Moeda, Crédito Bancário e Ciclos Econômicos

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1 – Natureza Jurídica do Contrato de Depósito Monetário Irregular

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ESCLARECIMENTO Terminológico Prévio: Os Contratos de Empréstimo (Mútuo e Comodato) e os Contratos de Depósito

 

De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, empréstimo é a “ação de confiar alguma coisa a alguém, com a condição de esta lhe vir a ser restituída”[1].  Tradicionalmente considera-se que existam dois tipos de empréstimo: o empréstimo de uso, no qual apenas se transfere o uso do bem emprestado, havendo a obrigação de devolvê-lo após a utilização; e o empréstimo de consumo, no qual se transfere a propriedade do bem emprestado, que se entrega para ser consumido, pelo que a obrigação de devolução se refere à entrega de outro bem na mesma quantidade e da mesma qualidade do inicialmente recebido e consumido[2].

 

O comodato

Chama-se comodato (do latim commodatum) ao contrato real e de boa-fé, por meio do qual uma pessoa — o comodante — entrega a outra — o comodatário — um bem específico para que esta o use gratuitamente durante um determinado período de tempo, depois do qual deverá restitui-lo, ou seja, deverá devolver esse mesmo bem.[3] O contrato é classificado de “real” porque exige a entrega da coisa e dá-se, por exemplo, quando se empresta um carro a um amigo para que ele faça uma viagem.  É claro que, neste caso, o comodante continua a ser o proprietário do bem emprestado, e que a obrigação daquele que o recebe é usá-lo (o automóvel emprestado) adequadamente e devolvê-lo no prazo fixado (quando a viagem tiver terminado).  As obrigações do amigo, o comodatário, serão as de conservar o bem (o automóvel ou veículo) diligentemente, servir-se dele para um uso devido (cumprir as regras de trânsito e cuidá-lo como se fosse o proprietário) e devolvê-lo quando acabar o comodato (quando terminar a viagem).

 

O mútuo

Embora o comodato tenha alguma importância na prática, o empréstimo de bens fungíveis[4] e consumíveis, como, por exemplo, o azeite, o trigo e, sobretudo, o dinheiro, assume maior relevância.  Designa-se demútuo (do latim mutuum) o contrato por meio do qual uma pessoa — o mutuante — entrega a outra — o mutuário ou mutuatário — uma determinada quantidade de bens fungíveis, tendo esta a obrigação de, decorrido um prazo determinado, restituir uma quantidade equivalente no que respeita ao gênero e à qualidade (o que em latim se chama o tantundem).  Um exemplo típico de mútuo é o contrato de empréstimo monetário, que é o bem fungível por excelência.  Por meio deste contrato, entrega-se, hoje, uma quantidade de unidades monetárias a outra pessoa, transferindo-se a propriedade e a disponibilidade do dinheiro daquele que concede o empréstimo para aquele que o recebe.  A pessoa que recebe o dinheiro fica habilitada a usá-lo como se fosse seu, comprometendo-se a devolver um número de unidades monetárias igual ao que recebeu, findo o prazo estabelecido.  O mútuo, enquanto empréstimo de bens fungíveis, significa, portanto, uma troca de bens “presentes” por bens futuros“.  Por isso, ao contrário do que acontecia no comodato, no mútuo é normal o estabelecimento de um acordo de pagamento de juros, uma vez que, em virtude do princípio de preferência temporal (segundo o qual, em igualdade de circunstâncias, os bens presentes são sempre preferíveis aos bens futuros), em geral, os seres humanos só estarão dispostos a renunciar a uma determinada quantidade de um bem fungível em troca de uma quantidade superior de unidades desse mesmo bem no futuro (depois de decorrido o prazo).  Assim, a diferença entre o número de unidades que se entrega originalmente e o número de unidades que se recebe do mutuário no fim do prazo estipulado são, precisamente, os juros.  Resumindo, no mútuo, o prestamista assume a obrigação de entregar as unidades predefinidas ao prestatário ou mutuário.  O prestatário ou mutuário assume a obrigação de devolver um número de unidades da mesma espécie e qualidade das que recebeu (tantundem), no final do prazo estabelecido para o mútuo.  Além disso, fica obrigado a pagar juros, sempre que tal tenha sido acordado, como é normal acontecer.  A obrigação essencial no contrato de empréstimo de bens fungíveis ou mútuo é a de devolver o mesmo número de unidades da mesma espécie e qualidade das recebidas depois de acabado o prazo definido para o empréstimo, mesmo que o bem sofra alteração de preços.  Isto significa que, uma vez que tem de devolver o tantundem apenas depois de terminar um determinado período de tempo, o mutuário recebe o benefício de ser temporariamente o proprietário do bem e de o ter plenamente ao seu dispor.  Acresce que a determinação de um prazo é um elemento essencial no contrato de mútuo ou de empréstimo, uma vez que estabelece o período de tempo durante o qual o prestatário terá a disponibilidade e a propriedade do bem, assim como o momento a partir do qual é obrigado a restituir otantundemSem o estabelecimento explícito ou implícito de um prazo, não se pode dizer que exista o contrato de mútuo ou empréstimo.

 

O contrato de depósito

Além do contrato de empréstimo (comodato e mútuo), que implica a transmissão da disponibilidade do bem do prestamista para o prestatário durante um período de tempo, existe outro contrato, o contrato de depósito, cuja essência está em que a disponibilidade do bem não é transmitida.  Com efeito, o contrato de depósito (depositum, em latim) é um contrato de boa-fé por meio do qual uma pessoa — o depositante — entrega a outra — o depositário — um bem móvel, para que esta o guarde, proteja e devolva quando lhe for pedido.  Assim, o depósito é sempre levado a cabo no interesse do depositante.  O seu propósito fundamental é a guarda ou custódia do bem e implica, enquanto o contrato estiver vigente, que o depositante tenha a total disponibilidade sobre ele, podendo pedir a sua restituição em qualquer momento.  A obrigação do depositante é, além de entregar o bem, compensar o depositário pelos custos do depósito (se tal obrigação tiver sido acordada; de outra forma, o contrato é gratuito).  O depositário tem a obrigação de guardar e proteger o bem com a máxima diligência, típica de um bom chefe de família, e de devolvê-lo imediatamente ao depositante logo que este o solicite.  É claro que, ao contrário do empréstimo, no depósito não existe um prazo durante o qual se transfira a disponibilidade do bem.  O bem está sempre guardado e disponível para o depositante, e o depósito termina logo que este exija a sua devolução ao depositário.

 

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O CONTRATO DE DEPÓSITO DE BENS FUNGÍVEIS

OU CONTRATO DE DEPÓSITO “IRREGULAR”

 

Muitas vezes durante a nossa vida interessa-nos depositar não coisas específicas (como poderiam ser um quadro, uma joia ou um baú cheio de moedas), mas bens fungíveis (como litros de azeite, metros cúbicos de gás, toneladas de trigo ou milhões de euros).  O depósito de bens fungíveis continua, sem dúvida, a ser um depósito, atendendo a que o seu elemento fundamental é a total disponibilidade dos bens depositados a favor do depositante, assim como a obrigação de guarda e proteção com a diligência máxima por parte depositário.  A única diferença entre o depósito de bens fungíveis e o depósito regular ou de coisas específicas é que quando ocorre o primeiro, os bens depositados ficam indiscernivelmente misturados com outros do mesmo gênero e qualidade (como acontece, por exemplo, num armazém de grão ou de trigo, num depósito ou lagar de azeite ou no cofre de um banco).  Esta mistura indistinguível de diferentes unidades da mesma espécie e qualidade depositadas faz com que se possa considerar que no depósito de bens fungíveis se dá a transferência da “propriedade” do bem depositado.  Na verdade, quando o depositante vai levantar o depósito, terá de se conformar, como é lógico, com receber o equivalente exato em termos de quantidade e qualidade àquilo que depositou originalmente, mas em caso algum receberá as mesmas unidades específicas que tiver entregado, uma vez que a natureza fungível dos bens faz com que seja impossível tratá-los individualmente, ficando misturados de forma indiscernível com o resto das existências em poder do depositário.  Por isso, o depósito de bens fungíveis, que mantém as características principais do contrato de depósito, designa-se de “depósito irregular”[5], uma vez que um dos seus elementos característicos é diferente (no contrato de depósito regular ou de bens específicos não existe transferência de propriedade — ela continua a ser do depositante; ao passo que no depósito de bens fungíveis pode considerar-se que a propriedade se transfere para o depositário).  Não obstante, deve se enfatizar que a essência do depósito permanece inalterada e que o depósito irregular partilha plenamente a mesma natureza fundamental de todos os depósitos: a obrigação de guarda e custódia.  Com efeito, no depósito irregular existe sempre uma disponibilidade imediata a favor do depositante, que, a qualquer momento, pode dirigir-se ao armazém de trigo, ao depósito de azeite ou ao cofre do banco e retirar o equivalente às unidades que entregou originalmente.  Este será o equivalente exato em termos de quantidade e de qualidade àquele que tiver entregado; ou, como diziam os romanos, o tantundem iusdem generis, qualitatis et bonetatis.

