Os economistas monetários dos séculos XVI e XVII tiveram êxito em dissipar as falácias populares em relação à suposta estabilidade da moeda. Esse erro antigo desapareceu, porém surgiu um novo: a ilusão de que a moeda é neutra.
É fato que os economistas clássicos também deram o melhor de si para combater esse outro erro. David Hume, o fundador da Economia Política Britânica, e John Stuart Mill, o último da fila dos economistas clássicos, lidaram com esse problema de maneira magistral. E não nos esqueçamos de Cairness, que, em seu ensaio sobre a depreciação da moeda, preparou o terreno para uma visão realista do assunto em questão.[*]
Não obstante esses primeiros passos rumo a uma compreensão mais correta do assunto, os economistas modernos acabaram incorporando a falácia da neutralidade da moeda em seu sistema de pensamento.
O raciocínio da moderna teoria da utilidade marginal começa com a ideia de uma economia em estado de puro escambo. O mecanismo de troca de mercadorias e de transações de mercado baseia-se na suposição de que prevalecem apenas as trocas diretas. Nesse cenário, os economistas estão descrevendo uma entidade puramente hipotética: um mercado sem trocas indiretas, sem um meio comum de trocas – isto é, um mercado sem moeda. Para apresentar o raciocínio a que se propõem, não há dúvidas de que esse método é o único possível, que a eliminação da moeda é necessária e que não se pode ir adiante sem essa ideia de um mercado com apenas trocas diretas.
Mas é necessário que os economistas entendam que esse é um conceito meramente hipotético, sem semelhança com a realidade. O mercado verdadeiro é necessariamente um mercado onde ocorrem trocas indiretas e transações monetárias.
Foi dessa suposição de um mercado sem moeda que surgiu a falaciosa ideia da moeda neutra. Os economistas ficaram tão afeiçoados à ferramenta fornecida por esse conceito hipotético que acabaram por superestimar a amplitude de sua aplicabilidade. Eles passaram a acreditar que todos os problemas da cataláxia [teoria praxeológica sobre como o mercado determina espontaneamente preços e trocas] podem ser analisados por meio desse conceito fictício. De acordo com essa visão, eles consideraram que a principal tarefa da análise econômica é o estudo das trocas diretas. Após isso, tudo o que resta fazer é introduzir os termos monetários nas fórmulas obtidas. Mas isto era, aos olhos deles, um trabalho de importância apenas secundária, pois estavam convencidos de que a introdução dos termos monetários não afetaria o básico da operação do mecanismo que eles haviam descrito. O funcionamento do mecanismo de mercado baseado no conceito do escambo puro não seria afetado por fatores monetários.
É claro que os economistas sabem que a relação de troca entre a moeda e as mercadorias (ou seja, os preços) é algo sujeito a mudanças. Mas eles acreditam – e esta é a essência da falácia da neutralidade da moeda – que essas mudanças no poder de compra ocorrem simultaneamente em todo o mercado, afetando igualmente todas as mercadorias. A mais notável expressão desse ponto de vista está no atual uso metafórico do termo “nível de preços”. De acordo com o raciocínio vigente, mudanças na oferta e na demanda de moeda – tudo o mais constante – fazem com que todos os preços e salários subam ou caiam. O poder de compra da unidade monetária é de fato alterado, mas as relações entre os preços de cada mercadoria permanecem constantes entre si. Ou é o que eles pensam.
Sim, os economistas desenvolveram por mais de cem anos o método dos índices de inflação com o intuito de mensurar as mudanças no poder de compra da moeda, mas não levaram em consideração que, no mundo real, os preços relativos de cada mercadoria estão em transição contínua. Os economistas ainda insistem na hipótese de que as consequências de uma mudança na demanda ou oferta de moeda são uma modificação proporcional e simultânea dos preços. O método dos índices foi criado para lhes fornecer uma maneira de possibilitar uma distinção entre dois fenômenos: o aumento dos preços em decorrência de alterações na demanda ou oferta de mercadorias e o aumento dos preços em decorrência de alterações na demanda ou oferta de moeda.
