Por que a instituição do Banco Central deve ser abolida

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[Este artigo foi retirado do novo prefácio do livro Pelo fim do Banco Central, de Murray Rothbard]

Das condições necessárias para o fenômeno do dinheiro

A teoria monetária é fascinante e, atualmente, na grade acadêmica de um curso de Ciências Econômicas, é tema estudado nas disciplinas de macroeconomia, microeconomia e de teoria monetária. Em macroeconomia, aprendemos que o Sistema Financeiro Nacional é um braço da política monetária e como o Estado interfere nas relações econômicas através da moeda fiduciária. Na microeconomia, é pincelado a importância do dinheiro como uma “restrição orçamentária” – o que é de extrema importância para entendermos as dinâmicas que levam aos desajustes econômicos causados pelas políticas monetárias. Por fim, na disciplina de teoria monetária, há uma introdução sobre o que é a moeda, suas funções e características, com a introdução do papel das expectativas dos agentes econômicos e, assim como na matéria de macroeconomia, mais conteúdo sobre o Sistema Financeiro Nacional.

Posso dizer com toda tranquilidade do mundo que esta obra de Murray Newton Rothbard traz estes mesmos temas, com uma perspectiva mais clara e realista do assunto. No começo da obra, Rothbard já alinha a teoria monetária com a teoria subjetivista do valor, linkando o mesmo com a sua utilidade esperada. Isso torna o “dinheiro” como um recurso qualquer – possui uma utilidade subalterna ao fim individual -, porém a sua utilidade implica numa consequência econômica única: na medida que mais dinheiro é adicionado a economia, não há, como acontece com outros recursos, aumento na qualidade de vida das pessoas.

Rothbard demonstra que, assim como em “O Estado” de Franz Oppenheimer e “Princípio da Economia Política” de Carl Menger, o dinheiro não surge de uma normatividade governamental, ele surge através das relações de trocas que levaram as pessoas a esperarem uma utilidade a mais de determinados recursos: ser aceito como troca por outros recursos. Veja, ainda na Antiguidade, uma das dificuldades dos seres humanos era manter alimentos em conservação – como seres humanos agem por provisão, é razoável concluir que havia uma dada demanda esperada sobre a conservação de alimentos. Muitos foram os processos que permitiram esse feito, um deles foi o uso do sal. A permuta de recursos por sal criou um “histórico de grau de divisibilidade” entre recursos, também conhecido como “preço”. Este histórico de preços, portanto, guia as expectativas das pessoas, permitindo com que elas possam conjecturar as inúmeras trocas entre recursos e sal no futuro.

Foi este processo de adicionar uma utilidade a mais a um recurso – expectativa de “aceitabilidade futura” dada as trocas passadas –, que permitiu que o fenômeno do dinheiro surgisse. Diga-se de passagem, muitos “Estados em formação” negligenciaram o dinheiro em circulação no começo, muito por, como demonstra Franz Oppenheimer, preferir recursos como gado, recursos da terra e afins, como “método de pagamento” – o que o autor chamará de economia natural.

Oppenheimer argumenta que o magnata territorial, como a classe mestra do Estado territorial, tem seu poder refletido por meio de suas propriedades de terras e pessoas. Ele continua:

       “Além disso, para utilizar plenamente tal propriedade, ele seria obrigado a deixar sua cidade para se estabelecer nela e se tornar um proprietário regular, pois em um período em que o dinheiro ainda não se generalizou e não houve uma divisão lucrativa do trabalho entre a cidade e o campo, a exploração das grandes propriedades de terra só pode ser exercida pelo consumo real de seus produtos, e a propriedade ausente como fonte de renda é inconcebível.”

O Estado ainda se vinculava à “economias naturais”, em oposição às “economias monetárias” que já existiam. Oppenheimer comenta que:

         “Onde quer que um Estado viva em economia natural, o dinheiro é um luxo supérfluo – tão supérfluo que uma economia desenvolvida para o uso do dinheiro retrocede novamente para um sistema de pagamentos em espécie assim que a comunidade volta à forma primitiva […] Tal sistema pode muito bem prescindir do dinheiro como padrão de valores, uma vez que não possui relações e transações desenvolvidas. Os inquilinos do senhor fornecem como tributo as coisas que o senhor e seus seguidores consomem imediatamente.”