 

A função econômica e social dos depósitos irregulares

Os depósitos de bens fungíveis, como o de moeda, também chamados depósitos irregulares, desempenham uma função social importante, função essa que não pode ser desempenhada pelos depósitos regulares, entendidos como depósitos de coisas específicas.  Faria pouco sentido e comportaria custos muito elevados depositar o azeite em contentores separados e numerados (ou seja, depósitos fechados em que não há transferência de propriedade) ou colocar notas em envelopes numerados individualmente.  Embora estes casos extremos constituíssem depósitos regulares, em que não há transferência de propriedade, perder-se-ia a enorme eficácia e a significativa redução de custos resultante do tratamento conjunto e indistinguível dos diferentes depósitos[6], sem custos ou perdas de disponibilidade para o depositante, que ficará igualmente satisfeito se, quando o solicitar, receber um tantundem igual em quantidade e qualidade, mas não idêntico em termos de conteúdo específico, àquele que entregou originalmente.  O depósito irregular tem ainda outras vantagens.  No depósito regular ou de coisas específicas, o depositário não é responsável pela perda de um bem causada por caso fortuito ou força maior, ao passo que no depósito irregular, o depositário é responsável até no caso fortuito.  Desta forma, além das vantagens tradicionais de disponibilidade imediata e custódia de todo o depósito, o depósito irregular tem ainda uma função de segurança tendo em conta a possibilidade de perda por caso fortuito.[7]

 

O elemento essencial no depósito monetário irregular

No depósito irregular, a obrigação de guarda e custódia dos bens depositados, que constitui um elemento fundamental de todos os depósitos, concretiza-se sob a forma da obrigação de manter sempre a disponibilidade do tantundem a favor do depositante.  Ou seja, enquanto no depósito regular o bem específico depositado deve manter-se guardado continuamente de forma diligente e in individuo, no depósito de bens fungíveis, o que deve ser continuamente guardado, protegido e mantido à disposição do depositante é o tantundem; isto é, o equivalente em quantidade e qualidade aos bens originalmente entregues.  Isto significa que nos depósitos irregulares, a custódia consiste na obrigação de manter sempre disponível para o depositante uma quantidade e qualidade de bens igual à recebida.  Este “manter sempre disponível para o depositante uma quantidade e qualidade de bens determinados igual à recebida”, apesar de os bens serem continuamente renovados ou substituídos, é, para os bens fungíveis, o equivalente a manter a existência do bem in individuo, para os bens não fungíveis.  Ou seja, o proprietário do armazém de trigo ou do depósito de azeite pode usar o azeite ou o trigo específico que lhe foi entregue para seu uso próprio ou para devolver a outro depositante, desde que mantenha à disposição do depositante original uma quantidade e qualidade igual à que este depositou.  No caso do depósito em dinheiro aplica-se a mesma regra.  Se eu lhe depositar uma nota de quinhentos euros, podemos considerar que lhe transfiro a propriedade dessa nota específica, que o leitor poderá usar para custear suas despesas ou para qualquer outro uso, desde que conserve em seu poder uma quantidade equivalente de moeda (na forma de outra nota de 500 euros ou de cinco notas de 100 euros) para que, no momento em que eu lhe peça o reembolso, o leitor possa me devolver imediatamente sem qualquer entrave ou desculpa.[8]

Em suma, de acordo com a lógica subjacente à instituição do depósito irregular, baseada nos princípios universais do Direito, o elemento fundamental de guarda e custódia concretiza-se na exigência de ter, de forma contínua, à disposição do depositante um tantundem igual ao que este depositou originalmente.  No caso concreto do dinheiro, o bem fungível por natureza, isto significa que a obrigação de custódia exige a conservação permanente de um coeficiente de caixa de 100% para o depositante.

 

Consequências do descumprimento da obrigação essencial no depósito irregular

O descumprimento da obrigação de custódia num depósito dá lugar, como é óbvio, à obrigação de indenizar o depositante.  Se esse descumprimento for doloso e consistir na utilização do bem depositado para uso próprio, então estamos perante um crime de apropriação indébita.  Assim, no depósito regular, aquele que receber um quadro em depósito, por exemplo, e o vender em benefício próprio estará cometendo um crime de apropriação indébita.  Considera-se que, no depósito irregular de bens fungíveis, comete o mesmo crime o depositário que usar os bens depositados para benefício próprio, sem manter o tantundempermanentemente à disposição do depositante.  Seria o caso do armazenista de azeite que não guardasse nos seus depósitos uma quantidade igual ao total do depósito ou da pessoa que recebesse dinheiro em depósito e o usasse fosse de que forma fosse em benefício próprio (gastando-o em proveito próprio ou emprestando-o), mas sem manter, sempre, um coeficiente de caixa de 100%.[9] O penalista Antonio Ferrer Sama explicou que se o depósito tiver consistido numa quantidade de dinheiro e na obrigação de devolver outra equivalente (depósito irregular), dando-se o caso de o depositário usar essa quantidade em proveito próprio, será necessário:

distinguir duas situações, para determinar a sua responsabilidade criminal: na ocasião em que o faz, o depositário tem solvência suficiente para em qualquer momento devolver a quantidade que recebeu em depósito, ou, ao contrário, não tem dinheiro próprio suficiente para fazer face à sua obrigação de devolver o tantundem ao depositante em qualquer momento em que este o solicite.  No primeiro caso não existe crime de apropriação indébita […] No entanto, se o depositário usar a quantidade depositada sem ter em seu poder dinheiro suficiente para corresponder à solicitação do depositante, consuma-se o crime de apropriação indébita […]..[10]

 

A apropriação indébita ocorre desde o momento em que o depositário usa em benefício próprio a quantidade depositada, deixando de possuir o tantundem equivalente ao que lhe foi entregue

 

Jurisprudência reconhecendo os princípios essenciais do Direito que regulam o contrato de depósito monetário irregular (coeficiente de caixa de 100%)

O princípio da exigência de um coeficiente de caixa de 100%, como concretização do elemento essencial de guarda e custódia no depósito monetário irregular, foi mantido pela jurisprudência europeia até ao século passado.  No dia 12 de junho de 1927, o Tribunal de Paris condenou um banqueiro pelo crime de apropriação indébita por ter usado, como é prática comum no sistema bancário, fundos que tinha recebido em depósito de um cliente.  No dia 4 de janeiro de 1934, outra sentença do mesmo tribunal manteve decisão.[11] Da mesma forma, quando se deu a falência do Banco de Barcelona na Espanha, o Tribunal de Primeira Instância do norte da cidade, perante uma reclamação dos clientes com contas correntes exigindo o seu reconhecimento como depositantes, produziu uma sentença em que os reconhecia como tal e, logo, o seu estatuto de credores preferenciais dos ativos do banco.  A sentença baseou-se no direito de os bancos utilizarem o dinheiro das contas correntes ser limitado pela obrigação de manter a disponibilidade permanente dos fundos das ditas contas para os titulares das mesmas.  Esta limitação legal impedia a possibilidade de admitir que os fundos depositados numa conta corrente pudessem ser considerados pelo Banco como sua propriedade exclusiva.[12] Apesar de o Supremo Tribunal Espanhol não ter tido a oportunidade de se pronunciar sobre o caso concreto da falência do Banco de Barcelona, uma sentença pronunciada pelo mesmo no dia 21 de junho de 1928 chegou a uma conclusão muito semelhante estipulando que:

Conforme os usos e costumes comerciais reconhecidos pela jurisprudência, o contrato de depósito pecuniário consiste na entrega de dinheiro a uma pessoa, que, não contraindo a obrigação de conservar para o depositante o mesmo dinheiro ou valores entregues, deve ter à sua disposição a quantidade depositada, para que possa devolvê-la, na totalidade ou em parte, no momento em que o depositário a solicite.  O depositário não adquire o direito de dispor do depósito para seu uso pessoal, uma vez que, sendo obrigado a devolver o depósito no momento em que este lhe é solicitado, deve manter constantemente em seu poder a quantidade necessária para o fazer.[13]

 

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As diferenças essenciais existentes entre os contratos de depósito irregular e de empréstimo pecuniário

 

Torna-se agora importante recapitular e insistir nas diferenças fundamentais entre o contrato de depósito irregular e o contrato de empréstimo, ambos de moeda.  Como veremos mais adiante, grande parte das confusões e erros jurídicos e econômicos sobre o tema que nos ocupa se devem à falta de compreensão das diferenças fundamentais entre estes dois contratos.

 

O conteúdo diverso do direito de propriedade que se transfere em cada contrato

Em primeiro lugar, é preciso assinalar que a incapacidade de fazer uma distinção clara entre o depósito irregular e o empréstimo tem origem na exagerada e indevida importância dada ao fato de, como já sabemos, no depósito monetário irregular ou de qualquer outro bem fungível se poder transferir, tal como no empréstimo ou mútuo, a propriedade do bem depositado para o depositário.  Esta é a única semelhança entre ambos os tipos de contrato e aquela que induziu em erro muitos estudiosos, que os confundiram de forma injustificada.

Como já vimos, no depósito irregular, a transmissão de propriedade era uma exigência secundária, que advinha do fato de o objeto do depósito ser um bem fungível, que não poderia ser tratado de forma individualizada, havendo, por isso, muitas vantagens em efetuar o depósito de forma indistinguível juntamente com outros conjuntos do mesmo bem fungível.  De fato, ao não poder exigir-se, do ponto de vista estritamente legal e por razões de impossibilidade física, a devolução das unidades concretas depositadas, pode parecer necessário considerar que se produz uma transferência de propriedade no que respeita às unidades específicas e individuais depositadas, uma vez que são indistinguíveis das outras.  Assim, o depositário ou armazenista torna-se o proprietário, mas só no sentido de ter liberdade para distribuir as unidades específicas e indistinguíveis como queira, desde que mantenha constantemente otantundem.  É este, e apenas este, o alcance da transferência do direito de propriedade no caso do depósito irregular, ao contrário do que acontece no caso do contrato de empréstimo, onde a disponibilidade total do bem emprestado é transferida até que vença o prazo de duração do contrato.  Assim, mesmo em relação ao único elemento em que se poderia considerar que existe semelhança entre o depósito irregular e o empréstimo de dinheiro (a suposta transferência de propriedade), deve se entender que a transferência de propriedade tem sentidos econômicos e jurídicos muito distintos nos dois contratos.  Talvez o mais adequado fosse, como explicamos na nota de rodapé número 5, considerar que no depósito irregular não há transferência de propriedade, mas que, em abstrato, o depositante mantém em todos os momentos a propriedade sobre o tantundem.

 

Diferenças econômicas fundamentais entre os dois contratos

A razão de ser destas diferenças de conteúdo jurídico tem origem na diferença fundamental entre os dois tipos de contrato, que, por sua vez, deriva do substrato econômico distinto em que cada um se fundamenta.  Assim, Ludwig von Mises, com característica clareza, destaca que o empréstimo:

In the economic sense means the exchange of a present good or a present service against a future good or a future service, then it is hardly possible to include the transactions in question [irregular deposits] under the conception of credit.  A depositor of a sum of money who acquires in exchange for it a claim convertible into money at any time which will perform exactly the same service for him as the sum it refers to, has exchanged no present good for a future good.  The claim that he has acquired by his deposit is also a present good for him.  The depositing of the money in no way means that he has renounced immediate disposal over the utility that it commands.