A errônea suposição da neutralidade da moeda é a raiz de todas as tentativas de se estabelecer a fórmula da chamada equação de troca. Ao lidar com tal equação, o economista matemático assume que, se uma variável da equação é alterada, então consequentemente outras variáveis também serão correspondentemente alteradas. O problema é que os elementos da equação não representam itens da economia individual, mas sim itens de todo o sistema econômico, o que significa que as mudanças por ela descritas estão ocorrendo não com os indivíduos, mas no sistema econômico como um todo. Procedendo desta forma, os economistas lidam com os problemas monetários aplicando de improviso um método radicalmente diferente do moderno método cataláxico. Eles retrocedem à antiga maneira de raciocinar que condenou ao fracasso o trabalho de outros economistas mais velhos.
Naqueles velhos tempos, os filósofos utilizavam conceitos universais – tais como a humanidade e outras noções genéricas – para lidar com suas especulações. Eles perguntavam: qual o valor geral do ouro ou do ferro? Isto é, qual o valor de ambos para todas as épocas e para todas as pessoas e considerando-se não só todo o ouro ou ferro disponível mas também aquele ainda não minerado? É claro que não lograram êxito seguindo esse método; descobriram apenas supostas antinomias que lhes eram insolúveis.
Todas as conquistas bem sucedidas da moderna teoria econômica têm de ser atribuídas ao fato de que aprendemos a proceder de forma diferente. Compreendemos que indivíduos agindo no mercado nunca são apresentados a uma escolha entre todo o ouro existente e todo o ferro existente. Eles não têm de decidir qual dos dois é o mais útil para a humanidade como um todo. Porém, eles têm de escolher entre duas quantias limitadas – sendo que não podem ter ambas ao mesmo tempo. Eles decidem qual dessas duas alternativas é-lhes mais favorável sob as condições existentes no momento em que tomam sua decisão. Esses atos de escolha realizados por indivíduos são as causas derradeiras da existência dos preços de mercado. É para estes atos de escolha que temos de dirigir nossa atenção. Não estamos nem um pouco interessados na puramente acadêmica, metafísica e até mesmo vã questão de determinar qual mercadoria em geral parece ser a mais útil aos olhos de uma inteligência super-humana capaz de examinar, desde um ponto de vista transcendental, todas as hipóteses possíveis.
Problemas monetários são problemas econômicos e têm de ser analisados da mesma forma que se analisa todos os outros problemas econômicos. O economista monetário não tem de lidar com entidades universais como volume total de trocas ou quantidade total de dinheiro em todo o sistema econômico. De menos ainda pode lhe servir a nebulosa metáfora “velocidade de circulação”. Ele antes de tudo tem de se conscientizar de que a demanda por moeda surge das preferências individuais dentro de uma sociedade de mercado. A demanda por moeda existe justamente pelo fato de que todos os indivíduos desejam, a qualquer momento, manter consigo uma certa quantia de dinheiro – às vezes mais, às vezes menos.
Não é correto dizer que a moeda está no sistema econômico ou na economia nacional. Como também é incorreto dizer que a moeda está circulando. A moeda nunca está simplesmente no sistema econômico, e nem nunca está simplesmente circulando. Todo o dinheiro disponível está sempre em posse de alguém. Uma parte desse dinheiro pode no máximo ser transferido de uma pessoa a outra; mas a todo o momento ele está em posse de alguém e é parte de seus haveres. São as decisões dos indivíduos em relação à magnitude de seus encaixes que irão constituir o fator supremo da formação do poder de compra da moeda.
É impossível que mudanças na quantidade de moeda e na demanda por encaixes ocorram no sistema econômico como um todo se não tiverem antes ocorrido nas famílias. Essas mudanças individuais jamais ocorrem com todos os indivíduos ao mesmo tempo e no mesmo grau; consequentemente, elas jamais afetam o julgamento de valor desses indivíduos ao mesmo tempo e no mesmo grau. Foi esse exatamente o mérito de Hume e Mill: eles tentaram construir um caso hipotético no qual as mudanças na oferta de moeda poderiam afetar todos os indivíduos de tal modo que os preços de todas as mercadorias iriam subir ou cair ao mesmo tempo e na mesma proporção. O fracasso dessa tentativa forneceu uma prova negativa dessa hipótese, e a economia moderna acrescentou a isso a prova positiva de que os preços de diferentes mercadorias não são influenciados ao mesmo tempo e no mesmo grau. Tanto a fórmula extremamente simples da velha teoria quantitativa da moeda quanto a da economia matemática contemporânea segundo a qual os preços – todos os preços – sobem ou caem na mesma proporção do aumento ou da diminuição da quantidade de moeda estão agora desacreditadas.