No entanto, um comerciante que deseja trocar recursos nem sempre está em posse do que a outra parte demanda e, portanto, não pode fazer a troca. É aí que surge um denominador comum entre esses comerciantes, baseado em trocas passadas. É um problema específico dos comerciantes que foi resolvido pelos próprios comerciantes.

Os magnatas terrestres só precisavam da moeda quando surgiam problemas que a moeda poderia resolver. Por exemplo, quando a coroa, à medida que crescia em poder, precisava de vassalos para controlar terras e camponeses, e o único recurso disponível para pagamento eram as terras, camponeses e gado. Isso significava, em última instância, compartilhar o que compunha seu poder.

        “Quanto mais o estado se expande, mais o poder oficial deve ser delegado pelo governo central a seus representantes nas fronteiras e nas marchas, constantemente ameaçados por guerras e surtos insurrecionais […] E como ele vai pagar a esses homens? Com uma possível exceção, a ser observada a seguir, não há impostos que fluam para o tesouro do governo central e depois sejam despejados novamente sobre a terra, uma vez que estes pressupõem um desenvolvimento econômico existente apenas onde o dinheiro é empregado. […] Por essa razão, o governo central não tem outra alternativa senão entregar aos condes, ou guardas de fronteira, ou sátrapas, as rendas de sua jurisdição territorial.“

Esse poder “compartilhado”, que muitas vezes fez com que a coroa cedesse cada vez mais privilégios políticos, deixou a mesma em condição de incapacidade de barganhar, fato que mudou completamente quando, depois de muito tempo, o Estado adotou a economia monetária.

       “Aqui, como no caso dos estados marítimos, a consequência da invasão do sistema monetário é que o governo central se torna quase onipotente, enquanto os poderes locais são reduzidos à completa impotência. […] Os vassalos indisciplinados, que antes faziam tremer os reis fracos, após uma breve tentativa de governo conjunto durante o tempo do estado estamental, transformaram-se em cortesãos flexíveis, implorando favores nas mãos de algum monarca absoluto, como Luís XIV. […] O fato é que o sistema de pagamentos em dinheiro fortaleceu o poder central de forma tão poderosa e imediata que, mesmo sem a interposição da sublevação agrária, qualquer resistência da nobreza fundiária teria sido sem sentido”.

Perceba que esse registro histórico está alinhado com a função da moeda. O magnata terrestre não era um “permutador”; ele obtinha recursos através da tributação e não tinha motivos para realizar trocas e lidar com o problema da coincidência de desejos ao ponto de precisar encontrar uma solução para isso. Inicialmente, eram os comerciantes que tinham essa necessidade, corroborando com o entendimento deque a moeda surgiu com eles. No entanto, à medida que os magnatas terrestres perdiam poder e precisavam negociar com os vassalos, surgiu o primeiro impasse que seria resolvido por meio de uma moeda, conferindo utilidade, aos olhos desses magnatas, ao uso da moeda.

Do processo histórico do surgimento da moeda

É importante que o leitor tenha em mente que o processo histórico do surgimento da moeda é empírico. Isso implica que certamente houve, na história, civilizações em que o surgimento da moeda ocorreu por meio de seus governantes – como magnatas terrestres, se fizermos um paralelo com a contribuição de Oppenheimer.

Por exemplo, segundo David Graeber[1], o surgimento do dinheiro como resultado de um longo processo de troca é um mito. Para ele, o dinheiro surge juntamente com a dívida.

       “Quando um economista fala sobre a origem do dinheiro, por exemplo, a dívida é sempre algo posterior. Primeiro vem o escambo, depois o dinheiro; o crédito se desenvolve apenas depois.”

