momento, as autoridades estão combatendo uma crise bancária estimulando os bancos a incorrerem em ainda mais riscos.  É impossível você reduzir juros e expandir a oferta monetária e esperar que isso leve a uma desalavancagem e a uma melhoria da situação do sistema bancário.

É particularmente bizarro ver economistas afirmando que novas intervenções dos bancos centrais — tanto na forma de mais redução de juros quanto na forma da compra direta de títulos dos governos — irá restaurar a confiança no sistema.  Será que esses especialistas realmente acreditam que o público irá se sentir mais confiante caso bancos já excessivamente alavancados cresçam ainda mais rapidamente com a ajuda das impressoras dos bancos centrais?  Será que a incerteza acerca do excessivo endividamento dos governos será abolida caso os bancos centrais prometam sustentar estes governos por meio de uma política que se resume a nada mais do que imprimir dinheiro e comprar títulos do governo — algo que simplesmente estimula o aumento dos déficits?  Seria isso uma solução ou apenas um adiamento politicamente conveniente do inevitável acerto de contas?

Isso não pode terminar bem.

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