 

E conclui que o depósito: “is not a credit transaction, because the essential element, the exchange of present goods for future goods, is absent“.[14] Desta forma, no depósito monetário irregular não há renúncia de bens presentes em troca de uma quantidade superior de bens futuros decorrido um determinado período de tempo, mas antes uma alteração na maneira de desfrutar dos bens presentes.  Esta alteração ocorre porque, em muitas circunstâncias, o depositante tem a ideia de que é mais vantajoso do ponto de vista subjetivo (ou seja, mais apropriado para atingir os objetivos a que se propõe) fazer um depósito monetário irregular no qual os bens são misturados com outros da mesma espécie e logo indistinguíveis (já referimos, entre outras, vantagens como a segurança contra o risco de perda por caso fortuito e a possibilidade de usar o serviço de caixa proporcionado pelos bancos aos clientes que têm uma conta corrente).  Em contraste, a essência do contrato de empréstimo é radicalmente distinta.  O objetivo do contrato de empréstimo é precisamente renunciar hoje à disponibilidade de bens presentes, que é transferida para quem recebe o empréstimo, de forma a obter, findo o prazo estabelecido, uma quantidade, geralmente superior, de bens futuros.  Dizemos “geralmente superior” dado que, de acordo com a lógica de preferência temporal inerente a toda a ação humana, segundo a qual em igualdade de circunstâncias os bens presentes são sempre preferíveis aos bens futuros, é necessário adicionar aos bens futuros uma quantidade diferencial sob a forma de juros.  De outro modo, seria difícil encontrar quem estivesse disposto a renunciar à disponibilidade dos bens presentes, que todos os empréstimos implicam.

Assim, do ponto de vista econômico, é claríssima a diferença entre os dois contratos: no depósito irregular não há transferência de bens presentes em troca de bens futuros, ao passo que no contrato de empréstimo há.  Por isso, no depósito irregular não há transferência da disponibilidade do bem, estando este sempre à disposição do depositante (embora, do ponto de vista jurídico, se possa considerar, em certo sentido, que houve transferência de “propriedade”), enquanto no contrato de empréstimo existe sempre uma transferência da disponibilidade da pessoa que concede o empréstimo para a que o recebe.  Além disso, o contrato de empréstimo, costuma incluir um acordo de pagamento de juros, enquanto no contrato de depósito monetário irregular, o acordo de pagamento de juros é contra naturam e não faz sentido.  Com a sua habitual perspicácia, Coppa-Zuccari explica que a absoluta impossibilidade de incluir um acordo de pagamento de juros no contrato de depósito irregular é, do ponto de vista jurídico, resultado direto do direito que o depositante tem de a qualquer momento levantar o depósito e da obrigação correspondente de o depositário ter continuamente ao dispor do depositante o valor correspondente ao tantundem.[15] Ludwig von Mises indica também que é possível que o depositante realize os depósitos sem requerer nenhum tipo de juros porque:

The claim obtained in exchange for the sum of money is equally valuable to him whether he converts it sooner or later, or even not at all; and because of this it is possible for him, without damaging his economic interests, to acquire such claims in return for the surrender of money without demanding compensation for any difference in value arising from the difference in time between payment and repayment, such, of course, as does not in fact exist.[16]

 

E, dado o aspecto econômico do depósito monetário irregular, que não implica a troca de bens presentes por bens futuros, a manutenção contínua da disponibilidade dos bens para o depositante e a incompatibilidade com o acordo sobre taxas de juro são consequência lógica e direta da essência jurídica de um contrato, o de depósito irregular, que é radicalmente distinta da essência jurídica do contrato de empréstimo.[17]

 

Diferenças jurídicas fundamentais entre ambos os contratos

O elemento jurídico essencial do contrato de depósito irregular é o de guarda e custódia do dinheiro depositado.  Esta é a motivação ou causa do contrato,[18] que se sobrepõe a todas as outras, para as partes que decidem efetuar e receber um depósito irregular, sendo radicalmente distinta da causa essencial do contrato de empréstimo, que consiste em transferir a disponibilidade do bem emprestado para que o prestatário o utilize durante um período determinado de tempo.  A partir desta diferença essencial na causa dos dois tipos de contrato, surgem outras duas diferenças jurídicas importantes: a primeira é o fato de no contrato de depósito irregular não haver prazo, que é o elemento essencial que determina a existência ou não de um contrato de empréstimo.  De fato, é impossível conceber um contrato de empréstimo de dinheiro sem haver determinado um prazo (durante o qual não só se transmite a propriedade, mas também se perde a disponibilidade do bem), no fim do qual seja necessário devolver o tantundem de dinheiro que se emprestou originalmente acrescido de juros, no contrato de depósito irregular não existe qualquer prazo, mas sim a disponibilidade contínua dos bens a favor do depositante, que pode em qualquer momento retirar o seutantundem.[19] A segunda diferença jurídica essencial diz respeito às obrigações das partes: no contrato de depósito irregular a obrigação jurídica decorrente da essência do contrato consiste, como já vimos, nacustódia ou guarda, tão diligente quanto a de bom um pai de família, do tantundem, que deverá estar continuamente ao dispor da parte que efetuou o depósito.[20] No contrato de empréstimo, tal obrigação não existe, podendo o prestatário fazer uso da quantidade emprestada com total liberdade.  Fica assim mais clara a importante matização que fizemos anteriormente a respeito do significado muito distinto entre o fato jurídico de “transmissão de propriedade” nos dois contratos.  Enquanto a “transmissão” de propriedade no contrato de depósito irregular, que poderia ser considerada uma exigência da natureza fungível dos bens que se depositam, não implica a transferência simultânea da disponibilidade do tantundem, no contrato de empréstimo, existe transferência plena de propriedade e de disponibilidade do tantudem do prestamista ao prestatário.[21] No quadro I-1 encontram-se resumidas as diferenças que referimos nesta seção.

 

Quadro I-1

Diferenças essenciais entre dois contratos radicalmente distintos

Depósito Monetário Irregular Empréstimo Pecuniário

De Conteúdo Econômico:

1.      Não há troca de bens presentes por bens futuros

2.      Existe disponibilidade completa e contínua a favor do depositante

3.      Não há juros, uma vez que não há troca de bens presentes por bens futuros

1.  Há troca de bens presentes por bens futuros

2.  A disponibilidade é transferida na totalidade do prestamista para o prestatário

3.  Há juros, uma vez que há troca de bens presentes por bens futuros

De Conteúdo Jurídico:

1.      O elemento essencial é a custódia ou guarda do tantundem, que constitui a motivação básica do depositante

2.      Não existe prazo de devolução, o contrato é “à vista”

3.      A obrigação do depositário é manter sempre o tantundem à disposição do depositante (100% de coeficiente de caixa)

1.    O elemento essencial é a transferência da disponibilidade dos bens presentes a favor do prestatário

2.    O contrato exige a fixação de um prazo para devolução do empréstimo e cálculo e pagamento dos juros

3.    A obrigação do prestatário é, decorrido o prazo, devolver o tantundem pagando ainda os juros acordados.

 

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A descoberta pela ciência jurídica romana dos princípios gerais do direito relativos ao contrato de depósito monetário irregular

 

A emergência dos princípios tradicionais do Direito segundo Menger, Hayek e Leoni

Os princípios universais e tradicionais do Direito que abordamos na seção anterior a respeito do contrato de depósito irregular não surgiram do nada, nem são o resultado de qualquer conhecimento apriorístico.  O conceito de Direito, como conjunto de normas e instituições a que os comportamentos dos humanos se adaptam de forma constante, repetitiva e pautada, tem sido desenvolvido e depurado de maneira evolutiva e consuetudinária.  Uma das contribuições mais importantes de Carl Menger é, talvez, o ter desenvolvido uma teoria econômica das instituições sociais, de acordo com a qual estas surgem como resultado de um processo evolutivo em que interagem inúmeros seres humanos, cada um deles equipado com o seu pequeno acervo exclusivo e privado de conhecimentos subjetivos, experiências práticas, desejos, preocupações, objetivos, dúvidas, sentimentos, etc.  Surge, assim, de forma evolutiva e espontânea um conjunto de padrões de comportamento ou instituições que, não só no campo jurídico, mas também no econômico e linguístico, tornam possível a vida em sociedade.  Menger descobriu que o aparecimento das instituições é o resultado de um processo social constituído por uma multiplicidade de ações humanas que é sempre liderado por um pequeno, em termos relativos, grupo de seres humanos concretos, de carne e osso, que, em circunstâncias históricas particulares de tempo e lugar, são capazes de descobrir, antes de todos os outros, que atingem mais facilmente os seus objetivos adotando determinados padrões de comportamento e agindo de acordo com eles.  Começa assim a funcionar um processo descentralizado de tentativa e erro, que atravessa várias gerações, no qual tendem a prevalecer os comportamentos que melhor dão conta dos desajustes sociais, de forma que, por meio de um processo social inconsciente de aprendizagem e imitação, o comportamento pioneiro iniciado pelos seres humanos mais criativos e bem-sucedidos se estende à sociedade e é seguido pelos seus demais membros.  Acresce que, neste processo evolutivo, as sociedades que adotam os princípios e instituições mais adequados tendem a propagá-los e a prevalecer sobre os outros grupos sociais.  Embora Menger tenha desenvolvido a sua teoria para a aplicar a uma instituição econômica concreta, a do aparecimento e da evolução da moeda, não deixa de afirmar também que o mesmo esquema teórico pode, no essencial, ser aplicado, sem maiores dificuldades à emergência e evolução da linguagem, bem como ao campo que mais nos interessa neste momento, o das instituições jurídicas.  Apresenta-se, desta forma, o fato paradoxal segundo o qual as instituições mais importantes e essenciais para a vida do homem em sociedade (morais, jurídicas, econômicas e linguísticas) não são suas criações deliberadas, uma vez que o homem carece da capacidade intelectual necessária para assimilar o enorme volume de informação tais instituições geram.  Antes, estas instituições vão inevitável e espontaneamente surgindo do processo social e evolutivo de interações humanas que, para Menger, constitui precisamente o campo que deve ser objeto de estudo da ciência econômica.[22]