O processo de divisão do trabalho e de permuta é um processo que se desenvolve ao longo da história. A troca de recursos era sempre baseada em bens não duráveis e raramente ocorria entre povos que confiavam uns nos outros a ponto de emergir um sistema baseado na confiança. A hospitalidade entre povos parece ser algo dado para Graeber, ao ponto de implicar que o sistema de dívida surge de forma separada dos sistemas de troca. É como se os seres humanos sempre fossem capazes de agir com base na “provisão” e não como um processo que aprendeu por conta das adversidades do ambiente.

O problema não reside no fato de Graeber descartar o processo de troca por não haver registros históricos, pois, como demonstrado por Oppenheimer, existem. O problema reside em ignorar todo o processo histórico das condições necessárias para o sistema que ele defende – como a hospitalidade, a ação baseada na provisão e as próprias trocas – e considerar esses aspectos como dados, mesmo sem respaldo histórico, além de apontar essa mesma atitude como indevida ao tratar dos economistas. Veja o que ele comenta:

       “É importante ressaltar que isso não é apresentado como algo que realmente aconteceu, mas como um exercício puramente imaginário. ‘Para entender como a sociedade se beneficia de um meio de troca’, escrevem Begg, Fischer e Dornbuch (Economics, 200s), ‘imagine uma economia de escambo’. ‘Imagine a dificuldade que você teria hoje’, escrevem Maunder, Myers, Wall e Miller (Economics Explained, 1991), ‘se tivesse que trocar seu trabalho diretamente pelos frutos do trabalho de outra pessoa’. ‘Imagine’, escrevem Parkin e King (Economics, 1995), ‘que você tem galinhas, mas quer rosas'”.

Em contrapartida, ele comenta o seguinte:

        “Qual é a diferença entre uma mera obrigação, um sentimento de que se deve agir de determinada maneira, ou mesmo que se deve algo a alguém, e uma dívida propriamente dita? A resposta é simples: dinheiro”.

No entanto, o processo do dinheiro, segundo Graeber, ocorre simultaneamente com a dívida, o que torna sua tese contraditória. Se a diferença entre “obrigação” e “dívida” é o dinheiro – uma proposição da qual discordo completamente e não vejo justificativa por parte de Graeber –, presume-se então que o dinheiro surgiu primeiro, em algum momento da história, e depois veio o sistema de dívidas. Isso nos leva a cinco questões que põem em xeque a tese de Graeber:

A- A dívida não pode ser a origem do dinheiro, pois o próprio autor reconhece que a condição necessária para a dívida é o dinheiro.

B- Onde está o processo histórico documentado do surgimento do dinheiro que permitiu o surgimento do sistema de dívidas?

C- Mesmo um “sistema de dívida” pressupõe hospitalidade, divisão do trabalho, ação baseada em provisão e um longo processo de trocas para que tal sistema surja nas relações econômicas.

D- Estaria Graeber presumindo uma abundância não justificada de recursos ao ponto de as pessoas disponibilizarem recursos para outras com uma “promessa de pagamento futuro” em um período de escassez de recursos?

E- Ao meu ver, Graeber não justifica a necessidade de a dívida ser expressa em dinheiro, nem demonstra como esse dinheiro surge para que o sistema de dívida possa existir. Além disso, a definição de dinheiro também não é clara e fica a cargo do leitor, ao longo do livro do Graeber, deduzir as características do dinheiro.

Além disso, na historiografia, há o empréstimo, por exemplo, de gado dos ricos aos membros pobres de uma tribo, o que levava esses credores a vincularem esses pequenos proprietários a eles como “seus homens”. Esse empréstimo não tem nada que ver com o fenômeno do dinheiro, pois o objetivo do magnata que emprestava era ter alguém para cuidar do gado com a vantagem de ter mais recursos no futuro.

Mesmo se considerarmos isso como dinheiro por uma questão de caridade argumentativa, o processo do dinheiro não seria tão expressivo, pois a capacidade de ser credor exigiria recursos em abundância por parte do mesmo – o que foi abordado na questão “D” – o que é um problema, já que ao longo da história, a capacidade econômica para tal feito estava nas mãos de poucos. Além disso, isso implicaria presumir que agentes econômicos com menos recursos são seres passivos, que enfrentam o aumento da complexidade econômica e o problema da falta de coincidência de desejos e não fazem nada para resolvê-los – ou precisam de uma autoridade iluminada que resolverá problemas que não lhes incomodam.

