Por que não existe propriedade privada de imóveis no Brasil

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2907545Um dos pilares do libertarianismo é o respeito à propriedade privada. Todo homem é um fim em si mesmo, possuindo soberania individual e não podendo ser instrumento de exploração coercitiva por outros homens. Portanto, todo libertário é um defensor ferrenho do respeito à propriedade privada como consequência da mistura do trabalho do homem com a natureza.

Infelizmente, a Constituição brasileira relativiza este conceito, trazendo grande insegurança jurídica para as pessoas e fazendo com que todos sejam escravos de todos. É a conhecida “função social da propriedade”.

Este artigo tem por objetivo demonstrar que o conceito moderno de propriedade é extremamente confuso, gerando conceitos fluidos como a função social da propriedade. Demonstrar-se-á que a função social da propriedade é um grande mal relativizador da propriedade e, por consequência, relativizador da própria condição humana, mas, enquanto a função social apenas relativiza o direito de propriedade, o sistema tributário brasileiro abole por completo o direito de propriedade sobre bens imóveis, transformando todos os cidadãos brasileiros não em proprietários, mas meros posseiros qualificados (enfiteutas), sendo o estado brasileiro o verdadeiro proprietário de todos os bens imóveis nacionais.

A propriedade como é conhecida no modelo atual

Faz-se necessário explicar, preliminarmente, os tipos de relação entre um indivíduo e um bem no modelo atual de direitos reais (poder jurídico de um indivíduo sobre uma coisa e que todos devem respeitar) de propriedade.

Propriedade em sentido estrito é o direito real por excelência que dá ao proprietário a faculdade de usar, gozar (fruir) e dispor da coisa, além do direito de reavê-la de quem injustamente a possua ou detenha[1].

Usar sua propriedade é utilizá-la como bem quiser. Fruir é ter para si os frutos dessa propriedade, sendo fruto o termo jurídico que significa aquilo que é produzido por essa propriedade sem destruir a mesma, como, por exemplo, a água de um manancial, as frutas produzidas por uma árvore ou o aluguel dessa propriedade. Dispor de uma propriedade, por sua vez, é o poder de vendê-la, destruí-la ou abandoná-la.

Outro conceito importante é a posse. Posse é o exercício de fato de algum dos poderes de propriedade frente a um bem[2].

Vejam, então, que a única diferença concreta entre a posse e a propriedade, para o direito positivo atual, é que a propriedade é legitimada pelo estado, enquanto que a posse não precisa de chancela estatal para ser exercida, sendo uma situação vista no caso concreto.

Uma última relação entre o indivíduo e o bem é a de detenção. Detenção é o cuidado de um bem por um terceiro que não o sujeito que efetivamente possui o bem, como no caso de um empregado que cuida da residência de um patrão.

São basicamente essas as relações entre um indivíduo e um bem no direito real de propriedade, mas existem outras modalidades de direito real, dos quais vou destacar a enfiteuse.

Enfiteuse é um direito real em que um proprietário que não deseja ter o trabalho de cuidar de um determinado bem passa uma grande parcela desse poder de proprietário para um indivíduo interessado em ter essa propriedade para si, pedindo, em retorno, dois valores em pagamento: (i) uma pequena quantia anual, denominada foro; e (ii) uma outra quantia no caso da venda dessa enfiteuse para um terceiro, denominado laudêmio. Moradores de Petrópolis/RJ, como eu, sabem bem como esse sistema funciona, pois toda a cidade pertence à família real brasileira, sendo todos os petropolitanos meros enfiteutas, e não plenos proprietários.

Essa é a explicação civilista histórica destes conceitos. Daremos agora um enfoque constitucional desses institutos.

 A interferência do estado na propriedade privada

O instituto da propriedade privada consta na Constituição de 1988, nos seguintes termos:

Art. 5(…):

(…)

XXII – é garantido o direito de propriedade;

XXIII – a propriedade atenderá a sua função social.

A Constituição garante o direito de propriedade, cujo conceito já foi explicado, mas o submete ao atendimento de uma função social.

O que é a função social da propriedade?

Como conceito fluido, vários autores já buscaram defini-lo, e não cabe aqui listar todas as pequenas variantes. Enfocando a idéia comum a todas as definições, função social da propriedade é o instituto que legaliza a intervenção do governo na propriedade privada, sob o argumento de um interesse público relevante, suprimindo ou extinguindo o poder do indivíduo sobre o bem anteriormente plenamente privado. Portanto, a base filosófica dessa intervenção é o interesse público. Interesse público, segundo a doutrina administrativista clássica, é a consecução do bem comum. O governo pode, então, suprimir ou extinguir a propriedade privada das pessoas tendo em vista o bem comum, e a idéia de bem comum muda de acordo com a filosofia política e econômica de um governo. Alguns governos podem achar que uma dada propriedade visa o bem comum apenas se atingir uma certa quantidade de produção de arroz[3], ou se aquele imóvel for destinado para o comércio, e não para a moradia[4].

Bem, isso é uma óbvia piada de mau gosto.