As instituições de Menger foram desenvolvidas, posteriormente, por F. A. Hayek nas diferentes obras sobre os fundamentos da lei e das instituições jurídicas[23] e, sobretudo, pelo professor catedrático italiano de ciência política Bruno Leoni, o primeiro a integrar, dentro de uma teoria sintética sobre a Filosofia do Direito, a teoria econômica dos processos sociais desenvolvida por Menger e pela Escola Austríaca, a mais antiga tradição jurídica romana e a tradição anglo-saxônica da rule of law.  De fato, a grande contribuição de Bruno Leoni consiste em ter tornado claro que a teoria austríaca sobre a emergência e a evolução das instituições sociais tem no fenômeno do direito consuetudinário uma perfeita ilustração, e, além disso, que já tinha sido conhecida e formulada previamente pela escola jurídica clássica do Direito Romano.[24] Assim, Leoni, citando Catão pela boca de Cícero, mostra expressamente como os juristas romanos já tinham consciência de que o Direito Romano não era criação pessoal de um só homem, mas sim de muitos homens ao longo de séculos e gerações, uma vez que “nunca houve no mundo um homem tão inteligente que pudesse prever tudo, e mesmo que fosse possível concentrar todos os cérebros na cabeça de um mesmo homem, ser-lhe-ia impossível ter em conta tudo, ao mesmo tempo, sem ter acumulado a experiência que se obtém com a prática no decorrer de um longo período da história”.[25] Em suma, para Leoni, o Direito surge como resultado de uma série contínua de tentativas, na qual cada indivíduo tem em conta as suas próprias circunstâncias, e vai-se aperfeiçoando por meio de um processo seletivo e evolutivo.[26]

 

A ciência jurídica romana

A importância da ciência jurídica romana clássica radica, precisamente, em ter-se dado conta deste importante fato e nos esforços de desenvolver um trabalho continuado de estudo, interpretação dos costumes jurídicos, exegeses, análises lógicas, cobertura de lacunas e correção de falhas; trabalho este sempre levado a cabo seguindo os necessários critérios de prudência e parcimônia.[27] O ofício do jurista clássico é uma verdadeira arte, sempre dirigido a procurar e encontrar a essência das instituições jurídicas que se formaram ao longo do processo evolutivo da sociedade.  Além disso, os juristas clássicos nunca têm a pretensão de ser “originais” ou “criativos”, mas sim “servidores de um certo número de princípios fundamentais, e, tal como referiu Savigny, é aqui que radica a sua importância.”[28] Têm como objetivo principal descobrir os princípios universais do Direito, que são imutáveis e inerentes à lógica das relações humanas, embora seja certo que, como consequência da própria evolução social, não sejam raras as vezes em que é necessário aplicar tais princípios universais, em si imutáveis, a novas situações e problemáticas que a evolução social vai criando.[29] Acresce que os juristas romanos desenvolvem o seu trabalho de forma privada e não são funcionários públicos.  Apesar de múltiplas tentativas, a jurisprudência oficial na época romana nunca é capaz de acabar com a jurisprudência livre, nem abalar o seu enorme prestígio e a sua independência.

A jurisprudência ou ciência do direito tornou-se uma profissão liberal a partir do século III a.C.  Os juristas mais importantes anteriores à nossa era são Marco Pórcio Catão e o seu filho Catão Liciano, o cônsul Mucio Scevola e os juristas Quinto Mucio Scevola, Sérvio Sulpício Rufo e Alfreno Varo.  Mais tarde, já no século II d.C., inicia-se a época clássica, cujos juristas mais importantes são Gaio, Pompônio, Africano e Marcelo.  Na sua esteira surgem, já no século III, juristas como Papiniano, Paulo, Ulpiano e Modestino.  A partir desta altura o prestígio das soluções encontradas por estes juristas privados é tão grande, que lhes é dada força de lei e, para evitar as dificuldades que pudessem surgir das diferenças de opinião contidas nas obras de jurisprudência de uns e de outros, é dada força legal às obras de Papiniano, Paulo, Ulpiano, Gaio e Modestino, bem com às doutrinas dos juristas por eles citados, sempre que essas citações pudessem ser confirmadas consultando os originais.  No caso de não haver acordo entre as opiniões destes autores, o juiz deveria seguir a doutrina defendida pela maioria.  A existir empate, prevaleceria sempre a tese de Papiniano, pelo que se não houvesse opinião publicada deste autor sobre qualquer assunto, o juiz tinha liberdade para decidir.[30]

Cabe, pois, aos juristas clássicos romanos o mérito de terem descoberto, interpretado e aperfeiçoado, pela primeira vez, as mais importantes instituições jurídicas que tornam possível a vida em sociedade.  Além disso, como veremos adiante, já tinham reconhecido a existência do contrato de depósito irregular, compreendido os princípios essenciais, e delineado o conteúdo e a essência tal como os definimos nas seções anteriores do presente capítulo.  O contrato de depósito irregular não é uma criação intelectual sem contato com a realidade, mas uma necessidade lógica da natureza humana manifestada em múltiplos atos de interação e cooperação social, que se expressa numa série de princípios que não podem ser violados sem que se produzam consequências gravíssimas para a teia das relações humanas.  A grande importância do Direito, entendido desta forma evolutiva, livre e depurado das falhas lógicas por intermédio da ciência de especialistas jurídicos, radica no fato de constituir um guia que serve de orientação para o comportamento dos seres humanos, ainda que, devido ao próprio caráter abstrato, estes não sejam capazes de identificar nem de compreender, na maior parte dos casos concretos, qual é a função completa e específica de cada instituição jurídica.  Só muito mais tarde na evolução histórica do pensamento humano e graças, sobretudo, às contribuições da Ciência Econômica, foi possível entender as leis dos processos sociais e compreender um pouco o papel que têm na sociedade as instituições jurídicas.  Um dos objetivos mais importantes deste livro é, precisamente, analisar, do ponto de vista econômico, as consequências sociais resultantes da violação dos princípios universais do Direito que regulam o contrato de depósito monetário irregular.  A partir do capítulo IV levaremos a cabo esta análise de teoria econômica sobre uma instituição jurídica (o contrato de depósito bancário de moeda).

O conhecimento que temos hoje dos princípios universais do Direito, tal como foram descobertos pelos juristas romanos, é possível graças ao trabalho do imperador Justiniano, que, entre os anos 528 e 533 D.C.  realizou o desmedido esforço de codificar as principais contribuições da jurisprudência do Direito Romano clássico, compilando-as em quatro livros (as Institutas, o Digesto, o Código de Justiniano ou Codex e asNovelas), que, desde a edição de Dionísio Godofredo[31] são conhecidas como Corpus iuris civilis.  AsInstitutas são uma obra fundamental destinada à formação dos estudantes e foram escritas com base nasInstitutas de Gaio.  Por sua vez, o Digesto ou Pandectas é uma compilação de textos clássicos de jurisprudência que inclui mais de nove mil fragmentos de diferentes juristas de prestígio.  Os fragmentos de Ulpiano, que constituem a terceira parte do Digesto, juntamente com os de Paulo, Papiniano e Juliano são mais representativos do que os de todos os outros juristas.  No total, há contribuições de trinta e nove especialistas do Direito clássico Romano.  No Codex estão compiladas e ordenadas alfabeticamente as leis e constituições imperiais (o que corresponde ao conceito atual de legislação), e, finalmente, as Novelas ouAutênticas contêm as últimas constituições imperiais posteriores ao Código.[32]

Feita esta pequena introdução, vamos agora ver a forma como os juristas clássicos romanos trataram a instituição do depósito monetário irregular.  Consideraram-na um tipo especial de depósito que incluía as características essenciais de um depósito e distinguiram-na de outros contratos de natureza e essência radicalmente diferentes, como é o caso do mútuo ou empréstimo.

 

O contrato de depósito irregular no Direito Romano

O contrato de depósito é tratado em geral na seção III do livro XVI do Digesto, que tem como título “Do depósito [aceite] ou não” (Depositi vel contra).  Aqui, Ulpiano começa por defender que o “depósito é o que se deu a alguém para ser guardado e chama-se assim porque um algo é posto [em algum lugar].  A preposiçãode intensifica a significação, para demonstrar que todas as obrigações correspondentes à custódia do bem são da responsabilidade dessa pessoa.”[33] Este tipo de depósito pode ser regular, quando se refere a um bem específico, ou irregular, quando se refere a um bem fungível.[34] No número 31 do título II do livro XIX do Digesto, Paulo explica a diferença entre o contrato de empréstimo ou mútuo e o contrato de depósito de bens fungíveis, chegando à conclusão de que, “se alguém depositar o dinheiro contado, não o entregando fechado ou selado, a única obrigação da pessoa que o recebe não deve ser senão devolver a mesma quantidade”.[35] Ou seja, fica claramente expresso que no depósito monetário irregular a obrigação do depositário é única e exclusivamente a da devolução do tantundem, isto é, o equivalente, em quantidade e qualidade, ao inicialmente depositado.

Além disso, sempre que alguém efetuava um depósito monetário irregular, recebia um certificado ou um recibo de depósito, feito por escrito.  Sabemos isto graças a Papiniano, que no parágrafo 24 do título III do livro XVI do Digesto, referindo-se a um caso de depósito monetário irregular, disse:

Dou-te conhecimento por esta carta escrita à mão, para que o saibas, que as cem moedas que neste dia me confiaste por intermédio de Sticho, escravo administrador, estão em meu poder e que as entregarei a ti no momento e no local que desejares.

 

Esta citação mostra claramente a disponibilidade imediata dos bens para o depositante e a forma como este obtinha um recibo ou certificado de depósito monetário irregular que não só era prova de propriedade, como um documento que deveria apresentar no momento em que desejasse levantar o próprio dinheiro.[36]

A obrigação essencial dos depositários é a de manterem sempre à disposição dos depositantes o tantundemdo que estes lhes entregam, pelo que se, por alguma razão, o depositário entrar em falência, os depositantes têm preferência absoluta sobre todos os outros credores, como Ulpiano explica muito claramente (parágrafo 2 do número 7 do título III do livro XVI do Digesto), afirmando que “sempre que os banqueiros sejam declarados insolventes, deve-se, em primeiro lugar ter em conta os depositantes, ou seja, aqueles que têm dinheiro depositado, e não quem ganha juros sobre dinheiro em poder dos banqueiros.  Assim, caso tenham vendido os bens, os depositantes têm prioridade sobre quem tem privilégios, não se levando em conta quem recebeu juros, que é tratado como se tivesse renunciado ao depósito.”[37] A enunciação deste princípio por parte de Ulpiano mostra também claramente que a cobrança de juros não era considerada compatível com o depósito monetário irregular, e que quando os juros eram pagos pelos banqueiros, eram-no ao abrigo de um contrato totalmente diferente (neste caso, o contrato de mútuo ou empréstimo efetuado a um banqueiro ou, como é mais conhecido nos dias de hoje, o contrato de “depósito” a prazo).