Conseguimos encontrar uma “resolução” para esse problema na obra de Karl Polanyi, “A Grande Transformação: As Origens de Nossa Época“. Ele aponta que a moeda surge em resposta a necessidades sociais e políticas, imposta pela autoridade central que busca facilitar o comércio. Para ele, o surgimento do “mercado”[2] só é possível com a determinação dessas autoridades centrais, expressas por meio de regulamentações. Vejamos:

      “A permuta, a barganha e a troca constituem um princípio de comportamento econômico que depende do padrão de mercado para sua efetivação […] A menos que esse padrão esteja presente, pelo menos em parte, a propensão à permuta não terá escopo suficiente: ela não poderá produzir preços.”

Essa ligação com a autoridade central também está presente no argumento de Graeber, onde ele comenta que a moeda é um “pedaço de metal valioso”, “moldado em uma unidade padronizada” e “com algum emblema”. Embora ele admita que a moeda seja inventada primeiro “por cidadãos comuns”, a cunhagem “rapidamente foi monopolizada pelo Estado”, ele tende a sustentar que a origem da moeda se dá pelo Estado devido à sua “efetividade”.

Ora, se as características de uma moeda são as características de uma moeda estatal, por definição terminológica, a moeda certamente tem origem no Estado. Agora, se considerarmos tudo o que foi exposto aqui, perceberemos que a moeda é o recurso pelo qual se alcança a utilidade esperada do dinheiro. Por isso, na historiografia, o sal, o tabaco, as pedras, as conchas e outros recursos já foram considerados moedas.

Parece que Graeber tenta a todo momento escapar do longo processo de trocas para explicar o fenômeno do dinheiro – embora em algumas passagens ele admita o processo de trocas como uma condição histórica –, mas isso leva a uma lacuna em que um leitor atento percebe que não há um processo histórico coerente que explique a origem da moeda. É como se o fenômeno do dinheiro fosse algo “dado”, como se as pessoas já tivessem consciência de sua função e uma autoridade estatal percebesse isso e resolvesse distribuir a moeda entre os cidadãos.

Em contraposição, Oppenheimer aponta que o dinheiro surge primeiramente entre os permutadores – por meio do processo de troca mencionado anteriormente – e só se torna útil para o meio político quando este vê vantagens práticas, como, por exemplo, o aumento do poder da coroa por meio do funcionalismo, quebrando a necessidade de pagamento de vassalos por meio de “terras e camponeses”.

Se analisarmos com cuidado, não há motivos reais para que o Estado crie um recurso “universalmente permutável”, uma vez que o Estado obtém recursos pela força. Essa necessidade surge devido ao desenvolvimento desigual entre os meios econômicos e políticos. À medida que as relações econômicas se tornam mais complexas, é necessário que o meio político também se desenvolva e continue a tributar. Podemos observar o crescimento dos povos subjugados, o que levou o Estado a estabelecer sistemas de funcionalismo, por exemplo[3]. No entanto, a forma de pagamento desses “vassalos” era feita por meio de terras e camponeses, o que diminuía o poder da coroa. Nesse sentido, o surgimento do dinheiro, que ocorre por meio de trocas voluntárias, permitiu ao Estado combater a descentralização que estava ocorrendo.

Da necessidade de um Banco Central

Antes de prosseguir com esta última parte, é importante estabelecer que estabilidade financeira não implica necessariamente estabilidade de preços. Como é sabido, os indivíduos têm múltiplos objetivos que consideram mais valiosos do que sua situação atual. A partir desses objetivos, derivam-se os meios que os indivíduos consideram mais adequados, com base em suas próprias avaliações, para alcançar o objetivo desejado. Quando esse meio é um recurso detido por outra pessoa, inicia-se uma relação intersubjetiva no momento em que o indivíduo busca obter esse fim. Se essa relação pressupõe uma simetria na lógica da relação e o respeito mútuo à propriedade dos participantes, temos uma relação voluntária.