Para simplificar e abreviar nossa análise, voltemo-nos apenas para o caso da inflação monetária. A quantia adicional de dinheiro que entra na economia não vai parar diretamente nos bolsos de todos os indivíduos; e dentre os beneficiados que recebem primeiramente essa nova quantia, nem todos recebem a mesma quantia e nem todos reagem da mesma forma à mesma quantia que recebem. Aqueles primeiros beneficiados – no caso do ouro, os proprietários das minas; no caso de papel-moeda governamental, o Tesouro ou os bancos – têm agora um efetivo em caixa maior do que antes, o que os permite ofertar mais dinheiro no mercado em troca dos bens e serviços que desejam adquirir.
Essa quantia adicional de dinheiro que eles ofertam no mercado pressiona os preços e salários para cima. Mas não são todos os preços e salários que sobem; apenas os desses setores que primeiro receberam o novo dinheiro em troca de seus bens e serviços. E mesmo esses preços e salários que subiram, não sobem no mesmo grau. Por exemplo, se o dinheiro adicional for gasto com obras públicas, apenas os preços de algumas mercadorias e apenas os salários de alguns tipos de trabalho irão subir, sendo que os de outras áreas irão permanecer inalterados ou podem até mesmo cair temporariamente. Eles podem cair porque agora há no mercado alguns grupos de indivíduos cuja renda não aumentou, mas que, entretanto, são agora obrigados a pagar mais pelas mesmas mercadorias de antes – no caso, aquelas vendidas pelos indivíduos que foram os primeiros beneficiados pela inflação. Ao serem obrigados a pagar mais por determinados bens e serviços, eles passam a consumir menos de outras áreas, o que pode gerar essa queda temporária de preços.
Assim, as mudanças nos preços em consequência da inflação começam apenas com algumas mercadorias e serviços, e depois vão se difundindo mais vagarosamente de um grupo para outro. Leva-se tempo até que essa quantia adicional de moeda tenha perpassado toda a economia e exaurido todas as possibilidades de mudanças de preço. Mas, mesmo ao final do processo, os vários bens e serviços da economia não foram afetados no mesmo grau. Esse processo de progressiva depreciação monetária alterou a renda e a riqueza dos diferentes grupos sociais. Enquanto o processo de depreciação estiver ocorrendo, enquanto a quantia adicional de dinheiro não tiver exaurido todas as suas possibilidades de influenciar os preços e enquanto ainda houver preços inalterados – ou ao menos ainda não alterados completamente – haverá na comunidade alguns grupos favorecidos e alguns grupos prejudicados.
Aqueles que estão vendendo as mercadorias ou serviços cujos preços são os primeiros a subir poderão, em decorrência desse fenômeno, utilizar seus maiores proventos para adquirir o que quiserem a preços que ainda não se alteraram. Esses são os indivíduos que tiveram um ganho de riqueza. Por outro lado, aqueles que são os últimos a receber esse novo dinheiro estarão vendendo mercadorias ou serviços a preços ainda inalterados. Esses indivíduos ainda não obtiveram nenhum ganho de renda. Contudo, esses mesmos indivíduos agora têm de comprar as outras mercadorias e serviços a preços mais altos. Esses são os indivíduos que perderam riqueza.
Ou seja: os primeiros a receber o novo dinheiro obtiveram ganhos específicos; eles são os exploradores. Os últimos a receber o novo dinheiro são os perdedores, os explorados, de cujos bolsos saem os ganhos extras obtidos pelos exploradores. Enquanto durar o processo de inflação, estará havendo uma alteração contínua na renda e na riqueza dos indivíduos. Um grupo social ganha à custa de outros. Quando todas as alterações de preços em decorrência da inflação estiverem consumadas, pode-se dizer que ocorreu uma transferência de riqueza entre os grupos sociais. Há agora no sistema econômico uma nova dispersão de riqueza e renda. E nessa nova ordem social os desejos dos indivíduos serão satisfeitos em graus relativamente distintos; graus esses mais discrepantes em relação àqueles da ordem anterior. Os preços nessa nova ordem social não podem simplesmente ser um múltiplo dos preços anteriores.
