Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo

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Capítulo 9 – Produção Capitalista e o Problema do Monopólio

Os capítulos anteriores demonstraram que não pode ser formulado um argumento econômico nem um argumento moral a favor do socialismo. O socialismo é economicamente e moralmente inferior ao capitalismo. O capítulo 8 investigou a razão pela qual o socialismo, contudo, é um sistema social viável e analisou as características sócio-psicológicas do estado — a instituição que corporifica o socialismo. Sua existência, estabilidade e crescimento se assentam na agressão e no apoio público de sua agressão, que o estado administra com eficiência. Por um lado, isso é feito através de uma política de discriminação popular; isto é, uma política que suborna algumas pessoas dentro de uma tolerada e apoiada exploração contínua de terceiros pela concessão de benefícios; em segundo lugar, mediante uma política de participação popular na formulação da política, ou seja, corrompendo e persuadindo a população a entrar no jogo da agressão pela concessão aos potenciais detentores do poder a oportunidade consoladora de adotar seus esquemas específicos de exploração em uma das mudanças políticas subsequentes.Devemos voltar agora à economia e analisar o funcionamento de um sistema de produção capitalista — uma economia de mercado — como alternativa ao socialismo, trazendo desse modo e de maneira construtiva o meu argumento contra o socialismo e assim fechar o círculo. Enquanto o capítulo final será dedicado à questão de como o capitalismo resolve o problema da produção dos chamados “bens públicos”, este capítulo irá explicar o que poderia ser denominado de funcionamento normal da produção capitalista e diferenciá-lo do funcionamento normal de um sistema de produção estatal ou social. Nós, portanto, voltaremos aquilo que é geralmente considerado como um problema supostamente especial que mostra uma deficiência econômica peculiar num sistema puro de produção capitalista: o suposto problema da produção monopolística.

Ignorando por enquanto os problemas especiais do monopólio e da produção de bens públicos, iremos demonstrar por que o capitalismo é economicamente superior quando comparado à sua alternativa por três razões estruturais. A primeira é que só o capitalismo pode alocar racionalmente, ou seja, de acordo com as avaliações dos consumidores, os meios de produção; a segunda é que só o capitalismo pode assegurar que, com a qualidade das pessoas e a alocação dos recursos que estão sendo dadas, a qualidade da produção realizada atinge seu nível ótimo na medida em que é novamente julgado segundo as avaliações dos consumidores; e a terceira é que, considerando uma determinada alocação dos fatores de produção e a qualidade da produção, e mais uma vez julgado de acordo com as avaliações dos consumidores, só o sistema de mercado  pode garantir que o valor dos fatores de produção seja conservado de forma eficiente ao longo do tempo.[1]

