Análise de classes: perspectivas marxista e austríaca

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Embora o socialismo e o comunismo tenham sido completamente desacreditados, muitos ainda sustentam que, pelo menos, as teorias sociais de Karl Marx permanecem relevantes. Embora reconheçam a contragosto que a economia marxista, em particular a teoria do valor-trabalho, não é original nem correta, os defensores de Marx afirmam que sua análise social – em particular, sua teoria da luta de classes – continua sendo uma verdadeira contribuição científica.

As famosas e dramáticas linhas iniciais do Manifesto Comunista afirmam corajosamente que

     A história de toda a sociedade até aqui é a história de lutas de classes. [Homem] livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, burgueses de corporação e oficial, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em constante oposição uns aos outros, travaram uma luta ininterrupta, ora oculta ora aberta….

A “característica distintiva” do capitalismo, dizem, é que, em contraste com o “arranjo complicado da sociedade em várias ordens”, a “múltipla gradação de posição social” que caracterizou todas as “épocas anteriores da história”, a

     época da burguesia, distingue-se, contudo, por ter simplificado as oposições de classes. A sociedade toda cinde-se, cada vez mais, em dois grandes campos inimigos, em duas grandes classes que diretamente se enfrentam: burguesia e proletariado.

De acordo com as notas de Engels à edição de 1888, “burgueses” referem-se a “capitalistas, proprietários dos meios de produção social e empregadores de trabalhadores assalariados”. Os proletários são definidos como aqueles “da classe dos trabalhadores assalariados modernos que, não tendo meios de produção próprios, são reduzidos a vender sua força de trabalho para viver”.

O processo pelo qual o capitalismo simplifica os antagonismos de classe é apresentado em detalhes no primeiro volume de O Capital. A burguesia é capaz de colocar trabalhador contra trabalhador, mantendo assim os salários em níveis de subsistência. E

     As camadas médias – pequenos comerciantes, pequenos fabricantes, artesãos, camponeses – combatem a burguesia porque esta compromete sua existência como camadas médias….

Sua luta, no entanto, é em vão: eles são incapazes de competir com as grandes fábricas estabelecidas pelos capitalistas. Vão à falência e “transformam-se em proletários”. Assim, diz Marx, “as outras classes perecem e desaparecem diante da indústria moderna”. Com o tempo, restam apenas duas classes: a burguesia, que “usurpa e monopoliza todas as vantagens”, e o proletariado, para quem “a massa da miséria, da opressão, da servidão, da degeneração, [e] a exploração” continua a crescer. Eventualmente, essa classe se tornará tão numerosa, e sua miséria tão severa, que eles se levantarão e “expropriarão os expropriadores”.

Na superfície, a definição de classe de Marx é simples e clara. No entanto, suas implicações, como o próprio Marx percebeu, são devastadoras para sua análise. Marx supunha que aqueles que possuíam ou controlavam os meios de produção eram os ricos e poderosos, enquanto aqueles que vendiam sua força de trabalho o faziam porque eram fracos e pobres. Embora reconhecesse que esses eram tipos “puros”, Marx acreditava que, à medida que o sistema capitalista seguisse seu curso e os operadores independentes de classe baixa e média fossem gradualmente eliminados, o sistema de classes se tornaria cada vez mais puro.

De fato, a distinção entre burguesia e proletariado não é clara nem simples. Em primeiro lugar, a caracterização do proletariado como aqueles que trabalham para ganhar a vida e da burguesia como aqueles que contratam outros para trabalhar para eles tem uma implicação óbvia e insidiosa: apenas um grupo na sociedade, o proletariado, realmente realiza algum trabalho produtivo, enquanto a burguesia vive ou “explora” os trabalhadores. Marx reduz, assim, o trabalho ao trabalho físico, encobrindo o fato de que a renda é obtida pela prestação de serviços a outros, e que o trabalho físico é apenas uma maneira de fazer isso. No entanto, a distinção definidora de Marx entre trabalhador e proprietário foi um golpe de mestre da propaganda política.