Quando a Constituição dispõe que um homem somente pode exercer propriedade se atender o bem comum, sendo esse um conceito fluido, efetivamente se está negando o direito desse homem de possuir propriedade privada. O próprio sistema jurídico define propriedade como o direito de usar, fruir e dispor da coisa, além do direito de reavê-la de quem injustamente a possua ou detenha. Se esse uso, fruição e disposição do bem ficam subordinados à vontade e aprovação de burocratas do governo, sob o argumento de um bem comum volúvel e indefinível, então, de fato, o dono do bem é o estado, sendo o indivíduo mero detentor da coisa (nem mesmo possuidor ele é, pois acaba por exercer de fato o poder sobre o bem em nome do estado e nos termos deste).

Até mesmo certa doutrina positivista admite a existência de um interesse público primário, que seria o interesse da sociedade, e o interesse público secundário, que seria o interesse do governo[5], e o segundo só seria legítimo se compatível com o primeiro. Mas, bem, se não há como saber efetivamente qual é o interesse da sociedade no caso concreto, prevalece sempre o interesse do governo, que, via de regra, é o interesse em se desviar recursos do erário.

Por conseguinte, vemos chancelados comportamentos governamentais que destroem o direito de propriedade privada do indivíduo, sufoca o crescimento econômico dos governados, cria reservas de mercado, além de facilitar a construção de obras públicas temerárias e de objetivos práticos duvidosos, sempre baseado em uma imensa burocracia e troca de favores.

Podemos listar as seguintes intervenções: ocupação temporária, requisição, limitação administrativa, servidão administrativa, desapropriação, entre outros, em regra visando interesses escusos.

A defesa desta relativização do direito de propriedade baseada na sua função social e interesse público é insustentável, sendo seus defensores inacreditavelmente ingênuos ou verdadeiros patifes que visam se locupletar.

Propriedade privada ou enfiteuse?

Superada a questão da função social da propriedade, que traz reflexos para o direito de propriedade privada no campo e na cidade, literalmente inviabilizando-a, ainda que considerássemos existente o direito de propriedade privada sobre imóveis no Brasil, fica claro, em virtude do sistema tributário brasileiro, que o governo não vê a propriedade do indivíduo como privada, mas sim como pública, sendo o indivíduo mero posseiro, ou, melhor dizendo, um enfiteuta.

No Brasil, como é sabido, existe uma grande carga tributária sobre a propriedade. Podemos destacar os seguintes: (i) ITBI, que é o imposto de transmissão de bens imóveis em compra e venda; (ii) ITCMD, que é o imposto de transmissão de bens imóveis em doação e herança; (iii) IPTU, que é o pagamento anual pelo simples fato de ter em sua posse um imóvel urbano; e, por fim, (iv) ITR, que é o pagamento anual pelo simples fato de ter em sua posse um imóvel rural.

Como visto, a enfiteuse é uma espécie de direito real que é uma “quase-propriedade”, pois o verdadeiro proprietário não costuma reivindicar de volta a propriedade e o enfiteuta paga, normalmente, o foro anual pelo simples fato de ter em sua posse um imóvel urbano ou rural e pode vender ou doar sua enfiteuse para terceiro, desde que pague o laudêmio, que é uma porcentagem do valor da venda desse terreno.

Nota-se, claramente, que o IPTU e o ITR funcionam, hoje, sob o mesmo raciocínio do foro: são pagos ao governo pelo simples fato do cidadão ter posse sobre um imóvel. Já o ITBI e o ITCMD funcionam exatamente como o laudêmio: é um “pedágio” no momento da venda da enfiteuse.

Logo, não existe direito de propriedade sobre imóveis no Brasil. Somos todos enfiteutas do grande e único proprietário de imóveis do Brasil: o estado brasileiro.

Os próprios enfiteutas privados de hoje, como a família real em Petrópolis/RJ, ou a Marinha do Brasil em todos os terrenos que ficam junto ao mar, são, na verdade, sub-enfiteutas do proprietário-mor.

Então, quando o caro leitor promover uma festa, lembre-se que o correto não é dizer “seja bem-vindo à minha propriedade”, mas sim “seja bem-vindo à minha enfiteuse”. E agradeça à nobre benevolência do governo por isso!

O sistema de direito de propriedade libertário

Em um sistema de propriedade libertário, não deve haver distinção entre propriedade e posse. Como visto, a posse nada mais é do que a propriedade de fato. E a propriedade é a posse chancelada pelo estado brasileiro.

Logo, a definição de propriedade libertária deve ser: “é o exercício de fato, por um indivíduo, da faculdade de usar, gozar (fruir) e dispor de um bem escasso, independentemente da chancela estatal, exercido de maneira original sobre bens escassos sem dono ou através de acordo voluntário com quem originalmente o exerceu ou os sucessores deste, além do direito de reavê-lo de quem injustamente o possua ou detenha”.

Existe ainda alguma crítica sobre a defesa libertária do caráter absoluto deste direito de propriedade. O argumento principal seria que o exercício absoluto desse poder de propriedade poderia agredir a propriedade privada de outro. Luciana Braga[6], em artigo de grande densidade filosófica, argumenta que, caso o exercício do direito de propriedade de um indivíduo venha a agredir a propriedade de outrem, então é justamente o caráter absoluto dessa propriedade que justifica a reparação à propriedade do cidadão prejudicado, não havendo, no caso, nenhuma relativização no conceito de propriedade.

