Aula XXVI – A Ética Argumentativa de Hans-Hermann Hoppe

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Como vimos, nenhuma ética proposta desde a Antiguidade superou o problema do ser/dever ser ou conseguiu isentar-se do uso de juízos de valor. Apenas em 1988 o problema da ética foi definitivamente resolvido pelo filósofo e economista alemão Hans-Hermann Hoppe, em um curto artigo de poucas páginas intitulado “A justiça da eficiência econômica”.

Nesse artigo, Hoppe destaca que o problema da Economia Política é o de saber qual ordem social engendra a maior geração de riqueza possível, e o da Filosofia Política, qual ordem a mais justa. E Hoppe demonstra que uma ordem social baseada na instituição da propriedade privada é tanto a mais próspera quanto a única justa.

A primeira demonstração pode ser feita do seguinte modo. Existem três, e somente três, formas de criar riqueza: apropriação, produção e troca. Pela apropriação, toma-se algo previamente sem dono, de modo que agora se tem mais do que antes: mais valor passou a existir. Exemplos dessa forma são colher uma fruta, usar um pedaço de terra, pegar um objeto abandonado etc. Pela produção, transforma-se algo em algo de maior valor, como quando se faz um bolo ou se produz um carro. Pela troca, ou contrato, duas partes decidem dar uma à outra aquilo que desejam; recebendo ambas aquilo que valorizavam mais (do contrário, não trocariam), ambas aumentam sua riqueza.[1] Essas são as três formas pelas quais se cria valor, e todas pressupõem que os indivíduos envolvidos nessas atividades gozam da propriedade (i.e., do controle exclusivo) sobre os bens que apropriam, produzem e trocam. Agora suponha que um poder maligno institua uma lei por força da qual esses indivíduos não poderão mais usufruir 100% de suas operações criadoras de riqueza, mas 0% disso. Nada do que eles apropriarem, produzirem ou trocarem será deles. Seria razoável admitir que, nesse cenário, o incentivo para se envolver nessas operações seria reduzido? Ora, se o produto do meu trabalho não é mais meu, para que o esforço? Certamente, haveria menor produção de riqueza nesse cenário (sem contar o valor negativo, o dano, causado pelas expropriações ordenadas por lei). Em contraste, se se tiver o direito de se manterem 100% dos frutos do trabalho, o incentivo para as atividades produtivas será maior. Daí uma ordem social baseada em direitos absolutos de propriedade privada ser promotora da maior criação de riqueza possível.

Em seguida, Hoppe demonstra a priori por que essa ordem social é, além disso, a única justa. Seu argumento é como segue.

Ele inicia destacando que conflitos só existem porque vivemos em um mundo de escassez, isto é, em um mundo em que não dispomos de bens em quantidade e qualidade ilimitadas para todos. Assim, o uso de um bem hoje por A impede o uso do mesmo bem hoje por B, ou o seu uso amanhã por A novamente, caso seja um bem perecível, por exemplo. Para usar uma expressão do próprio Hoppe: eu não posso comer um bolo hoje e comer o mesmo bolo amanhã.

Apenas na medida em que bens são escassos é que a ciência econômica e a ética são necessárias. Do mesmo modo, como a resposta ao problema da economia política deve ser formulada em termos de regras restringindo os usos possíveis de recursos enquanto recursos escassos, a filosofia política também deve responder em termos de direitos de propriedade. A fim de evitar conflitos inescapáveis, ela deve formular um conjunto de regras atribuindo direitos de controle exclusivo sobre bens escassos.[2]

Note-se, em adição, que o reconhecimento da escassez não deriva de uma observação empírica da realidade, mas constitui um pressuposto fundamental da praxeologia, como explicamos nas aulas sobre as primeiras implicações do conceito de ação: se não houvesse escassez, e todos os bens estivessem disponíveis infinitamente, então todos os fins seriam atingidos aqui e agora, sem trabalho e sem espera, e a máxima plenitude seria gozada – a perfeição de um estado divino. Em outras palavras, o fato de que o homem age significa que ele não tem tudo o que ele quer aqui e agora, e vive portanto sempre em busca do próximo bem.