Além disso, a taxonomia de Marx leva a algumas peculiaridades bastante interessantes. Como a burguesia é aquela que possui os meios de produção e emprega trabalhadores assalariados, isso colocaria o dono da padaria da esquina ou de uma oficina de automóveis que emprega um ou dois ajudantes na mesma classe de Donald Trump, John D. Rockefeller e Andrew Carnegie. De acordo com a definição de Marx, todos são membros da burguesia ou da classe dominante. É claro que é duvidoso que o primeiro frequente os mesmos círculos que o segundo. Da mesma forma, uma celebridade do esporte como Michael Jordan, que ganha muitos milhões de dólares por ano, seria um membro do proletariado oprimido, já que ele “foi reduzido a vender sua força de trabalho”.

De acordo com a taxonomia marxista, Michael Jordan estaria na mesma classe do faxineiro noturno que aspira tapetes de escritório e esvazia cestos de lixo para viver. Também é interessante que um médico que tem seu próprio consultório particular e que emprega uma recepcionista ou uma enfermeira é um membro da burguesia. Mas se ele vende seu consultório para assumir uma posição mais lucrativa como cirurgião-chefe em um grande hospital, ele é reduzido às fileiras do proletariado.

E como classificar um modesto burocrata do governo? Uma vez que Marx afirma que “o executivo do Estado moderno é apenas um comitê para administrar os assuntos comuns de toda a burguesia”, e como o burocrata não possui as ferramentas de produção nem emprega trabalhadores assalariados, ele parece ser um empregado da burguesia e, portanto, um membro do proletariado. Mas como sua renda é derivada de impostos extraídos dos trabalhadores, pode-se argumentar logicamente que ele é um membro da burguesia exploradora.

Finalmente, Marx frequentemente descreve a burguesia apenas em termos de sua propriedade dos meios de produção. Mas isso faria de um carpinteiro dono de um martelo um membro da classe dominante.

Marx quase certamente recusaria esse tipo de crítica, mas ela é totalmente consistente com sua distinção entre proletariado e burguesia. O próprio absurdo da distinção só evidencia a inadequação dessa caracterização de classes no capitalismo.

Além disso, Marx previu que o capitalismo simplificaria o sistema de classes, espremendo a classe média, deixando apenas as “duas grandes classes antagônicas”. De fato, o próprio Marx reconheceu que não apenas o sistema de classes sob o capitalismo havia se tornado mais complicado, mas também que, longe de ser eliminado, a classe média estava realmente ficando maior. Em suas Teorias da Mais-Valia, Marx comete até a temeridade de repreender Ricardo por não observar essa tendência. “O que [Ricardo] deixou de mencionar foi o aumento contínuo do número das classes médias (…) situadas a meio caminho entre os trabalhadores de um lado e os capitalistas do outro”.

E em seu comentário sobre Thomas Malthus na mesma obra, Marx comenta que a

    A maior esperança – que ele mesmo considera mais ou menos utópica – é que a classe média cresça em tamanho e que a classe trabalhadora forme uma proporção cada vez menor da população total (mesmo que cresça em números absolutos). Essa é, de fato, a tendência da sociedade burguesa.

Embora isso contrarie exatamente as conclusões que o próprio Marx tira de sua própria análise, é exatamente o que se esperaria no livre mercado. Sob o capitalismo, há uma tendência natural de as empresas investirem em áreas com baixos salários, elevando essas taxas a um nível proporcional ao de outras áreas e induzindo trabalhadores em empregos de baixa remuneração a migrar para lá. Da mesma forma, à medida que os empresários investem em áreas onde os lucros são altos, a produção se expande e os preços e lucros nessas áreas tendem a cair. Assim, longe de espremer a classe média, o livre mercado tende a eliminar os extremos de riqueza e pobreza, aumentando assim o tamanho da classe média.

Marx tinha consciência da inadequação de sua análise de classe e, no último capítulo do terceiro e último volume de O Capital, volta ao problema. O capítulo intitulado “As classes” não passa de um fragmento, mas as intenções de Marx são claras. ” A próxima pergunta a ser respondida”, escreve ele, “é esta: o que vem a ser uma classe? E é claro que isso decorre da resposta a esta outra pergunta: o que faz com que assalariados, capitalistas e proprietários da terra constituam as três grandes classes sociais? ” À primeira vista, ele continua:

       na identidade entre rendimentos e fontes de rendimento. Trata-se de três grandes grupos sociais, cujas partes integrantes, os indivíduos que os formam, vivem respectivamente de salário, lucro e renda da terra, da valorização de sua força de trabalho, de seu capital e de sua propriedade fundiária.