Na medida em que produza para um mercado, ou seja, para troca com outras pessoas ou empresas e esteja sujeita à regra da não-agressão contra a propriedade dos proprietários naturais, cada empresa utilizará seus recursos para a produção desses bens na quantidade que promete antecipadamente um lucro com as vendas que superarem, tanto quanto possível, os custos envolvidos no uso desses recursos. Se não fosse assim, uma empresa utilizaria seus recursos para a produção de diferentes quantidades desses bens ou de bens completamente diferentes. E cada empresa tem que decidir repetidamente se uma determinada alocação ou uso de seus meios de produção devem ser mantidos e reproduzidos ou se, devido a uma mudança na demanda ou na antecipação dessa mudança, está definida uma realocação para diferentes usos. A questão de se os recursos foram ou não utilizados da maneira a se obter o maior valor produtivo (a forma mais lucrativa), ou se uma determinada realocação era a mais econômica, poderia, obviamente, só ser decidida num futuro mais ou menos distante sob qualquer sistema social ou econômico concebível, porque o tempo invariavelmente é necessário para produzir um produto e colocá-lo no mercado. Porém, e isso é decisivo, para cada empresa há um critério objetivo para decidir em que medida as suas decisões alocacionais anteriores estavam certas ou erradas. A contabilidade nos informa (e, em princípio, ninguém que quisesse fazê-lo poderia verificar e analisar essa informação) se, e em que medida, uma determinada alocação dos fatores de produção era ou não economicamente racional, não apenas para as empresas em geral, mas para cada uma de suas subunidades, na medida em que os preços de mercado existem para os fatores de produção nele utilizados. Uma vez que o critério lucro-prejuízo é um critério ex post (depois do evento), e tem que ser necessariamente assim sob qualquer sistema de produção devido ao fator tempo envolvido na produção, pode não ser de qualquer ajuda na decisão sobre as alocações futuras ex ante (antes do evento). Todavia, do ponto de vista dos consumidores, é possível conceber o processo de alocação de recursos e da realocação como racional porque cada decisão alocacional é constantemente testada à luz do critério lucro-prejuízo. Toda empresa que fracassa em cumprir esse critério no curto ou no longo prazo está condenada a encolher ou ser completamente tirada do mercado, e somente aquelas empresas que administram de forma bem-sucedida o cumprimento do critério lucro-prejuízo poderão continuar funcionando ou, possivelmente, crescer e prosperar. Portanto, na verdade, a institucionalização desse critério não assegura (e nenhum critério jamais poderia) que todas as decisões individuais das empresas serão sempre racionais de acordo com as avaliações dos consumidores. Contudo, eliminando as previsões ruins e reforçando de forma consistente a posição bem-sucedida é possível assegurar que as mudanças estruturais do sistema de produção como um todo realizadas ao longo do tempo possam ser descritas como movimentos constantes em direção a um uso mais racional dos recursos e enquanto um processo infindável de direcionar e redirecionar os fatores de produção de ramos de produção de menor valor produtivo para outros ramos muito mais valorizadas pelos consumidores.[2]

A situação é completamente diferente e a arbitrariedade, do ponto de vista do consumidor (para quem, deve-se recordar, a produção é destinada), substitui a racionalidade assim que o estado entra em cena. Pelo fato de ser diferente das empresas comuns na medida em que é autorizado a adquirir renda por meios não-contratuais, o estado não é obrigado a evitar prejuízos se quiser permanecer no negócio como todos os demais produtores. Pelo contrário, desde que foi autorizado a impor regulações e impostos sobre as pessoas, o estado está na posição de determinar unilateralmente se subsidia ou não, em qual medida e durante qual período, as suas próprias operações produtivas. Pode também escolher unilateralmente que potencial concorrente será autorizado a competir com o estado ou, provavelmente, perder a competição. Isso significa essencialmente que o estado está livre das considerações sobre custo-lucro. Mas se não for mais obrigado a testar continuamente qualquer de seus vários usos de recursos à luz desse critério, ou seja, se não mais precisar adequar com sucesso as suas alocações de recursos para as mudanças na demanda dos consumidores a fim de sobreviver como um produtor, então a sequência das decisões alocacionais como um todo tem que ser considerada como um processo arbitrário e irracional de tomada de decisão. Simplesmente, não mais existe um mecanismo de seleção forçando essas “mutações” alocacionais que sistematicamente ignoram ou expõem um desajuste na inoperante demanda do consumidor.[3] Afirmar que o processo de alocação de recursos se torna arbitrário na ausência do funcionamento efetivo do critério de lucro-prejuízo não significa que as decisões que alguma vez foram tomadas não estivessem sujeitas a qualquer tipo de restrição e que são, portanto, puro capricho. Não são, e qualquer decisão enfrenta determinadas restrições impostas ao tomador de decisão. Se, por exemplo, a alocação dos fatores de produção for decidida democraticamente, então, evidentemente, tem que se apelar à maioria. Mas se uma decisão é restringida dessa forma ou se é feita de maneira autocrática, considerando o estado da opinião pública da forma como é vista pelo autocrata, continua arbitrária do ponto de vista dos consumidores enquanto compradores voluntários ou não-compradores.[4] Portanto, a alocação de recursos, seja qual for e por mais que mude ao longo do tempo, inclui um desperdício dos meios escassos. Livre da necessidade de obter lucro para sobreviver como instituição servidora do consumidor, o estado substitui necessariamente a racionalidade pelo caos alocacional. M. Rothbard resume muito bem o problema:

