Os desafios de Javier Milei

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A vitória eleitoral de Javier Milei na Argentina colocou o mundo libertário, e especialmente o ANCAP, em uma situação sem precedentes. Eles vão verificar se suas medidas podem ou não ser executadas a partir de uma posição de governo. É claro que houve muitas discussões sobre isso. Os mais otimistas veem uma oportunidade do desmantelamento de grande parte do aparato estatal por dentro. Os mais ortodoxos veem tal missão não apenas como impossível, mas até mesmo como contraproducente.

Esta última posição afirma que o previsível fracasso de muitas das medidas adotadas pelo novo presidente argentino afetará o movimento libertário. Hipotéticos maus resultados estarão associados ao libertarianismo. Isso reforçará a posição dos críticos, que mais uma vez enfatizarão a utopia de nossas medidas ou sua inviabilidade. Tudo isso sem levar em conta o fato de que o presidente afirma publicamente ser ancap. E acho que ele, pelo menos, internalizou essa posição. Mas muitas das medidas que ele está tomando claramente não são, nem mesmo minarquistas, embora sejam válidas para um liberal clássico convencional.

O programa de Javier Milei não é anarcocapitalista

É preciso, portanto, distinguir o programa de Milei de um programa anarcocapitalista. Tal programa não pode ser implementado por meios políticos, mas requer muita paciência e tempo. E, sobretudo, de uma população, ou pelo menos de uma parte substancial dela, formada nesses princípios e com a vontade de construí-los a partir de baixo. Da mesma forma que os construtores de catedrais sabiam que muito provavelmente não as veriam terminadas, o atual ancap deve saber que também não verá tal sociedade em vida. Este deve ser o seu mérito e a sua satisfação deve ser apenas a de contribuir para a sua construção.  Mas isso em nada prejudica o trabalho do presidente Milei.

Primeiro, porque contribui para a disseminação da ideologia, pelo menos em seu aspecto teórico. Nunca antes os velhos economistas austríacos como Mises ou os austrolibertários da escola rothbardiana foram tão conhecidos e discutidos. De fato, livros e ensaios acadêmicos críticos a essas ideias já começam a aparecer. Isso prova que já passamos para um estágio em que a refutação é necessária. E isso é bom, porque os críticos são obrigados a olhar com seriedade para as nossas ideias, para além do cliché. Por sua vez, podemos aguçar nossos argumentos respondendo às suas críticas, ou corrigi-las, se apropriado.

Possíveis lições do governo de Javier Milei

O primeiro passo para a construção de uma futura sociedade sem Estado é que haja um grupo consciente e bem formado em nossas ideias. Dessa forma, você conseguirá divulgá-las e antecipar eventuais problemas que possam surgir. Esse grupo de pessoas constituirá os quadros necessários para testar propostas em pequena escala e defendê-las de seus críticos em um nível mais amplo do que o atual. Isso também fará com que eles sobrevivam ao longo do tempo. As políticas de Milei podem trazer alguma confusão sobre a ideologia. Mas o conhecimento adequado pode ajudar a diferenciar o que é conjuntural e pragmático sobre a ação governamental dos verdadeiros princípios orientadores.

O governo de Javier Milei pode servir a outra coisa. Podemos observar até que ponto os meios políticos, ou seja, o jogo eleitoral democrático, podem ser utilizados para implementar determinadas medidas. E verificar a possível resistência que possam ter, tanto a nível das bases como sobretudo ao nível do próprio Estado. Ou estou muito enganado, ou é altamente improvável que os atores estatais concordem em reduzir o alcance de seu poder sem resistência. É a exceção de que o que eles perdem de um lado eles podem ganhar do outro.

A resistência dos interesses constituídos

Já comentamos em artigos anteriores que o Estado não é composto apenas por atores políticos, aqueles que emergem do processo democrático. Há outros atores que formam seu núcleo duro, de juízes a atores econômicos, que obtêm renda associando-se a ele. O governo de Milei também é uma oportunidade de ouro para torná-los visíveis. Para que possamos entender seus modus operandi e quais são seus verdadeiros recursos. Porque se uma coisa é clara, é que, de uma forma ou de outra, logo eles vão manifestar sua presença. No momento estamos vendo como os juízes da Justiça do Trabalho já paralisaram sua reforma nessas áreas. Estamos também vendo como os setores econômicos que se beneficiam de regulamentações já estão se tornando visíveis. Eles têm o apoio de setores políticos com ideias semelhantes.

Setores conservadores

No campo da política, o primeiro desafio será lutar contra as próprias forças e aliados. Para governar, Javier Milei teve que fazer um pacto com membros da velha política. É a centro-direita de Macri e Bullrich e com setores peronistas de “direita”. Além, é claro, de formar seu próprio partido, La Libertad Avanza, com elementos da direita argentina que não são necessariamente libertários ou mesmo liberais.