Mas isso seria um erro, porque há uma “fragmentação infinita dos interesses e das posições em que a divisão social do trabalho separa tanto os trabalhadores quanto os capitalistas e os proprietários fundiários”.

O que constitui, então, uma classe? Curiosamente, Marx não dá resposta. Em vez disso, no final do manuscrito, Engels, que compilou o volume três das notas de Marx, inseriu a linha “Aqui se interrompe o manuscrito”.

Os seguidores de Marx estão claramente envergonhados com o fato de que, como disse George Lukacs, “a principal obra de Marx se interrompe no momento em que ele está prestes a embarcar na definição de classe”. Tom Bottomore, ao observar que “a teoria das classes sociais está no centro do pensamento de Marx”, reconhece que “a teoria das classes sociais modernas não foi exposta sistematicamente por Marx”.

Stanislav Ossowski observou que, uma vez que o papel de “classe” é tão central para a análise de Marx, “é surpreendente não encontrar uma definição desse conceito (…) em qualquer lugar das obras de Marx ou Engels”. O que eles forneceram, argumenta, não é tanto uma definição, mas uma condição necessária para uma definição. Assim como definir um cavalo como um animal com quatro patas é incompleto (já que todos os cavalos têm quatro patas, mas nem todos os animais com quatro patas são cavalos), definir classe em termos de interesses econômicos compartilhados ou uma relação particular com os meios de produção é necessário, mas não suficiente, para uma definição completa. Ossowski parece estar argumentando que, embora todos os membros da burguesia possuam uma ferramenta de produção, nem todos que possuem uma ferramenta são membros; Todos os proletários vendem seu trabalho, mas nem todo aquele que vende seu trabalho pertence ao proletariado.

Curiosamente, Ossowski sustenta que “Marx deixou o problema de produzir uma definição do conceito de classe social para muito mais tarde. O manuscrito do terceiro volume de sua magnum opus, Das Kapital, se interrrompe dramaticamente no momento em que Marx estava prestes a responder à pergunta: “O que constitui uma classe?” Infelizmente, conclui Ossowski, “não sabemos que resposta ele teria dado se a morte não tivesse interrompido seu trabalho”.

Na verdade, porém, não foi a morte que interrompeu a obra de Marx: o fragmento sobre as classes foi escrito antes da publicação inicial do primeiro volume de O Capital, em 1867. Marx morreu em 1883. O fato de ele nunca ter retornado ao fragmento sugere fortemente que ele não tinha uma teoria de classe satisfatória. A colocação do fragmento no final do volume três cumpriu, no entanto, um importante objetivo estratégico: insinuou que Marx tinha uma resposta, mas não conseguiu colocá-la no papel antes de morrer. A colocação do fragmento por Engels pode, portanto, ser vista como uma tentativa deliberada de encobrir o fato de que Marx não tinha uma definição válida e defensável de classe.

A análise de classe em si não se originou com Marx, mas pode ser rastreada pelo menos até Adam Smith. Em contraste com a doutrina marxista, que assume que tanto o mercado quanto o governo são instituições coercitivas, Smith e seus seguidores sustentavam que, enquanto o governo, com seu monopólio do uso da força, era coercitivo, o mercado era uma instituição voluntária. No mercado, o único “poder” é o poder de oferecer uma troca, e como qualquer um pode rejeitar uma oferta, toda troca deve ser em benefício de todas as partes envolvidas.

As implicações desse insight são profundas. A única maneira de ganhar dinheiro no livre mercado é produzir o que os outros querem. Quanto melhor se serve aos outros, mais lucro obtém; assim, o mercado está alicerçado no benefício mútuo e na harmonia de interesses. Essa harmonia, no entanto, se transforma em conflito sempre que o governo intervém. Se uma empresa consegue fazer com que o governo mantenha os concorrentes fora do mercado, os clientes não têm mais a capacidade de gastar seu dinheiro em outro lugar. Então, e só então, as empresas estão em posição de aumentar os preços ou produzir produtos de má qualidade.