Essa relação voluntária, quando envolve a troca de recursos, gera uma relação econômica. A divisibilidade entre esses dois recursos é o fenômeno que chamamos de preço. Portanto, os preços que surgem dessa ação, comumente chamados de preços naturais, são um mecanismo resultante das preferências dos indivíduos. Dado que as preferências dos indivíduos podem mudar e de fato mudam, a “estabilidade de preços” seria improvável. Levando em consideração que determinadas estruturas econômicas são atraentes apenas em certos níveis de preço, uma “estabilidade compulsória” gera desinformação, comprometendo toda a estrutura produtiva.

Resumindo, tentar impor uma estabilidade de preços é como estar perdido com uma bússola. Você precisa ir para o norte e, em vez de orientar seu corpo na direção correta e seguir de acordo com a bússola, você fixa a agulha magnética na direção desejada e acredita estar indo para o norte.

Dito isso, voltamos à história do sistema financeiro, mais especificamente à história do sistema bancário escocês no século XVIII. Naquela época, o sistema escocês, ao contrário do sistema inglês, não contava com um banco privilegiado responsável pela emissão monetária, o que hoje conhecemos como Banco Central. Na verdade, na época, o “Banco da Escócia” recebeu a primeira autorização para operar serviços bancários, mas por questões específicas, o parlamento permitiu a criação de um banco concorrente: o “Banco Real da Escócia”. Isso, por sua vez, permitiu a abertura de numerosos outros bancos capazes de emitir notas bancárias.

Foi exatamente esse passo que tornou a Escócia notável em relação à estabilidade financeira. Essa estabilidade ocorreu devido à prática quase sagrada dos bancos de apresentarem as notas dos bancos concorrentes nas casas de compensação, onde os funcionários descobriam o quanto cada banco devia ao outro.

George Selgin, em “Financial Stability Without Central Banks[4], comenta que isso gerou uma espécie de disciplina como uma “corrente de prisioneiros”. Se você pegar vários prisioneiros e acorrentá-los uns aos outros, sem precisar prender a outra coisa, seria quase impossível fugir, dada a necessidade de coordenar os passos de cada um.

Isso funcionou tão bem que houve um exemplo de um banco que tentou seguir por caminhos menos moderados: o Ayr Bank. Em meados de 1770, o Ayr Bank e todas as suas filiais começaram a emprestar grandes quantias de dinheiro com prazos e condições muito generosas. O objetivo era se tornar o maior banco escocês. Sua prática envolvia, por exemplo, trocar suas próprias notas bancárias por IOUs (I Owe You – “Eu te devo” em inglês) dos mutuários. Se você não entendeu a gravidade, vou explicar. Os IOUs são documentos que reconhecem dívidas. Documentos informais, por sinal. Ou seja, os mutuários, as pessoas que recebiam o empréstimo, podiam fornecer um documento de “reconhecimento de dívida” para obter empréstimos, criando um sistema financeiro escalonado. Um sistema financeiro inflacionado, diga-se de passagem.

Isso levou os demais bancos, ao receberem essas notas, a procurarem o Ayr Bank para liquidá-las. E, como se pode imaginar, o Ayr Bank acabou sendo esmagado pelos bancos que adotavam práticas menos agressivas.

Na época, não havia o sentimento de “Too Big To Fail”. Mesmo se houvesse, a ausência de um banco central impediria que algo fosse feito. Após a queda do Ayr Bank, a Escócia experimentou um longo e notável período de estabilidade financeira, e a única coisa que o Ayr Bank deixou foi a lição das práticas que adotou.

Outro exemplo foi o Canadá. Até 1935, o Canadá não possuía um banco central. Seu sistema era conhecido e um claro exemplo de Sistema Bancário Livre. As notas em circulação eram emitidas por diversos bancos comerciais, a maioria dos quais possuía uma extensa rede de agências por todo o país.