Cabe, ainda, um breve comentário sobre a enfiteuse. O instituto da enfiteuse, como conhecemos, é uma invasão absolutamente perversa do estado sobre a propriedade privada. No caso concreto, o proprietário original, em regra, simplesmente não quer misturar o seu trabalho com aquele imóvel, e literalmente abandona o bem, utilizando o estado como proteção para que não perca aquela propriedade, deixando pessoas que teriam interesse em misturar seu trabalho com a terra sem condições fáticas de faze-la. Essas pessoas, nesse sistema, acabavam caindo nesse estranho arranjo em que não se é nem proprietário e nem locatário.

Por conta disso, o novo Código Civil acabou por abolir esse instituto do direito brasileiro, mantendo-se, em respeito à segurança jurídica, as enfiteuses anteriormente constituídas.

Rothbard[7], em uma de suas obras-primas, argumenta nesse mesmo sentido, e podemos identificar na sua linha de pensamento uma defesa da “função econômica da propriedade”, sempre intimamente ligado ao caráter absoluto da mesma. Ou seja, se o proprietário não exerce de fato a faculdade de usar, gozar (fruir) e dispor da coisa, acaba por abandoná-la, e outro indivíduo fica então apto a exercer esse poder de fato, e de maneira absoluta enquanto o fizer, podendo reavê-la no caso de um esbulhador ou turbador impedir esse pleno exercício.

Não se pode deixar de criticar, ainda que brevemente, os impostos sobre propriedade. Um dos grandes jargões libertários é o famoso “imposto é roubo”. Pois bem, se imposto é roubo, imposto sobre propriedade é roubo sobre roubo. O raciocínio é simples: para que se adquira eticamente uma propriedade hoje, é necessário que se compre a mesma através do fruto do trabalho. Esse trabalho já é altamente tributado (o famoso imposto de renda). Caso o indivíduo seja brilhante o suficiente para conseguir produzir riqueza para sobreviver, pagar seus impostos e ainda conseguir poupar o suficiente para conseguir transformá-la, essa riqueza será novamente tributada. Ou seja, incide-se o imposto na hora de ganhar o dinheiro e na hora de transformá-lo em propriedade privada. Essa dupla incidência é ainda mais injusta. Alguém ainda poderia discutir essa dupla incidência no caso de propriedades herdadas ou doadas, mas mesmo nesses bens ocorre a dupla incidência, pois o doador, em algum momento, teve a renda que virou propriedade também tributada.

Numa sociedade libertária não podem existir, sob hipótese alguma, tributos sobre propriedade, por serem injustos e deturpadores do sistema de propriedade, literalmente condicionando o exercício da propriedade privada ao estado, que hoje, de maneira repugnante, toma o bem do cidadão no caso do não pagamento dos mesmos.

Conclusão

Restou amplamente comprovado que não existe direito de propriedade imóvel no Brasil, relativizado por um conceito fluido de “função social” que dá azo a todo tipo de arbitrariedade governamental. Mesmo se considerássemos coerente esse tipo de direito de propriedade, vemos no caso concreto que ele não existe, havendo apenas um proprietário de imóveis no Brasil, o estado, sendo todos nós enfiteutas que devem pagar o foro anual (IPTU ou ITR) e o laudêmio quando da transferência dessa enfiteuse para outro (ITBI ou ITCMD).

A população brasileira precisa se conscientizar deste abuso o mais rapidamente possível, de forma que seja restaurado o direito de propriedade no Brasil, com o fim da função social da propriedade e abolição de todo e qualquer imposto sobre propriedade, criando assim um sistema ético que servirá de base para o progresso individual de todos os brasileiros, em detrimento da casta parasitária da sociedade brasileira: os políticos e burocratas.

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Notas

[1] Art. 1228 do atual Código Civil brasileiro.[2] Art. 1.196 do Código Civil brasileiro.[3] Questão recorrente no que tange à produção agrária brasileira é o chamado “índice de produtividade do campo”, onde o governo toma pra si o direito de ditar qual deve ser a produtividade mínima de uma fazenda por hectare, instrumento este expedido pelo Incra, sem levar em consideração a expectativa do mercado, questões ambientais e meteorológicas, a própria vontade do proprietário, entre outros fatores, sendo sempre aplicado contra o empresário produtor e servindo de base jurídica para desapropriações, com as terras sendo destinadas para a reforma agrária, diga-se, MST. Esses índices, contudo, não são aplicados contra assentados.[4] A maioria das cidades brasileiras possui um rígido sistema de loteamento urbano e Código de Posturas que literalmente decide se você pode morar ou comercializar no seu terreno.[5] Moreira Neto, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2006.[6] Para melhor explicação desse tópico, sugere-se a leitura do artigo citado de Luciana Lopes Nominato Braga, disponível em http://www.pliber.org.br/Artigos/Details/5 .[7] Rothbard, Murray. A Ética da Liberdade. Capítulo 11. O monopólio de terras: passado e presente.

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