No que diz respeito às obrigações do depositário, é expressamente mencionado no Digesto (livro XLVII, título II, número 78) que quem receber um bem em depósito e o utilizar para um fim diferente daquele para que o tiver recebido poderá ser considerado culpado de furto.  No mesmo título (livro XLVII, titulo II, número 67), Celso diz-nos também que receber um depósito com intenção dolosa constitui crime de furto.  O furto é definido por Paulo como “a apropriação fraudulenta de um bem, para conseguir lucro, quer do próprio bem, quer do seu uso ou da sua posse; o que é proibido pela lei natural“.[38] Como se pode ver, no Direito Romano, a atual figura do delito de apropriação indébita estava inserida dentro da figura criminal de furto.  Ulpiano, referindo-se a Juliano, conclui também que “se alguém tiver recebido dinheiro da minha parte para pagar a um credor meu, e pagar em seu próprio nome, estando ele próprio a dever a mesma quantidade ao credor, cometerá o crime de furto” (Digesto, livro XLVII, título II, número 52, parágrafo 16).[39]

Ainda mais clara é a obrigação de manter a total disponibilidade do tantundem e a existência de crime de furto se tal disponibilidade não for mantida, no número 3 do título XXXIV (sobre “a ação de depósito”) do livro IV do Corpus iuris civilis, que inclui a constituição estabelecida sob o consulado de Gordiano e Aviola no ano de 239, na qual o imperador Gordiano indica a Austero que “se fizeres um depósito, pedirás, não sem razão, que te sejam pagos também juros, uma vez que o depositário deve agradecer-te que não o tornes responsável pelo crime de furto, dado que aquele que contra a vontade do seu dono usar, intencional e voluntariamente, a coisa depositada para uso próprio incorre também no crime de furto.”[40] Na mesma fonte, um pouco mais adiante, na seção 8, é expresso o caso concreto em que o depositário utiliza em benefício próprio o dinheiro que recebeu em depósito, emprestando-o a outras pessoas, insistindo-se que tal ação viola o princípio de custódia, obriga os depositários a pagar juros e faz com que sejam culpados do crime de furto, como acabamos de ver na Constituição de Gordiano.  Nesta seção podemos ler:

Se a pessoa que recebeu o dinheiro depositado, o empresta, em seu próprio nome, ou no nome de qualquer outra pessoa, ele e seus sucessores estão obrigados a cumprir o encargo de confiança assim aceite.”[41]

 

Reconhece-se, em suma, a tentação, que não raras vezes sentem aqueles que recebem dinheiro em depósito, de utilizá-lo como se fosse seu.  Este reconhecimento encontra-se claramente expresso noutra parte do Corpus iuris civilis (Novelas, Constituição LXXXVIII, no final do capítulo I), onde se afirma que é preciso sancionar adequadamente, não só por meio da acusação de furto, mas também por meio do pagamento dos juros de mora, “para que, por receio destas ações, deixem os homens de ter uma conduta mal-intencionada, insensata e perversa no uso dos depósitos”.[42]

Assinale-se que os juristas romanos estabeleceram que em caso de descumprimento da obrigação imediata de devolução por parte do depositário, não só se tornava claro o perpetração prévia de um crime de furto, como, além disso, havia lugar à obrigação de pagamento de juros de mora.  Assim, Papiniano estabelece que:

Aquele que tiver recebido dinheiro em depósito em envelope não selado, acordando devolver a mesma quantidade mais tarde, e o usar para proveito próprio, será condenado depois da mora a pagar juros pela ação de depósito.[43]

 

É este princípio perfeitamente justo que explica o fenômeno do depositum confessatum, que estudaremos com mais pormenor no próximo capítulo, segundo o qual, ao longo da Idade Média, foi utilizada a figura do depósito irregular para evitar a proibição canônica de cobrança de juros, disfarçando de depósitos certos contratos que eram, na realidade, empréstimos ou mútuos, e permitindo a cobrança de juros, ao incorrer deliberadamente em suposta demora.  Caso se reconhecesse desde o princípio que os contratos eram de mútuo ou de empréstimo, tais juros não seriam canonicamente permitidos.

Por fim, encontramos evidências de que os juristas romanos entenderam a diferença essencial que existe entre o contrato de empréstimo ou mútuo e o contrato de depósito monetário irregular no número 26 do título III do livro XVI (excerto de Paulo), nos excertos de Ulpiano compilados no número 9 do título I do livro XII do Digesto e no número 10 do mesmo título, entre outros.  Contudo, a asserção mais clara e evidente disso mesmo é também de Ulpiano e pode ser encontrada na seção 2 do número 24 do título V do livro XVII do Digesto, onde o jurista conclui expressamente que “uma coisa é conceder um empréstimo, outra é depositar”, estabelecendo que “depois de vendidos os bens de um banqueiro e de atendidos os privilegiados, deve se dar preferência àqueles que com fé pública depositaram dinheiro no banco.  Mas não se separam dos restantes os credores que tenham recebido dos banqueiros juros pelo dinheiro depositado; e com razão, porque uma coisa é conceder um empréstimo, outra é depositar”.[44] É, pois, claro neste excerto de Ulpiano que os banqueiros faziam dois tipos de operações distintas.  Por um lado, a recepção de depósitos, que não davam direito a juros e obrigavam à manutenção plena e contínua da disponibilidade do tantundem a favor dos depositantes, que tinham o privilégio absoluto em caso de falência.  Por outro lado, uma operação distinta, que consistia em receber empréstimos (contrato de empréstimo ou mútuo), o que dava origem à obrigação de os banqueiros pagarem juros a quem lhes tivesse entregado o dinheiro do empréstimo, que não tinha qualquer privilégio em caso de falência.  A clareza conceitual de Ulpiano na distinção entre ambos os contratos e a justiça das soluções não podiam ser maiores.

Os princípios jurídicos universais que regulam o contrato de depósito monetário irregular já tinham sido, portanto, descobertos e analisados pelos juristas clássicos romanos, em natural correspondência com o desenvolvimento de uma economia comercial e financeira significativa, na qual o papel dos bancos se tornou muito importante.  Mais tarde, estes princípios passaram a fazer parte dos códigos legais medievais de diferentes países da Europa, incluindo dos de Espanha, apesar da séria recessão econômica e financeira resultante da queda do Império Romano e do advento da Idade Média.  Desta forma, em Las Partidas (Lei II, Título III, Partida V) estabelece-se que quem recebe mercadorias por conta de outrem aceita um depósito irregular que lhe é transmitido pelo proprietário das mesmas, ficando obrigado, em troca, segundo o acordado na escritura correspondente, a devolver ao depositante as mercadorias recebidas ou o valor indicado no contrato de todas as mercadorias que tiverem sido retiradas do depósito, seja por tê-las vendido com a autorização do proprietário anterior, seja por outras causas imprevistas.[45] Além disso, também noFuero Real (Lei V, Título XV, Livro III) se faz a distinção entre o depósito de “algum dinheiro contado ou ouro ou prata em bruto”, recebido de “outros, a peso”, que o depositário “pode usar, devolvendo bens da mesma qualidade e quantidade”, do depósito “selado e não contado ou pesado”, que “não pode ser usado, mas se for, deve ser devolvido em dobro”.[46] Podemos verificar, pois, que nestes Códigos medievais se distingue claramente entre o depósito regular de um bem específico e o depósito monetário irregular e se afirma que neste último se transfere a propriedade do bem.  No entanto, possivelmente como consequência da crescente influência da figura do depositum confessatum, os códigos não incluem especificações feitas noCorpus juris civilis a respeito do fato de que embora se “transfira” a propriedade, a obrigação de custódia mantém-se, e, com ela, a obrigação de ter sempre à disposição do depositante o equivalente (tantundem) em quantidade e qualidade do depósito original.

Podemos concluir, portanto, que a tradição jurídica romana definiu corretamente os contornos da instituição do depósito monetário irregular, traçando os seus princípios e as diferenças essenciais em relação a outras instituições ou contratos jurídicos como o empréstimo ou mútuo.  No próximo capítulo, vamos analisar a forma como os princípios essenciais que regulam as interações humanas relativas ao depósito monetário irregular e, concretamente, os direitos de propriedade e de disponibilidade implicados pelo mesmo, se foram corrompendo paulatinamente ao longo dos séculos, como resultado da ação combinada de banqueiros e governantes, assim como as razões e circunstâncias que facilitaram e tornaram possível esse processo.  No capítulo III, estudaremos as diferentes tentativas jurídicas para dar cobertura legal aos contratos que, contrariando os princípios tradicionais do Direito, foram sendo admitidos.  A partir do capítulo IV, estudaremos as consequências econômicas de todo esse processo.



[1] Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa / Editorial Verbo, 2001, p. 1382, primeira acepção do termo «empréstimo».

[2] Manuel Albaladejo, Derecho civil II, Derecho de obligaciones, vol. II, Los contratos en particular y las obligaciones no contratuales, Librería Bosch, Barcelona 1975, p. 304

[3] Juan Iglesias, Derecho romano: Instituciones de derecho privado, 6.ª edição revista e ampliada, Ediciones Ariel, Barcelona 1972, pp. 408-409.

[4] São fungíveis as coisas que podem ser substituídas por outras da mesma categoria. Isto é, são coisas que não são tratadas separadamente, mas em termos de quantidade, peso ou medida. Os romanos diziam que eram fungíveis as coisas quae in genere suo functionem in solutione recipiunt, es decir, las res quae pondere numero mensurave constant. Os bens consumíveis são frequentemente fungíveis.

