Aula XX – O Problema dos Bens Públicos

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Em 1849, o economista belga Gustave de Molinari argumentou do seguinte modo: se os bens são mais bem providos aos consumidores sob o regime da livre competição do que sob produção monopolística, esse raciocínio deve se aplicar para todos os bens econômicos, sem exceção, “ou os princípios sobre os quais a ciência econômica está baseada são inválidos”.[1] Contudo, houve e ainda há economistas que suspendem a validade dessa lei, afirmando que existem certas classes de bens que seriam mais bem providos pelo governo, em regime de monopólio. Tais bens são denominados “bens públicos”.

Define-se bem público como aquele cujo gozo é não exclusivo, isto é, aquele que pode ser usufruído por pessoas que não ajudaram a financiá-lo.[2] Seria o caso, por exemplo, de uma patrulha policial, que fornece segurança também às casas que não pagaram por ela; de um corpo de bombeiros, que apaga o fogo na residência vizinha mesmo que esta não o financie, para salvaguardar do incêndio os moradores pagantes; de um farol, que ilumina certa extensão do mar para qualquer navio que passe por ali;[3] e assim por diante. Diz-se que nesses casos há uma “externalidade positiva” (efeito benéfico de uma ação particular sobre a vida de terceiros) ou o chamado “consumo não rival”, conceito praticamente idêntico ao de consumo não exclusivo.

Para completar, os teóricos dos bens públicos argumentam que esses bens não seriam fornecidos pelo mercado na melhor qualidade ou quantidade possível, já que não haveria o interesse em os produzir para que não contratantes (os chamados caronas ou free riders) também usufruam. Donde concluem que esses bens deveriam ser providos pelo Estado, com recursos públicos, e assim todos os paguem e deles gozem.

 

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Antes de destrincharmos a teoria dos bens públicos, a fim de averiguar a sua razoabilidade, cumpre-nos oferecer uma clara conceituação de bem econômico em geral, a partir do que nos será possível verificar se faz sentido a ulterior distinção entre público e privado.

Bem econômico é tudo aquilo que é escasso, controlável e engendra uma utilidade. “As coisas capazes de serem colocadas em nexo causal com a satisfação de nossas necessidades humanas”, explicará Carl Menger, “denominam-se utilidades; denominam-se bens”, conclui, “na medida em que reconhecemos esse nexo causal e temos a possibilidade e capacidade de utilizar as referidas coisas para satisfazer efetivamente às nossas necessidades.”[4]

O atributo da escassez é necessário porque, se um bem não é escasso, ou seja, se o seu uso por alguém, em qualquer tempo, não impede ou prejudica o seu uso por quaisquer outras pessoas, então esse bem nunca será objeto de troca ou de economia, e poderá ser usado por todos ilimitadamente. É o que acontece com o ar e os memes, por exemplo.[5]

Pelo mesmo motivo, ele deve ser controlável, do contrário não poderia ser objeto de uso ou de troca, e logo não faria parte do âmbito da economia. Exemplos de bens desse tipo são o Sol e outros seres humanos, aos quais podemos apenas nos adaptar mas nunca controlar diretamente.[6]

Por fim, diz-se que um bem econômico engendra uma utilidade porque isso é uma implicação direta do fato de o bem ser usado. O uso de um bem pressupõe a sua utilidade, do contrário ele não seria utilizado.

Assim, pode-se notar que a definição de bem econômico coincide perfeitamente com a de propriedade, a qual abordaremos em aula posterior. Trata-se de dois aspectos de um mesmo fenômeno. Para um juiz, um carro é uma propriedade privada; para um economista, trata-se de um bem econômico. Ambos estão certos, porque toda propriedade é um bem econômico, e todo bem econômico, uma propriedade. Desvios dessa regra geram absurdos tanto no raciocínio como na realidade.

 

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Dada a definição de bem econômico, faz sentido considerar sua divisão em bens públicos e privados?

Em primeiro lugar, é preciso ter claro que o conceito de bem econômico indica algo subjetivo, pois não há nada na estrutura físico-química dos objetos por que possam ser considerados bens econômicos. Uma coisa é considerada como tal a partir da visão de um agente. De um ponto de vista puramente material, objetivo e ontológico, nenhum bem existe, apenas objetos. Dessa maneira, nenhum critério objetivo pode ser determinado para se fazer a distinção entre bens públicos e privados.