Tudo parece indicar que Javier Milei, para preservar o componente libertário de seu programa econômico, teve que sacrificar elementos dessa corrente em outros aspectos da vida política. Foi o caso do poder policial ou militar ou da luta contra as drogas. Aqui, o pensamento liberal argentino é bastante claro. Basta ler o livro do professor Benegas Lynch, um de seus mais respeitados mentores, A Tragédia do Vício em Drogas. Aí vemos qual é a posição dos liberais-libertários argentinos sobre essa questão. Não é aquela que o governo de Milei parece defender, talvez como uma concessão a seus parceiros mais conservadores.

Abrindo as Portas do Inferno

Tudo indica que o poder do Estado, embora seja reduzido na esfera econômica, pode ser reforçado nas áreas mais duras. A tentação existe, e a proposta de que o Parlamento lhe delegue poderes legislativos por um período de tempo é um sinal disso. É verdade que o presidente argentino quer fazer reformas liberalizantes. É muito provável que encontre resistência em outras áreas do Estado. Mas também é verdade que a ideia de empoderamento legislativo e o uso de decretos não é nova na Argentina. Néstor Kichner já fez uso abundante disso.

Mas esse tipo de legislação tem precedentes imediatos na Venezuela de Hugo Chávez. Sem pretender igualá-los, também o tem na legislação habilitante idealizada pelo jurista do Reich, Carl Schimtt. Abrir essas portas para sempre também implica que um governante posterior poderia usá-las para outros fins. O que mais se vê é que Milei, em troca da tolerância em suas reformas econômicas, que para ele parecem prioritárias, está disposto a ceder o poder a outras forças que atuam dentro do aparato estatal aliado a setores de seu próprio partido. Não quero criticá-lo com isso, mas apenas salientar que a realização de reformas em um setor prioritário da vida social pode muito bem implicar concessões em outro. Estes são os riscos de tentar fazer reformas por meios políticos.

O caso da regulamentação relativa à pesca

Além da dinâmica de poder dentro de seu próprio partido, o presidente argentino terá que lidar com forças aliadas, mas de outros partidos que, embora não tenham vencido as eleições, têm apoio no Congresso e no Senado. Também têm governadores e prefeitos com apoio territorial. Aqui as atribuições terão de ser de natureza diferente. Embora contrários ao peronismo até então vigente, eles não estão imbuídos de sua visão libertária do mercado. São uma versão menos radical e mais sensata do modelo econômico peronista.

Um debate que surgiu recentemente na Galiza sobre as novas políticas de pesca propostas pelo novo governo pode ilustrar bem isso. Em suma, Javier Milei, no seu decreto geral, propõe leiloar os direitos de pesca ao maior lance e abandonar a política de preferência nacional na pesca que prevaleceu até agora. Essa política consistia em deduções fiscais em impostos de exportação para indústrias que processavam o produto da pesca em território argentino. Também se baseia na proibição de capturas de empresas que não estejam sediadas lá. Muitas multinacionais pesqueiras, várias delas galegas, aceitaram o marco regulatório, constituíram empresas na Argentina e estabeleceram fábricas de processamento na costa.

Interesses filtrados nos partidos

O novo marco regulatório e fiscal afeta negativamente essas empresas. Elas veem como seus investimentos em plantas de processamento podem se tornar inúteis. Ao mesmo tempo, os sindicatos de tripulantes da Argentina também estão vendo sua preferência nacional desaparecer. Eles serão submetidos à competição com tripulações de outros países, provavelmente asiáticos. Esses atores pressionam os governadores das províncias, vários dos quais pertencem ao partido de Macri e Bullrich. E recusaram-se a apoiar o decreto de Javier Milei. Além disso, anunciaram ações parlamentares contra ele.

No momento em que escrevo, ainda não se sabe como o conflito terminará, mas é apenas um exemplo de como é difícil desmantelar um marco regulatório que tem beneficiários políticos e territorialmente concentrados bem organizados (o que facilita sua ação concentrada) e é a prova do que muitas vezes expomos de anarquia dentro do próprio governo e da coalizão dominante. É muito provável que o conflito da pesca não seja o único e possa muito bem alastrar-se a outros setores regulamentados.

É claro que, além das disputas internas de poder dentro da coalizão de governo, haveria conflitos com os atores políticos da oposição, principalmente o agora desorientado peronismo, e suas organizações relacionadas, sejam elas sindicais ou organizações sociais, bem como com os demais atores do aparato estatal. Mas deixaremos isso para um próximo artigo em que já poderemos verificar os efeitos das medidas do novo presidente, a quem desejamos sorte e veremos se triunfa a ética da convicção ou a da responsabilidade, para seguir a velha distinção de Max Weber.

 

 

 

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1 COMENTÁRIO

  1. No passado diziam que o Da Silva estava sempre chorando e que isso era coisa de criança problemática, e não coisa de um presidente. O desafio de Javier Milei é provar que não é do mesmo tipo, já que o bebê chorão teve um ataque de falta de testosterona a frente do muro de arrimo da sinagoga rebelde, que os romanos fizeram o favor de deixar em pé.

    Pelo amor de Deus!

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