Como ele (i.e., o governo) poderá saber se deve construir a estrada A ou B, se deve “investir” numa estrada ou numa escola — na verdade, quanto gastar em todas essas atividades? Não há modo racional que ele possa alocar os fundos ou mesmo decidir quanto deve ser obtido. Quando há falta de professores, de salas de aula, de policiais ou ruas, o governo e os que o apoiam só apresentam uma única solução: precisamos de mais dinheiro. As pessoas devem entregar mais do próprio dinheiro ao governo. Por que essa mesma solução nunca é oferecida no livre-mercado? O motivo é que o dinheiro deve ser retirado de um outro uso do consumo ou do investimento — e tal retirada deve ser justificada. Esta justificação deve ser fornecida pelo teste dos lucros e prejuízos: a indicação de que os mais urgentes anseios do consumidor estão sendo satisfeitos. Se um empreendimento ou produto estiverem gerando lucros altos para os proprietários, e se for esperado que tais lucros continuem, mais dinheiro irá surgir; caso contrário, se houver prejuízos, o dinheiro sairá da indústria. O teste dos lucros e prejuízos serve como guia crítico no direcionamento do fluxo de recursos produtivos. Não existe tal guia para o governo, que não tem como racionalmente decidir quanto dinheiro deve gastar, seja no total ou em cada ramo específico. Quanto mais dinheiro gasta, mais serviços pode oferecer — mas, onde isso vai parar?[5]

Além da má alocação dos fatores de produção como resultado da decisão de conceder ao estado o direito especial de se apropriar da receita de forma não-contratual, a produção estatal culmina numa queda da qualidade da produção do que quer que se decida produzir. Novamente, uma empresa comum com fins lucrativos só pode manter um determinado tamanho ou possivelmente crescer se puder vender os seus produtos por um preço e na quantidade que permita pelo menos recuperar os custos da produção ou, com sorte, ter uma receita maior. Uma vez que a demanda pelos bens e serviços produzidos depende tanto de sua quantidade relativa quanto do seu preço — sendo este um dos muitos critérios de qualidade — segundo a percepção dos potenciais compradores, os produtores tem que estar constantemente preocupados com a “qualidade percebida do produto” ou com o “barateamento do produto”. Para garantir sua continuidade, uma empresa é exclusivamente dependente das compras voluntárias dos consumidores, assim não há um padrão de qualidade arbitrariamente definido para um empreendimento capitalista (incluindo os chamados padrões científicos e tecnológicos de qualidade) e estabelecido por um suposto especialista ou por um comitê de especialistas. Para isso há apenas a qualidade segundo a percepção e julgamento dos consumidores. Mais uma vez, esse critério não impede que haja produtos de baixa qualidade ou produtos e serviços muito caros, pois a produção leva tempo e o teste de vendas só ocorre depois que os produtos são lançados no mercado. E tem que ser assim sob qualquer sistema de bens de produção. Contudo, o fato de que todo empreendimento capitalista deve se submeter e passar no teste de vendas para evitar ser eliminado do mercado garante uma posição de soberania para os consumidores e para suas avaliações. Só se a qualidade do produto for constantemente aprovada e adequada aos gostos dos consumidores é que uma empresa pode continuar atuando no mercado e prosperando.