No que podemos chamar de análise de classe libertária, a exploração de fato existe, mas é a exploração que resulta da diferença entre preços de livre mercado e preços regulados. Assim, a exploração não se restringe aos capitalistas, como é o caso na análise marxista. Os capitalistas podem explorar os consumidores através de uma tarifa protetora, e os trabalhadores podem explorar os capitalistas através do salário mínimo. Neste último caso, alguns trabalhadores também estariam explorando outros, pois a riqueza é transferida dos trabalhadores que perdem seus empregos como resultado do salário mínimo para aqueles que permanecem empregados.

A questão crucial é, portanto, quem irá provavelmente controlar o governo? A questão é realmente empírica e deve ser decidida caso a caso. Como regra geral, porém, aqueles com maior probabilidade de controlar o governo são aqueles com o acesso mais fácil, o que geralmente significa, como Adam Smith observou, os “ricos e poderosos”.

Smith escreveu A Riqueza das Nações para refutar a doutrina do mercantilismo. Sob o mercantilismo, privilégios monopolistas são concedidos a algumas empresas favorecidas, permitindo-lhes vender a preços exorbitantes, enquanto tarifas são decretadas para excluir a concorrência estrangeira. Quando uma nação elimina as importações, ela precisa estabelecer suas próprias colônias exclusivas para obter matérias-primas, de modo que o poder estatal é naturalmente usado para esculpir e policiar o sistema colonial resultante.

Smith argumenta que o sistema mercantilista prejudica não apenas os trabalhadores das colônias, mas também os trabalhadores da pátria-mãe. Seus únicos beneficiários, ele acrescenta, eram os “ricos e poderosos”. Os colonos são obrigados a comprar de comerciantes na pátria-mãe, a preços de monopólio, e os trabalhadores no país de origem são tributados para custear os custos de administração do império.

O efeito do mercantilismo, sustentava Smith, era que “o interesse de uma pequena ordem de homens em um país” era promovido às custas “dos interesses de todas as outras ordens de homens naquele país e de todas as outras ordens de homens em todos os outros países”. Smith propôs a substituição do mercantilismo por um sistema de livre comércio. Isso logicamente implicava no abandono de todo o império colonial, e Smith não se furtou a tirar essa conclusão.

Afirmações semelhantes podem ser encontradas nos escritos de outros pensadores liberais primitivos como J.B. Say, Charles Comte, Charles Donoyer e Frederic Bastiat na França; John Trenchard, Thomas Gordon (autores das Cato’s Letters, tão influentes nas colônias americanas antes da Revolução), Richard Cobden e John Bright na Inglaterra; e John Calhoun e William Leggett nos Estados Unidos. Leggett, por exemplo, escreveu sobre a cidade de Nova York no início do século XIX: “Nem uma estrada pode ser aberta, nem uma ponte pode ser construída, nem um canal pode ser escavado, sem que uma carta de privilégios exclusivos deva ser concedida para esse fim… A barganha e a condução de privilégios é assunto dos nossos legisladores.”

A distinção entre mercado e governo permaneceu no centro do pensamento libertário. Ludwig von Mises, por exemplo, escreveu que “nossa época é cheia de sérios conflitos de interesses de grupos econômicos. Mas esses conflitos não são inerentes ao funcionamento de uma economia capitalista sem entraves. Eles são o resultado necessário de políticas governamentais que interferem no funcionamento do mercado. Eles são provocados pelo fato de que a humanidade voltou aos privilégios de grupo e, portanto, a um novo sistema de castas.” Embora essa distinção entre harmonia e conflito, entre benefício mútuo e benefício de um indivíduo ou grupo em detrimento de outro, entre mercado e governo, seja sistematicamente ignorada na análise marxista, está no centro da análise de classe libertária. É lamentável que a análise de classes esteja tão intimamente associada ao marxismo, pois isso significou que a análise de classe libertária foi amplamente ignorada. Isso é lamentável, pois é uma ferramenta sofisticada e poderosa para analisar a sociedade.

 

 

 

Artigo original aqui

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A análise de classe marxista vs. a análise de classe austríaca

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