[5] O meu aluno César Martínez Meseguer convenceu-me de que outra solução adequada para este problema seria considerar que no depósito irregular não há transferência real da propriedade, mas que o conceito de transferência se refere abstratamente ao tantundem ou quantidade de bens depositados e como tal mantém-se sempre a favor do depositante. Esta é a solução adotada no caso da comistão, por exemplo, regulada pelo artigo 381 do Código Civil Espanhol, que admite que “cada proprietário adquirirá um direito proporcional à parte que lhe corresponda”. Embora no depósito irregular se tenha vindo tradicionalmente a considerar outra coisa (a efetiva transferência da propriedade sobre as unidades físicas), parece mais correto admitir que a propriedade se pode definir nos termos mais abstratos do artigo 381 do Código Civil Espanhol, em cujo caso pode considerar-se que não há qualquer transferência da mesma quando se efetua um depósito irregular. Acrescente-se que esta parece ser a opinião de Luis Díez-Picazo e António Gullón, Sistema de derecho civil, 6th ed. Madrid: Editorial Tecnos, 1989, vol. 2, pp. 469–70.

[6] No caso concreto do depósito monetário irregular, é preciso acrescentar a estas vantagens a que deriva do eventual serviço de caixa que os bancos oferecem de forma generalizada.

[7] Como realça Coppa-Zuccari oportunamente, “a differenza del deposito regolare, l’irregolare gli garantisce la restituzione del tantundem nella stessa specie e qualità, sempre ed in ogni caso […] Il deponente irregolare è garantito contro il caso fortuito, contro il quale il depositario regolare non lo garantisce; trovasi anzi in una condizione economicamente ben più fortunata che se fosse assicurato”. (Ver: Pasquale Coppa-Zuccari, Il deposito irregolare [Modena: Biblioteca dell’ Archivio Giuridico Filippo Serafini, 1901], vol. VI, pp. 109–110).

[8] Provavelmente foi Coppa-Zuccari quem expressou melhor do que ninguém este princípio essencial do depósito irregular quando disse que o depositário: “risponde della diligenza di un buon padre di famiglia indipendentemente da quella che esplica nel giro ordinariodella sua vita economica e giuridica. Il depositario invece, nella custodia delle cose ricevute in deposito, deve spiegare la diligenza, quam suis rebus adhibere solet. E questa diligenza diretta alla conservazione delle cose propie, il depositario esplica: in rapporto alle cose infungibili, con l’impedire che esse si perdano o si deteriorino; il rapporto alle fungibili, col curare di averne sempre a disposizione la medesima quantità e qualità. Questo tenere a disposizione una eguale quantità è qualità di cose determinate, si rinnovellino pur di continuo e si sostituiscano, equivale per le fungibili a ciò che per le infungibili è l’esistenza della cosa in individuo”. Pasquale Coppa-Zuccari, Il deposito irregolare, ob. cit. p. 95.  A mesma tese é defendida por Joaquín Garrigues em Contratos bancarios, Madrid, 1975, p. 365, e mantida por Juan Roca Juan no seu artigo sobre o depósito em dinheiro (Comentarios al Código Civil y Compilaciones Forales, sob a direção de Manuel Albaladejo, tomo XXII, vol. 1, Editorial Revista del Derecho Privado EDERSA, Madrid, 1982, pp. 246–255), no qual chega à conclusão de que no depósito irregular a obrigação de custódia significa, precisamente, que o depositário “deve ter à disposição do depositante, em qualquer momento, a quantidade depositada e, por isso, deve guardar o número de unidades da mesma espécie necessário para restituir a quantidade quando tal lhe for solicitado” (p. 251).  Ou seja, no caso do depósito monetário irregular, a obrigação de custódia consubstancia-se na exigência de manter um coeficiente de caixa de 100%.

[9] Outros crimes relacionados são os que se cometem nos casos em que o depositário falsifica o número de certificados ou títulos de entrega.  Seria o caso do armazenista de azeite que emitisse recibos de entrega falsos para que fossem negociados por terceiros e, em geral, o de todos os depositários de um bem fungível (incluindo o dinheiro) que emitissem certificados ou recibos de uma quantidade superior à efetivamente depositada.  É evidente que neste caso estaríamos perante os crimes de falsificação de documentos (pela emissão do certificado falso) e de estelionato (se com a emissão do certificado se pretendia enganar terceiros e obter um determinado lucro).  Mais adiante verificaremos como o processo histórico de evolução das redes bancárias se baseou na perpetração deste tipo de atos criminosos em relação ao “negócio” de emissão de notas de banco.

[10] Antonio Ferrer Sama, El delito de apropiación indebida. Publicaciones del Seminario de Derecho Penal de la Universidad de Murcia. Múrcia: Editorial Sucesores de Nogués, 1945, pp. 26–27. Tal como indicamos no texto, e explica também Eugenio Cuello Calón (Derecho penal, Barcelona: Editorial Bosch, 1972, tomo II, seção especial, 13ª edição, vol. 2, pp. 952-953), o crime é consumado no momento em que se verifica a apropriação ou o desvio de fundos, e deriva, realmente, da intenção de apropriar.  Sendo um ato de natureza privada, a apropriação deve ser avaliada por sinais exteriores (como a alienação, consumo ou empréstimo do bem) e não quando é descoberta, geralmente muito tempo depois, pelo depositante que, ao ir levantar o seu depósito, repara, surpreendido, que o depositário não lhe pode entregar o tantundem de imediato. Por sua vez, Miguel Bajo Fernández, Mercedes Pérez Manzano, e Carlos Suárez González, (Manual de derecho penal, secção especial, “Delitos patrimoniales y económicos”, Editorial Centro de Estudios Ramón Areces, Madrid: 1993) concluem também que o crime se consuma no momento em que se produz o ato de disposição, independentemente dos resultados subsequentes, e continua a ser crime mesmo que o objeto seja recuperado ou que o autor não obtenha lucro com a apropriação, seja ou não o depositário capaz de devolver o tantudem no momento em que essa devolução lhe é solicitada (p. 421).  Os mesmos autores consideram que existe uma lacuna legal inaceitável na lei criminal espanhola, quando comparada com outros sistemas legais em que existem “disposições específicas sobre crimes societários e sobre o abuso de confiança, ao abrigo das quais seria possível tratar os comportamentos ilícitos dos bancos em relação ao depósito irregular em contas correntes” (p. 429).  No caso concreto do direito penal espanhol, o artigo que regula a apropriação indevida, e que é comentado por Antonio Ferrer Sama, é o 252 do novo Código Penal de 1996 (art. 528 do antigo), que diz: “Será castigado com as penas assinaladas no artigo 249 ou 250, conforme o caso, quem, em prejuízo de terceiros, desviar ou se apropriar de dinheiro, bens, valores ou qualquer outra coisa móvel ou ativo patrimonial que tiver recebido em depósito, comissão ou confiança, ou noutra figura que dê origem à obrigação de entregar ou devolver a propriedade, ou quem negar tê-la recebido, quando a quantia apropriada exceder os 400 euros. Esta pena elevar-se-á em 50% nos casos de depósito necessário”.  Por fim, o trabalho mais completo sobre os aspectos penais relativos à apropriação pecuniária indevida, que trata in extenso da posição dos professores Ferrer Sama, Bajo Fernández, e outros, é o de Norberto J. de la Mata Barranco, Tutela penal de la propiedad y delitos de apropiación: el dinero como objeto material de los delitos de hurto y apropiación indebida, Promociones y Publicaciones Universitarias (PPU, S.A.), Barcelona: 1994, especialmente as pp. 407–408 e 512.

[11] Tais decisões judiciais foram coligidas por Jean Escarra em Principes de droit commercial, p. 256; Joaquín Garrigues refere-as também em Contratos bancarios, ob. cit., pp. 367–368.

[12] “Dictamen de Antonio Goicoechea”, em La Cuenta corriente de efectos o valores de un sector de la banca catalana y el mercado libre de valores de Barcelona, Imprenta Delgado Sáez, Madrid: 1936, pp. 233–289, esp. pp. 263–264. Joaquín Garrigues refere também esta sentença em Contratos bancarios, ob. cit., p. 368.

[13] Esta sentença é citada no estudo de José Luis García-Pita y Lastres “Los depósitos bancarios de dinero y su documentación”, publicado em La revista de derecho bancario y bursátil, Centro de Documentación Bancaria y Bursátil, Outobro-Dezembro de 1993, pp. 919–1008, especialmente a p. 991. Joaquín Garrigues faz também referência a esta sentença em Contratos bancarios, ob. cit., p. 387.

[14] Ludwig von Mises, The Theory of Money and Credit, Liberty Classics, Indianapolis: 1980, pp. 300–301. Esta é a melhor versão inglesa da tradução de H.E. Batson da segunda edição alemã publicada em 1924 de Theorie des Geldes und der Umlaufsmittel, publicada por Duncker & Humblot em Munique e Leipzig.  A primeira edição tinha sido publicada em 1912. Não existem traduções em Português desta obra. Apresentamos, por isso, a seguinte proposta de tradução para a passagem transcrita do texto: “economicamente não se trata de um caso de transação de crédito.  Se, do ponto de vista econômico, crédito significa a troca de um bem ou serviço presente por um bem ou serviço futuro, dificilmente será possível incluir as transações em questão [os depósitos irregulares] dentro da concepção de crédito.  O depositante de um montante em dinheiro que adquire em troca um título conversível em moeda a qualquer momento, que, realiza para ele o mesmo serviço do montante que substitui, não trocou o bem presente por um bem futuro.  O título que adquiriu pelo depósito é também um bem presente.  O depósito pecuniário não significa de forma nenhuma que ele renuncie à disponibilidade imediata da utilidade que serve.” […] Por isso, o depósito, “não é uma transação de crédito, uma vez que o lhe falta o elemento essencial: a troca de bens presentes por bens futuros”.

[15]Conseguenza immediata del diritto concesso al deponente di ritirare in ogni tempo il deposito e del correlativo obbligo del depositario di renderlo alla prima richiesta e di tenere sempre a disposizione del deponente il suo tantundem nel deposito irregolare, è l’impossibilità assoluta per il depositario di corrispondere interessi al deponente.” Pasquale Coppa-Zuccari, Il deposito irregolare, ob. cit., p. 292.  Coppa-Zuccari realça também que esta incompatibilidade entre o depósito irregular e o pagamento de juros não se aplica, como é lógico, ao caso completamente distinto em que os juros são atribuídos quando o depositário não entrega o dinheiro no momento em que esta entrega é solicitada, ficando, assim, em falta.  Por isso, a figura do chamado depositum confessatum foi, como veremos adiante, usada sistematicamente ao longo da Idade Média como uma manobra jurídica para contornar a proibição canônica de cobrança de juros nos empréstimos.