A história é muito diferente quando a produção de bens é realizada pelo estado. Uma vez que a receita se torna independente do custo de cobertura das vendas — como é tipicamente o caso quando o estado produz um bem — não há mais razão para que o produtor fique preocupado com a qualidade do produto da mesma forma que ficaria uma instituição que depende das vendas. Se o rendimento futuro do produtor puder ser assegurado, independentemente se estiver de acordo com as avaliações dos consumidores de que os produtos e serviços produzidos merecem o seu dinheiro, por qual razão empreender esforços especiais para melhorar alguma coisa? Mais especificamente, mesmo que se considere que os servidores do estado como uma empresa produtiva com o direito de impor o pagamento de impostos e de regular unilateralmente a competitividade de seus potenciais rivais, sejam, na média, tão interessados ou desinteressados no trabalho quanto aqueles que trabalham numa empresa que depende do lucro,[6] e se, além disso, se considerar que ambos os grupos de funcionários públicos e trabalhadores privados estão, na média, igualmente interessados ou desinteressados no aumento ou na redução de seus rendimentos, então, a qualidade dos produtos, medida de acordo com a demanda dos consumidores e revelada pelas compras reais, tem que ser inferior naqueles produzidos numa empresa estatal do que os fabricados numa empresa privada, pois a renda dos funcionários públicos estariam menos dependentes da qualidade do produto. Consequentemente, eles tenderiam a dedicar relativamente menos esforços para produzir produtos de qualidade e a dedicar mais tempo e esforços para fazer o que eles querem, mas não necessariamente o que deseja consumidor.[7] Só se as pessoas que trabalham para o estado fossem sobre-humanas ou geniais, enquanto todo mundo seria simplesmente comum, um ser humano inferior, o resultado poderia ser diferente. No entanto, haveria de novo o mesmo resultado, ou seja, a inferioridade da qualidade do produto de quaisquer bens produzidos pelo estado, mesmo que a raça humana como um todo melhorasse de alguma forma: se trabalhassem para uma empresa estatal, até mesmo os anjos produziriam um resultado de qualidade inferior ao de seus colegas anjos da iniciativa privada, se o trabalho significou para eles uma desutilidade mínima.

Finalmente, além do fato de que só o sistema de mercado pode assegurar uma alocação racional dos recursos escassos, e que somente as empresas capitalistas podem garantir a fabricação de produtos que pode ser considerado de ótima qualidade, há uma terceira razão estrutural para a realmente insuperável superioridade econômica de um sistema capitalista de produção. Somente através do funcionamento das forças de mercado é possível utilizar ao longo do tempo os recursos de forma eficiente numa determinada alocação, ou seja, evitar a superutilização tanto quanto a subutilização. Esse problema já foi tratado no capítulo 3 em relação ao socialismo de estilo russo. Quais são as restrições institucionais de uma empresa comum com fins lucrativos em suas decisões sobre o grau de exploração ou conservação de seus recursos num ramo de produção específico no qual elas passam a ser utilizadas? Evidentemente, o proprietário de uma empresa possuiria os fatores de produção ou os recursos tanto quanto os produtos produzidos com ambos. Assim, a sua renda (usada aqui no sentido mais amplo do termo) consiste de duas partes: a renda que é recebida das vendas dos produtos produzidos após diversos custos de operação terem sido subtraídos; e o valor incorporado nos fatores de produção que poderia ser traduzida em renda atual caso o proprietário decidisse vendê-los. Institucionalizar um sistema capitalista — uma ordem social baseada na propriedade privada — significa, portanto, estabelecer uma estrutura de incentivos sob a qual as pessoas tentariam maximizar seus rendimentos em ambas as dimensões. O que isso significa exatamente?[8] Todo ato de produção afeta evidentemente as duas dimensões de rendimentos mencionadas. Por um lado, a produção é destinada a obter uma renda proveniente das vendas. Por outro lado, na medida em que os fatores de produção são esgotáveis, ou seja, enquanto eles são escassos e não são livres, todo ato produtivo significa uma deterioração do valor dos fatores de produção. Considerando que a propriedade privada existe, isso produz uma situação na qual toda empresa tenta constantemente não deixar que os custos marginais da produção (ou seja, a queda no valor dos recursos resultantes do seu uso) se tornem maiores do que a receita marginal do produto, e onde, com a ajuda da contabilidade, existe um instrumento para verificar o sucesso ou o fracasso dessas tentativas. Se um produtor não for bem-sucedido nessa tarefa e a queda no valor do capital for maior do que o aumento da renda proveniente das vendas, o rendimento total do proprietário (no mais amplo sentido do termo) seria reduzido. Portanto, a propriedade privada é um dispositivo institucional para salvaguardar um estoque existente de capital de ser excessivamente explorado ou para punir um proprietário por deixar isso acontecer através de perdas no rendimento. Isto ajuda a permitir que os valores produzidos sejam maiores do que os valores destruídos durante a produção. Em particular, a propriedade privada é uma instituição na qual um incentivo é estabelecido para adequar de forma eficiente o grau de conservação ou de consumo de um determinado estoque de capital num ramo de produção específico para as mudanças antecipadas de preço. Se, por exemplo, a expectativa fosse de aumento no preço futuro do petróleo acima do seu nível atual, então, o valor do capital ligado à produção de petróleo subiria imediatamente assim como o custo marginal envolvido na produção do produto marginal. Portanto, o empreendimento seria imediatamente forçado a reduzir a produção e, de forma equivalente, a aumentar a conservação, pois a receita marginal do produto no mercado vigente ainda estava num nível inferior inalterado. Por outro lado, se a expectativa fosse de queda nos preços futuros de petróleo abaixo do seu nível atual, isso resultaria numa queda imediata nos respectivos valores e nos custos marginais, e, consequentemente, a empresa começaria imediatamente a utilizar o seu estoque de capital de forma mais intensiva uma vez que os preços no mercado atual seriam relativamente mais altos. E, na verdade, essas duas reações são exatamente as desejáveis do ponto de vista dos consumidores.