O critério eleito pelos teóricos dos bens públicos acaba por ser, portanto, subjetivo, e é aquele de que falamos acima: o da não exclusividade ou não rivalidade do consumo. Se um bem é constituído de tal maneira que o seu usufruto não possa excluir aqueles que não pagaram por ele, então estamos falando de um bem público. No entanto, se adotarmos essa definição, muitos bens considerados totalmente privados acabam se tornando públicos bastando para isso que olhemos mais de perto para a realidade. Hoppe nos oferece vários exemplos: o desodorante que um passageiro usa que beneficia os outros usuários do transporte público; jardins bem cuidados que agradam à vista de transeuntes e valorizam os imóveis circunjacentes; investimentos em desenvolvimento pessoal que tornam alguém mais agradável e benfazejo; tudo isso vindo a beneficiar pessoas que em nada contribuíram. Deveriam também esses produtos e serviços ser considerados bens públicos?[7]

Há outrossim bens em geral tidos como públicos que poderiam muito bem se tornar privados. Ruas, ferrovias, praias, correios, rios e outros são comumente fornecidos e cuidados pelo Estado, mas pode-se conceber que seu uso se torne restrito, o que, segundo o critério dos teóricos dos bens públicos, torná-los-ia privados. Como conclui Hoppe: “Todos os bens são mais ou menos privados ou públicos e podem mudar – e constantemente mudam – o seu grau de publicidade ou privacidade, na medida em que mudam os valores e avaliações das pessoas e a própria composição da população”.[8]

Observa-se, desse modo, que esse critério de classificação é arbitrário e nos conduz mais a inconveniências do que a soluções.

Contudo, há ainda outro problema: a conclusão de que os bens públicos, admitindo-se que existam, devem ser providos pelo Estado não se segue da premissa segundo a qual o mercado não poderia provê-los a contento. Aqui há dois erros. Primeiro, que os teóricos dos bens públicos estão querendo derivar uma proposição normativa (“o Estado deve prover”) a partir de uma descritiva (“alguns bens seriam mais bem providos pelo Estado”).[9] Segundo, que consideram que exista eficiência subótima do mercado.[10]

Quanto ao primeiro erro, é evidente que, mesmo se os bens fossem de fato mais bem providos pelo governo, disso não se poderia concluir que eles deveriam ser providos pelo governo, já que o governo é uma instituição criminosa e isso significaria que seria justo iniciar agressão para fornecer tais bens. De todo jeito, trata-se de uma discussão ética, e não econômica, que teremos mais adiante.

Quanto ao outro erro, não se pode com efeito conceber uma atuação subótima do mercado haja vista que este se constitui de pessoas agindo, e pessoas sempre agem conforme seu melhor entendimento. Logo, o mercado é sempre o melhor possível, dados o nível atual de consciência da humanidade e o seu presente acúmulo de capital e conhecimento. Qualquer intervenção do governo no mercado, ao invés de melhorar a situação, que já é precária, irá somente torná-la pior. Porque, como já explicamos na Aula XV, uma intervenção implica um desvio daquilo que suas vítimas considerariam o melhor curso de ação para elas, e desse modo engendra um prejuízo ex ante.

Sobre essa visão equívoca acerca do mercado, diz Murray Rothbard (citado por Hoppe):

[…] essa perspectiva deturpa completamente a forma pela qual a ciência econômica assegura que a ação no livre mercado é sempre ótima. É ótima, não do ponto de vista das visões de ética individual de um economista, mas a partir das ações voluntárias livres de todos os participantes e atendendo às necessidades manifestadas livremente pelos consumidores. Por essa razão, a intervenção do governo afastará sempre e necessariamente os indivíduos desse ponto ótimo.[11]

Além disso, mesmo que admitamos que o Estado pudesse prover os bens tidos como públicos, ainda enfrentaríamos o problema do cálculo econômico, explicado na décima primeira aula. Sucede que o governo não se pauta no critério dos lucros e prejuízos para guiar suas decisões alocacionais. Desse modo, ele jamais poderia saber se sua produção está sendo eficiente ou não e em que medida. Seria uma produtividade às cegas e baseada, como vemos na prática, em critérios políticos. Se o mercado não pode provê-los suficientemente, o governo menos ainda.

 

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Mantém-se, portanto, inconcusso o argumento de Molinari. No que tange aos princípios da razão e à observação da experiência, não existe bem algum que não possa e não deva ser provido pelo mercado.

 

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Notas

[1] Molinari, Da produção de segurança, p. 21.

[2] Hoppe, Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo, p. 183.

[3] Idem, p. 184.

[4] Menger, Princípios de Economia Política, p. 33.

[5] Donde se conclui que não pode existir “propriedade intelectual”.

[6] Até mesmo um escravo pode escolher entre obedecer ou se rebelar.

[7] Hoppe, idem, p. 185.

[8] Idem, p. 186.

[9] Idem, p. 188.

[10] Idem, p. 192.

[11] Idem, p. 192.

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