[16] Ludwig von Mises, The Theory of Money and Credit, ob.cit., p. 301. Apresentamos a seguinte proposta de tradução para a passagem transcrita do texto: “o título obtido em troca do montante de dinheiro é igualmente valioso para o depositante, quer ele o converta mais cedo ou mais tarde ou nem chegue a convertê-lo; e por isso pode, sem prejudicar os seus interesses econômicos, adquirir tais títulos em troca da entrega de dinheiro sem exigir compensação por qualquer diferença de valor decorrente da diferença de tempo entre o momento do pagamento e o do reembolso, uma vez que, na verdade, essa diferença não existe”.

[17] O fato de os acordos de pagamentos de juros serem incompatíveis com o contrato de depósito monetário irregular não significa que este deva ser gratuito.  Na verdade, de acordo com a sua própria natureza, é normal que se estipule o pagamento, do depositante ao depositário, de uma determinada quantia tendo em conta os gastos decorrentes da custódia do depósito ou da preservação da conta.  O pagamento de juros, implícito ou explícito, é um indício racional de que a obrigação essencial de custódia no contrato de depósito irregular está a ser violada e de que o depositário está a usar o dinheiro dos seus depositantes para benefício próprio, apropriando-se indevidamente de parte do tantundem, que deveria manter sempre disponível para os depositantes.

[18] J. Dabin, La teoría de la causa: estudio histórico y jurisprudencial, traduzido por Francisco de Pelsmaeker e adaptado por Francisco Bonet Ramón, 2.ª ed., Editorial Revista de Derecho Privado, Madrid: 1955), pp. 24 e seguintes.  Que a causa do contrato de depósito irregular é a de guarda e custódia e é diferente da causa do contrato de empréstimo é reconhecido até por autores que, como Garcia-Pita ou Ozcáriz-Marco, continuam sem aceitar que a consequência lógica inevitável do seu ponto de partida seja a exigência de um coeficiente de caixa de 100% para os depósitos à vista dos bancos. Ver: José Luis García-Pita y Lastres, “Depósitos bancarios y protección del depositante”, Contratos bancarios, Colegios Notariales de España, Madrid: 1996, pp. 119–266, e especialmente as pp.167–91; e, mais recentemente, “El depósito bancario de efectivo”, em Contratos bancarios e parabancarios, VV. AA., Cap. XXII, Edit. Lex Nova, Valladolid 1998, pp. 888—1001; e Florencio Ozcáriz Marco, El contrato de depósito: estudio de la obligación de guardaJ.M. Bosch Editor, Barcelona: 1997, pp. 37 e 47.

[19] Os civilistas são unânimes em assinalar o caráter essencial do prazo no contrato de empréstimo, ao contrário do que acontece com o contrato de depósito irregular, que não tem prazo.  Manuel Albaladejo insiste em que o mútuo termina, e o empréstimo deve ser devolvido, quando o dito prazo tiver acabado (veja-se, por exemplo, o artigo 1125 do Código Civil Espanhol), indicando até que se não tiver sido estipulado de forma explícita, como o mesmo é parte inseparável da natureza essencial do contrato de empréstimo, deve-se sempre deduzir que houve intenção de fixar um prazo ao devedor. Assim, caberá a uma terceira parte (os tribunais) a fixação do prazo correspondente (esta é a solução adoptada no art. 1128 do Código Civil Espanhol).  Ver: Manuel Albaladejo, Derecho civil II, Derecho de obligaciones, vol. II, Los contratos en particular e las obligaciones no contratuales, ob. cit., p. 317.

[20] A contínua disponibilidade a favor do depositante refere-se, evidentemente, ao tantundem, e não à disponibilidade concreta das mesmas unidades específicas que tinham sido depositadas.  Ou seja, embora se transfira a propriedade das unidades físicas concretas depositadas e elas possam ser usadas, o depositário não ganha qualquer tipo de disponibilidade real, uma vez que a disponibilidade que obtenha do uso dos bens específicos recebidos é compensada de forma exata pela exigência de perda da disponibilidade equivalente de outras unidades específicas já em seu poder, que advém da obrigação de manter o tantundemconstantemente disponível para o depositante.  No contrato de depósito em dinheiro, esta disponibilidade constante a favor do depositante é geralmente referida pela expressão ‘à vista’, que ilustra o objetivo essencial e inconfundível do contrato: manter continuamente a disponibilidade do tantundem para o depositante.

[21] Aqui, interessa esclarecer que existe um contrato denominado “depósito a prazo”, cujas características, tanto econômicas como jurídicas, são as de um verdadeiro empréstimo, e não as de um depósito. É importante realçar que o uso desta terminologia induz as pessoas em erro e mascara a existência daquilo que não é senão um verdadeiro contrato de empréstimo, pelo qual se transferem bens presentes em troca de bens futuros, se perde a disponibilidade da moeda durante um período de tempo determinado e se tem direito a cobrar os juros correspondentes.  A utilização desta confusa terminologia faz com que seja ainda mais difícil e complicado que os cidadãos distingam entre um verdadeiro depósito (à vista) e um contrato de empréstimo (a prazo) e foi sendo mantida de forma interessada e contínua por todos os agentes econômicos, que se aproveitam da atual confusão.  Toda esta situação se torna ainda mais grave nas muitas vezes em que a prática bancária converte os “depósitos” a prazo (que deveriam ser verdadeiros empréstimos) em depósitos “à vista” de fato, ao oferecerem a possibilidade de obter o reembolso em qualquer altura e sem penalização.

[22] Carl Menger, Untersuchungen über die Methode der Socialwissenschaften und der Politischen Ökonomie insbesondere (Leipzig: Duncker and Humblot, 1883), em especial a p. 182.  O próprio Menger formula impecavelmente a pergunta a que o programa de pesquisa científica que propõe para a economia pretende responder: “Como é possível que as instituições que melhor servem o bem comum e que são claramente mais significativas para o seu desenvolvimento tenham surgido sem a intervenção de uma vontade comum e deliberada para criá-las?” (pp. 163-165) A descrição mais sintética, e talvez mais brilhante, da teoria de Menger sobre a origem evolutiva do dinheiro encontra-se no seu artigo publicado em inglês com o título “On the Origin fo Money”, Economic Journal, Junho de 1892, pp.239-255.  Este artigo foi republicado muito recentemente por Israel M. Kirzner no seu Classics in Austrian Economics: A Sampling in the History of a Tradition, WilliamPickering, London: 1994, vol. I, pp. 91–106.

[23] F. A. Hayek, Los fundamentos de la libertad, 5.ª ed., Unión Editorial, Madrid 1990; Derecho, legislación y libertad, 3 volúmenes, Unión Editorial, Madrid 1976-1982; e La fatal arrogancia: los errores del socialismo, Unión Editorial, Madrid 1990 (2.ª ed., 1997).

[24] Ver Jesús Huerta de Soto, Estudios de economía política, ob. cit., cap. X, pp. 121-128, bem como a segunda edição espanhola do livro de Bruno Leoni La libertad y la ley, Unión Editorial, Madrid 1995, cujo conhecimento é essencial para qualquer jurista ou economista.

[25]Nostra autem res publica non unius esset ingenio, sed multorum, nec una hominis vita, sed aliquod constitutum saeculis et aetatibus, nam neque ullum ingenium tantum extitisse dicebat, ut, quem res nulla fugeret, quisquam aliquando fuisset, neque cuncta ingenia conlata in unum tantum posse uno tempore providere, ut omnia complecterentur sine rerum usu ac vetustate“.  Marco Tulio Cicero, De re publica, II, 1-2, The Loeb Classical Library, Cambridge, Massachusetts, 1961, pp. 111-112. Ver Bruno Leoni, Freedom and the Law (1.ª ed., D. Van Nostrand Co., 1961; 3.ª. ed., ampliada, Liberty Fund, Indianápolis, 1991).  O livro de Leoni é, a todos os títulos, excepcional, não só por mostrar o paralelismo existente, por um lado, entre o mercado e o direito consuetudinário ou common law e por outro, entre a legislação positiva e o socialismo, mas também por ter sido o primeiro jurista a perceber que o argumento de Ludwig von Mises sobre a impossibilidade do cálculo econômico no socialismo não passa de um caso particular do “princípio mais geral, segundo o qual nenhum legislador poderia estabelecer por si mesmo, sem algum tipo de colaboração contínua por parte de toda a população envolvida, as normas que regulam a conduta de cada um nessa perpétua cadeia de relações que todos têm com todos”. (p. 28).  Para conhecer a obra de Bruno Leoni, fundador da prestigiada revista Il Politico em 1950, deve consultar-se o livro Omaggio a Bruno Leoni, editado por Pasquale Scaramozzino, Ed. A. Giuffrè, Milán 1969, bem como o artigo “Bruno Leoni in Retrospect” de Peter H. Aranson, Harvard Journal of Law and Public Policy, Verão de 1988. Leoni foi um homem multifacetado que desenvolveu uma intensa atividade nos campos do ensino universitário, da advocacia, da atividade empresarial, da arquitetura, da música e da linguística. Faleceu tragicamente assassinado por um de seus inquilinos quando tentava cobrar o aluguel, na noite de 21 de novembro de 1967, aos 54 anos de idade.

[26] Na palavras do próprio Bruno Leoni, o Direito configura-se como “una continua serie de tentativi, che gli individui compiono quando pretendono un comportamento altrui, e si affidano al propio potere di determinare quel comportamento, qualora esso non si determini in modo spontaneo“.  Bruno Leoni, “Diritto e politica”, em Scritti di scienza politica e teoria del diritto, A. Giuffrè, Milán 1980, p. 240.

[27] De fato, o intérprete do ius é o prudens, ou seja, o perito em matéria jurídica ou iuris prudens.  É ele quem tem a tarefa de revelar o direito.  Os juristas aconselham e ajudam os indivíduos, instruem-nos sobre as fórmulas dos negócios ou contratos, respondem às suas questões e assistem os juizes e magistrados. Ver: Juan Iglesias, Derecho romano: Instituciones de derecho privado, ob. cit., pp. 54-55.