Se o modo de funcionamento do sistema de produção capitalista é comparado com a circunstância que se institucionaliza sempre que o estado cuida dos meios de produção, surgem diferenças impressionantes. Isso é especialmente verdadeiro quando o estado é uma moderna democracia parlamentar. Neste caso, os gestores de uma empresa podem ter o direito de receber as receitas provenientes das vendas (após subtrair os custos de operação), mas, e isso é decisivo, eles não têm o direito de se apropriar de forma privada das receitas de uma possível venda dos fatores de produção. Num ambiente como este, o incentivo para usar economicamente e ao longo do tempo um determinado estoque de capital é drasticamente reduzido. Por quê? Porque se houver o direito de apropriação privada dos rendimentos provenientes das vendas, mas não se tem o direito de se apropriar dos ganhos ou prejuízos no valor do capital que resultam de um determinado nível de utilização desse capital, há então uma estrutura de incentivo institucionalizada, não para maximizar a renda total — ou seja, a riqueza social total de acordo com as avaliações dos consumidores —, mas para maximizar os rendimentos provenientes das vendas às custas das perdas no valor do capital. Por que, por exemplo, o governo deve reduzir oficialmente o grau de exploração de um determinado estoque de capital e recorrer a uma política de conservação quando a expectativa é a de que os preços dos bens produzidos aumentem no futuro? Evidentemente, a vantagem dessa política conservacionista (o mais alto valor do capital decorrente dela) não poderia ser aproveitada de maneira privada. Por outro lado, ao recorrer a essa política os rendimentos provenientes das vendas seriam reduzidos, ao passo que não seriam reduzidos se a conservação fosse esquecida. Em resumo, conservar significa não ter qualquer vantagem e todas as desvantagens. Portanto, se os gestores do estado não são super-humanos, mas pessoas comuns preocupadas com os seus próprios benefícios, deve-se concluir que se trata de uma consequência absolutamente necessária de qualquer produção estatal que um determinado estoque de capital seja superutilizado e que prejudique o padrão de vida dos consumidores quando comparado à mesma situação sob o capitalismo.

Agora é bastante certo que alguém argumente que, na medida em que não se pudesse duvidar do que foi demonstrado até agora, as coisas seriam, de fato, diferentes e a deficiência de um sistema de puro mercado viria à tona assim que fosse dada uma atenção especial ao caso da produção monopolista. E, por necessidade, a produção monopolista teria que surgir sob o capitalismo, pelo menos no longo prazo. Não apenas os críticos marxistas, mas também os teóricos econômicos ortodoxos formularam esse suposto contra-argumento.[9] Em resposta a essas críticas, serão apresentados quatro pontos. Em primeiro lugar, as evidências históricas disponíveis mostram que, ao contrário da tese dos críticos, não há uma tendência em direção a um aumento do monopólio sob um sistema de mercado sem entraves. Além do mais, há razões teóricas que colocam em dúvida se essa tendência poderia prevalecer num livre mercado. Em terceiro lugar, mesmo que esse processo de aumento da monopolização fosse conduzido, seria inócuo do ponto de vista dos consumidores contanto que a livre entrada no mercado fosse realmente garantida. O quarto ponto é que o conceito de preços de monopólio como diferenciados dos, e em contraste aos, preços competitivos é, numa economia capitalista, algo ilusório.