As conseqüências sociais de uma alteração no poder de compra da moeda são duplas: primeiro, como o dinheiro é o padrão no qual se realizam os pagamentos futuros, as relações entre credores e devedores são alteradas. Segundo, como as mudanças no poder de compra não afetam todos os preços e salários ao mesmo tempo e no mesmo grau, há uma redistribuição de riqueza e renda entre os diferentes grupos sociais. De todas as propostas de se tentar estabilizar o poder de compra da moeda, o grande erro é não levar em consideração essa segunda consequência. Podemos dizer que a teoria econômica em geral não presta muita atenção a esse detalhe. No pouco que prestou, ela o considerou principalmente em termos de qual seria a consequência de uma inflação monetária para o comércio exterior de um país. Mas essa é apenas uma aplicação específica de um problema de extensão muita mais vasta.
O que é fundamental para a teoria econômica é saber que não há uma relação constante entre preços e mudanças na quantidade de moeda. Alterações na oferta de moeda afetam preços e salários de maneiras distintas. O uso metafórico do termo ‘nível de preços’ é enganoso.
A errônea opinião contrária foi baseada em uma consideração que pode ser assim representada: imaginemos dois sistemas – A e B – de equilíbrio estático absolutamente independentes entre si. Ambos são similares em todos os aspectos, exceto que, para a quantidade total de moeda (M) em A e para cada encaixe (m) individual em A, haja correspondentemente em B uma quantidade total Mn de moeda e uma quantidade mn de encaixes individuais. De acordo com essas suposições, todos os preços e salários em B são n vezes aqueles em A. Masessa relação entre eles é assim unicamente porque essas foram as nossas suposições hipotéticas. Apenas por isso. Ninguém pode arquitetar uma maneira através da qual o sistema A possa ser transformado no sistema B. Ademais, há o problema adicional de que não podemos trabalhar com um equilíbrio estático quando queremos abordar um problema dinâmico.
E deixando de lado todo o debate sobre o uso dos termos dinâmico e estático, gostaria apenas de dizer que a moeda é necessariamente um agente dinâmico e que é um grande erro lidar com questões monetárias em um cenário hipoteticamente estático. A moeda, sendo um fator dinâmico, não pode ser discutida em termos de equilibro estático.
Outro aspecto que deve ser atacado é a futilidade de todas as tentativas de estabilização do poder de compra da moeda. Está além do escopo deste artigo explicar as vantagens de uma sólida política monetária e as desvantagens tanto da inflação quanto da deflação monetárias. Mas não podemos confundir o conceito político de se ter uma moeda forte com o conceito teórico de se ter uma moeda estável. Não é minha intenção discutir aqui as contradições inerentes a esse conceito da estabilidade. Do ponto de vista do presente assunto, é mais importante enfatizar que todas as propostas de estabilização – além de todas as suas várias deficiências – baseiam-se na ideia da neutralidade da moeda. Todas essas propostas sugerem métodos de se desfazer mudanças já ocorridas no poder de compra. Assim, se já ocorreu a inflação, elas dizem que uma deflação de mesma magnitude pode corrigir o problema. E vice versa. O que os defensores dessa política não entendem é que, ao fazerem isso, eles não desfazem as consequências sociais da primeira mudança, mas simplesmente acrescentam a ela todas as alterações sociais que ocorrerão com essa segunda mudança. Se um homem se feriu ao ser atropelado por um automóvel, dar marcha a ré no carro e passar por cima dele novamente não é exatamente a cura para o problema.
Gostaria, finalmente, de fazer uma última observação. São erradas as crenças de que deve ser o objetivo da política monetária tornar a moeda neutra e que é função dos economistas determinar o melhor método para tal. Gostaria de enfatizar que vivemos em um mundo de constantes mudanças, em um mundo onde há ação. Em um mundo assim não há lugar para uma moeda neutra. Ou a moeda é não-neutra ou ela não existe.
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[*] [David Hume, “On Money,” in Writings on Economics, Eugene Rotwein, ed. (University of Wisconsin Press, Madison, 1970), pp. 33-46; John Stuart Mill, Principles of Political Economy, Sir William Ashley, ed. (1909), bk. 3, chap. 8; Hohn E. Cairnes, Essays in Political Economy (London: MacMillan, 1873), pp. 1-65.]