Mas o reconhecimento da escassez, prossegue Hoppe, não é suficiente para se estabelecerem normas de atribuição de títulos de propriedade. Pois tal condição em que vive o homem é compartilhada com os animais, de modo que pode haver conflitos interespecíficos sobre os recursos. Não obstante, ninguém consideraria propor normas sociais para lesmas e chimpanzés. Um conflito com semelhantes seres, lembra Hoppe, é um problema tecnológico, e não ético. “Porque para que se torne um problema ético, é também necessário que os agentes conflitantes sejam capazes, em princípio, de argumentar”.[3] E Hoppe conclui, a esta altura, que qualquer problema dentro da Filosofia Política só poderia ser resolvido no curso de uma argumentação, e que negar isso seria autocontraditório. “Não se pode argumentar que não se pode argumentar”.[4] Pode-se, ele continua, discordar, mas mesmo aí haveria no mínimo a concordância de que há uma discordância. Esse raciocínio que desvenda as leis intrínsecas da argumentação Hoppe o deve aos filósofos contemporâneos Karl-Otto Apel e Jürgen Habermas, e foi chamado de o “a priori da argumentação”.[5]

Porém, continua Hoppe, uma argumentação não se dá no espaço vazio, não consiste de “proposições flutuando no ar”, mas exige a presença de uma pessoa real argumentando. Trata-se de uma ação humana, de uma atividade concreta. Isso significa que toda atividade argumentativa pressupõe – como uma norma intersubjetivamente fixada – o controle exclusivo do sujeito sobre o próprio corpo.

[…] reconhecer que argumentação é uma forma de ação e que não consiste de sons flutuando no ar implica o reconhecimento do fato de que toda argumentação requer que uma pessoa tenha controle exclusivo sobre o recurso escasso de seu corpo. […] Além disso, qualquer um que tente contestar o direito de propriedade sobre seu próprio corpo seria preso em uma contradição prática, uma vez que argumentar desta maneira já implicaria a aceitação da própria norma que ele está contestando. Ele nem abriria sua boca se estivesse certo.[6]

Com isso Hoppe pretende ter dado uma justificação a priori do princípio da autopropriedade. A segunda parte do seu argumento, ele diz, consiste em estender o direito de propriedade para além do próprio corpo, abrangendo objetos externos.

Em primeiro lugar, segundo Hoppe, a argumentação não pressupõe somente o direito de controlar o próprio corpo, mas também o de controlar outros bens escassos, “pois se ninguém tivesse o direito de controlar outras coisas exceto seu próprio corpo, então nós todos deixaríamos de existir e o problema de justificar normas – bem como todos os outros problemas humanos – simplesmente não existiria”.[7] Isso porque o ser humano não vive só de ar; ele precisa necessariamente usar outros bens escassos para sobreviver, e qualquer pessoa, dirá Hoppe, que estiver viva não poderá defender o contrário.

Em segundo lugar, ele recorre a um argumentum a contrario (a meu ver mais procedente que o argumento anterior) para provar sua tese, cujo teor é o seguinte. Se não fosse estabelecido o princípio da apropriação original para determinar quem possui direito de propriedade sobre os bens que apropriou, então esse direito surgiria com base em mera declaração verbal, e aquele que dissesse “isso é meu” se faria o dono da coisa. Assim diz o professor, mais claramente:

[…] se uma pessoa não adquirisse o direto de controle exclusivo sobre outros bens dados pela natureza por seu próprio trabalho, isto é, se outras pessoas que não tenham usado estes bens previamente tivessem o direito de contestar a reivindicação de propriedade do apropriador original, então isto apenas seria possível se se adquirissem títulos de propriedade não por meio de trabalho, i.e., ao estabelecer algum elo objetivo entre uma pessoa específica e um recurso escasso específico, mas simplesmente por meio de declaração verbal.[8]

Contudo, se isso fosse admitido, então seria possível apropriar o corpo de outrem ao se emitir uma declaração verbal nesse sentido. Só que isso envolveria o declarador numa contradição prática consigo mesmo, como foi explicado anteriormente. Donde o princípio da apropriação original é o único logicamente compatível com o axioma da autopropriedade.

Hoppe ofereceu, então, com esses raciocínios, uma solução objetiva para o problema da ordem social: a anarquia da propriedade privada é o modo mais justo e econômico de organizar a sociedade. No entanto, dadas as inúmeras tentativas de refutar a sua tese, a maioria das quais, no meu entender, derivada de uma incompreensão do argumento, decidi oferecer uma outra maneira de explicá-la, de modo a tentar sanar pelo menos parte das dúvidas.

 

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Notas

[1] A doação também é um ato contratual, em que uma parte, impelido por algum motivo, doa alguma coisa e a outra aceita o benefício. Ambos lucram.

[2] Hoppe, “A justiça da eficiência econômica”. Disponível em: <https://rothbardbrasil.com/justica-da-eficiencia-economica/>

[3] Idem.

[4] Idem.

[5] Idem.

[6] Idem.

[7] Idem.

[8] Idem.

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