No que diz respeito à evidência histórica, se a tese dos críticos do capitalismo fosse verdadeira, seria preciso então esperar uma tendência mais nítida rumo a uma monopolização sob um capitalismo laissez-faire mais livre, sem entraves e desregulado do que sob um sistema relativamente e mais pesadamente regulado de capitalismo de “bem estar” ou de capitalismo “social”. No entanto, a história fornece evidência de resultados precisamente opostos. Há um consenso em relação à avaliação do período entre 1867 e a Primeira Guerra Mundial como sendo o período relativamente mais capitalista na história dos Estados Unidos e o período seguinte como sendo, comparativamente, o de aumento da regulação do mercado e da legislação do estado de bem-estar social. Porém, analisando a questão, se verifica que não houve somente menos desenvolvimento rumo à monopolização e a concentração de empresas no primeiro período em relação ao segundo, mas também que durante o primeiro período era possível observar uma tendência constante para uma concorrência mais séria com os preços de quase todos os bens caindo continuamente.[10] E essa tendência só foi interrompida e revertida quando no decorrer do tempo o sistema de mercado foi muito mais obstruído e destruído pela intervenção do estado. O crescimento da monopolização só se estabeleceu quando os principais empresários conseguiram persuadir o governo a interferir no sistema de concorrência feroz e aprovar uma legislação reguladora, impondo um sistema de concorrência “ordeira” para proteger as grandes empresas da chamada concorrência cruel que nascia continuamente em torno delas.[11] G. Kolko, um esquerdista e, certamente, uma testemunha confiável pelo menos para os críticos da esquerda, resumiu sua pesquisa sobre essa questão da seguinte forma:

Houve durante esse período (o primeiro) uma tendência dominante para o crescimento da concorrência. A concorrência era inaceitável para muitos dos principais líderes empresariais e financeiros, e o movimento de fusão foi em larga medida uma repercussão dos efeitos de negócios voluntários mal-sucedidos de colocar sob controle tendências irresistíveis. (…) Como surgiram novos concorrentes e como o poder econômico foi difundido por toda uma nação em expansão, tornou-se evidente para muitos empresários importantes que só o governo nacional poderia (controlar e estabilizar) a economia (…). Ironicamente, ao contrário do consenso entre os historiadores, não foi a existência do monopólio que provocou o governo a intervir na economia, mas a sua ausência.[12]

Além do mais, essas descobertas, que estão em clara contradição com a maior parte do conhecimento vulgar sobre a questão, estão apoiadas em considerações teóricas.[13] Monopolização significa que algum fator específico de produção é retirado da esfera do mercado. Não há comércio de fator, mas somente o proprietário desse fator se dedicando à restrição do comércio. Agora, se é assim, então não existe preço de mercado para esse fator de produção monopolizado. Mas se não há preço de mercado para esse fator, o proprietário do fator também não pode mais aferir os custos monetários envolvidos ao retê-lo fora do mercado e utilizá-lo como costuma fazer. Em outras palavras, ele não pode mais calcular seus lucros e se certificar que, mesmo que somente ex post facto, está realmente obtendo dos seus investimentos os mais altos lucros possíveis. Assim, desde que o empreendedor estivesse realmente interessado em produzir o mais alto lucro possível (algo que, na verdade, sempre é levado em consideração pelos seus críticos), teria que oferecer continuamente no mercado os fatores de produção monopolizados para ter certeza de que estava realmente utilizando-os da maneira mais lucrativa e que não havia outra maneira mais lucrativa de utilizá-los, de modo a fazer com que fosse mais lucrativo para o empreendedor vendê-los do que mantê-los. Portanto, ao que parece, seria obtido o seguinte resultado paradoxal: para maximizar seus lucros, o monopolista teria que ter um interesse permanente de desistir de sua posição como proprietário de um fator de produção retirado do mercado e desejar incluí-lo na esfera do mercado.