Ao lado das notas em circulação, havia um papel-moeda emitido pelo governo, conhecido como “Dominion”. Ambas as notas eram aceitas como pagamento em espécie, mesmo que as notas Dominion tivessem curso legal. Em contraste com as notas dos Estados Unidos, que precisavam ser “garantidas” por certos títulos do governo dos Estados Unidos, as notas dos bancos canadenses eram lastreadas pelos ativos gerais de seus emissores. Além disso, os bancos canadenses não tinham a obrigação de manter qualquer tipo de reserva.

No período de 1867 a 1895, três dos cinquenta e cinco bancos faliram no Canadá, resultando em um total de US$ 485.000 em dívidas não pagas. Em termos reais, ajustados para a inflação, esse valor seria aproximadamente equivalente a US$ 14,2 milhões em 2021.[5]

Em comparação, o valor total em circulação na época era de US$ 25 milhões, o que, ajustado para a inflação, seria aproximadamente US$ 730 milhões em 2021. Portanto, o valor não pago devido às falências representava cerca de 2% desse total.

No caso dos bancos nos Estados Unidos entre 1863 e 1896, ocorreram 330 falências de bancos nacionais. O montante total de créditos acumulados contra esses bancos era de US$ 98 milhões na época. Ajustado para a inflação, esse valor seria aproximadamente US$ 2,96 bilhões em 2021. Dos créditos acumulados, menos de 64% foram pagos até o final desse período, resultando em um saldo devedor de aproximadamente US$ 35 milhões (ajustado para US$ 1,06 bilhão em 2021).

Além disso, outros 1234 bancos estaduais faliram, deixando US$ 120 milhões em dívidas não pagas. Em termos reais, ajustados para a inflação, esse valor seria aproximadamente US$ 3,63 bilhões em 2021. O valor total das dívidas acumuladas pelos bancos estaduais era de US$ 220 milhões na época (ajustado para US$ 6,65 bilhões em 2021).

Portanto, podemos concluir que, em termos reais, o desempenho do Sistema Bancário Livre no Canadá foi relativamente melhor do que o do sistema bancário nos Estados Unidos durante esse período.

O livro “Pelo Fim do Banco Central” apresenta argumentos sobre a prática da reserva fracionária no sistema financeiro atual, destacando como ela pode comprometer a propriedade privada e ter consequências indesejadas. Até agora, foram discutidos pontos relacionados à teoria monetária e ao sistema financeiro, mostrando que esses argumentos não são consistentes. Com base no que foi exposto, parece razoável admitir que:

A- O dinheiro não surge do Estado e, portanto, o Estado não é uma condição necessária para sua existência.

B- O Estado ignorou a importância da economia monetária por um longo período.

C- A hipótese do surgimento do dinheiro por meio do escambo ainda não foi superada.

D- Não há evidências suficientes para afirmar que o dinheiro surge da dívida, e isso não é exclusivamente um fenômeno monetário.

E- Mesmo que o dinheiro surgisse da dívida, isso não invalidaria a necessidade de um processo de trocas como uma condição necessária para o desenvolvimento desse sistema financeiro.

F- Sistemas financeiros podem ser estáveis mesmo sem a presença de um Banco Central.

 

 

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Notas

[1] Graeber, David. Dívida-Os primeiros 5000 anos. Leya, 2022.

[2] Para o autor, o mercado não é uma orientação das atividades do indivíduos para servir as necessidades dos seus concidadãos ou; processo de interação humana, que cooperam sob divisão do trabalho ou; Sistema de comunicação que condensa informações dispersas. O mercado seria um “um local de encontro para a finalidade da permuta ou da compra e venda” pg 76 

[3] Oppenheimer, Franz. O Estado. Konkin, 2023. pg 122.

[4] Selgin, George, Kevin Dowd, and Mathieu Bédard. Financial stability without central banks. London Publishing Partnership, 2018.

[5] https://www.bls.gov/data/inflation_calculator.htm foi considerado a data de 1913, portanto entende-se que o valor certamente é maior, mas considero ser importante para fins de compreensão do cenário econômico discutido.

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