[28] Juan Iglesias, Derecho romano: Instituciones de derecho privado, ob. cit., p. 56. E sobretudo Rudolf von Ihering. El espíritu del derecho romano, Clásicos del Pensamiento Jurídico, Marcial Pons, Madrid 1997, especialmente, pp. 196-202 e 251-253.

[29] Intimamente relacionada com o papel de aconselhamento não só a particulares, mas também a magistrados e juizes, estava a função de interpretatio, que consistia em aplicar princípios antigos a necessidades novas, o que supunha um alargamento do ius civile, ainda que não fossem criadas novas instituições.  Francisco Hernández-Tejero Jorge, Lecciones de derecho romano, Ediciones Darro, Madrid 1972, p. 30.

[30] Esta força legal foi adquirida pela primeira vez numa constituição do ano de 426, conhecida como Lei das Citações de Teodósio II e Valentiniano III. Ver Hernández-Tejero Jorge, Lecciones de derecho romano, ob. cit., p. 3.

[31] Corpus iuris civilis, edição de Dionísio Godofredo, Genebra 1583.

[32] Justiniano ordenou que fossem feitas as alterações necessárias nos materiais compilados para que a lei se tornasse apropriada para as circunstâncias de seu tempo e o mais perfeita possível. Estas alterações, correções e supressões denominam-se interpolações, tendo sido também chamadas emblemata Triboniani, uma vez que foi Triboniano quem ficou encarregado de efetuar a compilação.  Existe toda uma disciplina dedicada ao estudo de tais interpolações, à descoberta do seu conteúdo por meio de comparação, análise lógica, estudo de anacronismos na linguagem, etc., tendo sido descoberto que um grande número das mesmas são posteriores à própria época justiniana. Ver: Francisco Hernández-Tejero Jorge, Lecciones de derecho romano, ob. cit., pp. 50–51.

[33] Ulpiano, oriundo de Tiro (Fenícia), foi assessor de outro grande jurista, Papiniano, e, juntamente com Paulo, foi membro assessor do concilium principis e do praefectus praetorio sob orientação de Alexandre Severo. Morreu assassinado pelos pretorianos no ano de 228. Foi um autor muito prolífico que se distinguiu mais pelos conhecimentos de literatura jurídica do que pela obra criadora. Bom compilador e escritor claro, seus escritos são escolhidos, com especial atenção para o Digesto de Justiniano, constituindo o seu núcleo fundamental. Ver, a propósito, Juan Iglesias, Derecho romano: Instituciones de derecho privado, ob. cit., p. 58.  A passagem que citamos no texto é a seguinte em latim: “Depositum est, quod custodiendum alicui datum est, dictum ex eo, quod ponitur, praepositio enim de auget depositum, ut ostendat totum fidei eius commissum, quod ad custodiam rei pertinet.

[34] Contudo, como bem indica Pasquale Coppa-Zuccari, a expressão depositum irregolare não surge até ser utilizada pela primeira vez por Jason de Maino, um glosador do século XV, cuja obra foi publicada em Veneza no ano de 1513. Ver: Coppa-Zuccari, Il deposito irregolare, ob. cit., p. 41. Para mais informações sobre o tratamento do depósito irregular no Direito Romano, deverá consultar-se também todo o capítulo I desta importante obra de Coppa-Zuccari, pp. 2-32. Na Espanha há um tratamento muito bom e atualizado da bibliografia relativa ao depósito irregular romano no artigo de Mercedes López-Amor y Garcia “Observaciones sobre el depósito irregular romano“, em Revista de la Facultad de Derecho de la Universidad Complutense 74, curso 1988-1989, pp. 341-359.

[35] Na verdade, trata-se de um epítome ou resumo que Paulo fez do Digesto de Alfeno Varo. Alfeno Varo foi cônsul no ano 39 D.C. e autor de 40 livros do Digesto. Por sua vez, Paulo foi discípulo de Scevola e assessor de Papiniano, quando este era membro do conselho imperial sob direção de Severo e Caracalla. Homem de grande engenho e formação doutrinal, foi autor de numerosos escritos. A passagem que citamos no texto é a seguinte em latim: “Idem iuris esse in deposito; nam si quis pecuniam numeratam ita deposuisset ut neque clausam, neque obsignatam traderet, sed adnumeraret, nihil aliud eum debere, apud quem deposita esset, nisi tantundem pecuniae solvere.” Ver Ildefonso L. García del Corral, Cuerpo de derecho civil romano, ob. cit., vol. I, p. 963.

[36] Papiniano, oriundo da Síria, foi Praefectus Praetorio a partir do ano de 203 D.C. tendo sido condenado à morte pelo imperador Caracalla em 212, ao negar-se a justificar o assassinato do seu irmão, Geta.  Partilhou com Juliano a reputação de ser o mais notável dos juristas romanos e, de acordo com Juan Iglesias, “destaca-se nos seus escritos pela sagacidade e sentido prático, mantendo sempre um estilo sóbrio” (Derecho romano: Instituciones de derecho privado, ob. cit., p. 58).  A passagem que citamos no texto é a seguinte em latim: “centum numos, quos hac die commendasti mihi annumerante servo Sticho actore, esse apud me, ut notum haberes, hac epitistola manu mea scripta tibi notum facio; quae quando volis, et ubi voles, confestim tibi numerabo.” Ildefonso García del Corral, Cuerpo de derecho civil romano, ob. cit., vol. I, p. 840)

[37]Quoties foro cedunt numularii, solet primo loco ratio haberi depositariorum, hoc est eorum, qui depositas pecunias habuerunt, non quas foenore apud numularios, vel cum numulariis, vel per ipsos exercebant; et ante privilegia igitur, si bona venierint, depositariorum ratio habetur, dummodo eorum, qui vel postea usuras acceperunt, ratio non habeatur, quasi renuntiaverint deposito“.  Ildefonso García del Corral, Cuerpo de derecho civil romano, ob. cit., vol. I, p. 837). Note-se que o termo utilizado aqui para designar os banqueiros não é argentarii mas numularii ou numulários, que chegou até ao protuguês (numulário: “indivíduo que tem muito dinheiro; argentário; banqueiro; capitalista”, Houaiss, Antônio, Mauro Villar, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa S/C Ltda., Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001).

[38]Furtum est contrectatio rei fraudulosa, lucri faciendi gratia, vel ipsius rei, vel etiam usus eius possessionisve; quod lege naturali prohibitum est admittere“. Ver: Ildefonso L. García del Corral, Cuerpo de derecho civil romano, ob. cit., tomo III, p. 645.

[39] Ibidem, p. 663.

[40] Si depositi experiaris, non immerito etiam usuras tibi restitui flagitabis, quum tibi debeat gratulari, quod furti eum actione non facias obnoxium, siquidem qui rem depositam invito domino sciens prudensque in usus suus converterit, etiam furti delicto succedit. (Ibid., vol. 4, p. 490) Ver Ildefonso L. García del Corral,Cuerpo de derecho civil romano, ob. cit., tomo IV, p. 490.

[41] Si is, qui depositam a te pecuniam accepit, eam suo nomine vel cuiuslibet alterius mutuo dedit, tam ipsum de implenda suscepta fide, quan eius successores teneri tibi, certissimum est.” Ildefonso L. García del Corral, Cuerpo de derecho civil romano, ob. cit., tomo IV, p. 491.

[42] Ut hoc timore stultorum simul et perversorum maligne versandi cursum in depositionibus homines cessent.” Está claro, como veremos, mais adiante no próximo capítulo, que os depositários faziam uso perverso das quantias que lhes eram confiadas pelos depositantes. Ver: Ildefonso L. García del Corral, Cuerpo de derecho civil romano, ob. cit., tomo VI, pp. 310-311.

[43]Qui pecuniam apud se non obsignatam, ut tantundem redderet, depositam ad usus propios convertit, post moram in usuras quoque iudicio depositi condemnandus est“. Ildefonso L. García del Corral, Cuerpo de derecho civil romano, ob. cit., tomo I, p. 841

[44]In bonis mensularii vendundis post privilegia potiorem eorum causam esse placuit, qui pecunias apud mensam fidem publicam secuti deposuerunt. Set enim qui depositis numis usuras a mensulariis accepurunt, a ceteris creditoribus non seperantur; et merito, aliud est enim credere, aliud deponere“.  Ildefonso L. García del Corral, Cuerpo de derecho civil romano, ob. cit., tomo III, p. 386.  Papiniano, por sua vez, diz que em caso de descumprimento do depositário, a devolução dos depósitos pode ser feita utilizando dinheiro depositado que se encontre entre os bens do banqueiro, mas também do defraudador.  Os privilégios do depositante “estendem-se não só ao dinheiro depositado que se encontrou nos bens do banqueiro, mas também a todos os bens do defraudador; e isto aplica-se tendo em vista o bem público, dada a necessidade dos serviços bancários.  Contudo, têm prioridade as despesas feitas por necessidade, uma vez que o cálculo dos bens faz-se normalmente depois de aquelas serem descontadas”.  Este princípio da responsabilidade ilimitada dos banqueiros pode ser encontrado no número 8 do título III do livro XVI do Digesto.

[45] Em Las Partidas os depósito denominam-se condesijos, e na lei II podemos ler que “o controle sobre a posse dos bens que são dados em guarda não se transfere para quem os recebe, exceto quando os bens podem ser contados, pesados ou medidos no momento da entrega.  Se forem entregues ao receptor por quantidade, peso ou medida, o controlo de propriedade é transferido. Contudo, este deve devolver o bem ou a mesma quantidade de outro igual àquele que lhe foi entregue para guarda”.  A clareza com que se expressam Las Partidas sobre este tema não podia ser maior. Ver: Las Siete Partidas, glosadas pelo licenciado Gregorio López, publicadas na edição facsimile pelo Boletín Oficial del Estado, Madrid 1985, vol. III, 5.ª Partida, título III, ley II, pp. 7-8.

[46] Ver a referência feita por Juan Roca Juan ao Fuero Real no seu artigo sobre “El depósito de dinero”, emComentarios al Código Civil y Compilaciones Forales, tomo XXII, vol. I, p. 249.

 

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