Além disso, a cada ato adicional de monopolização, o problema se torna ainda mais crítico para os proprietários dos fatores de produção monopolizados — ou seja, que devido à impossibilidade do cálculo econômico, ele não pode mais ter certeza de que aqueles fatores serão realmente utilizados da forma mais lucrativa. Particularmente, isso ocorre dessa forma porque, realisticamente, deve-se considerar que o monopolista não só não é onisciente, mas que seu conhecimento em relação aos bens e serviços que vão competir futuramente pelos consumidores dos mercados futuros se torna ainda mais limitado assim como o processo de desenvolvimento da monopolização. Como os fatores de produção são retirados do mercado e como o círculo de consumidores atendidos pelos bens produzidos com esses fatores é ampliado, será menos provável que o monopolista, incapaz de utilizar o cálculo econômico, possa continuar controlando todas as informações relevantes e necessárias para identificar os usos mais lucrativos para seus fatores de produção. Pelo contrário, se torna mais provável no decorrer desse processo de monopolização que outras pessoas ou grupos de pessoas, considerando o seu desejo comum para produzir lucros ao se dedicarem à produção, observem formas mais lucrativas de empregar os fatores de produção monopolizados.[14] Não necessariamente por serem os melhores empreendedores, mas apenas porque ocupam diferentes posições no espaço e no tempo, e assim se tornam cada vez mais alertas a respeito das oportunidades empresariais, o que, por sua vez, torna mais difícil e oneroso para o monopolista identificar a cada novo passo em direção à monopolização. Consequentemente, a probabilidade de que o monopolista seja persuadido a vender seus fatores de produção monopolizados a outros produtores  — nota bene: com o propósito de aumentar seus lucros — aumenta a cada novo passo adicional rumo à monopolização.[15]

Agora, suponhamos que o que a evidência histórica assim como a teoria demonstram ser improvável acontece de qualquer maneira, por qualquer motivo. E suponhamos imediatamente o caso mais extremo já concebido: há somente uma única empresa, digamos, um supermonopolista, que fornece todos os bens e serviços disponíveis no mercado e que é o único empregador. O que significa esse estado de coisas no que se refere à satisfação do consumidor considerando, obviamente, que o supermonopolista conquistou a sua posição e a manteve sem recorrer à agressão? Por um lado, significa evidentemente que ninguém tem qualquer reivindicação válida contra o proprietário dessa empresa, que, de fato, pertence a ele. E, por outro lado, significa que não há violação do direito de qualquer pessoa de boicotar qualquer eventual troca. Ninguém é obrigado a trabalhar para o monopolista ou comprar qualquer coisa dele, e todo mundo pode fazer o que quiser com seus ganhos provenientes dos trabalhos que realizou. Pode gastá-los ou poupá-los, usá-los com objetivos produtivos ou não-produtivos, ou se associar com outras pessoas e juntar os recursos financeiros para qualquer tipo de empreendimento conjunto (joint venture). Mas, se fosse assim, a existência de um monopólio só nos permitira dizer que, claramente, o monopolista não poderia ver qualquer chance de melhorar a sua renda com a venda de todos ou de parte de seus meios de produção, caso contrário, ele o faria. E ninguém mais poderia ver qualquer chance de melhorar a sua renda por meio de uma oferta maior pelos fatores de produção do monopolista ou ao se transformar num produtor capitalista, seja através de poupanças originais, através da transformação da riqueza privada existente utilizada de forma improdutiva em capital produtivo e através da combinação de recursos financeiros com terceiros, pois, caso contrário, isso também seria feito. Mas, depois, se ninguém visse qualquer chance de melhorar a sua renda sem recorrer à agressão, seria evidentemente absurdo ver qualquer coisa errada com esse tipo de supermonopólio. Caso isso nunca viesse realmente a acontecer no âmbito de uma economia de mercado, só provaria que esse mesmo supermonopolista estava realmente atendendo da forma mais eficiente os consumidores nas suas necessidades mais urgentes de bens e serviços.

No entanto, permanece a questão dos preços monopolísticos.[16] Um preço monopolístico não significa uma oferta subótima de bens para consumidores e não há uma exceção importante do funcionamento econômico geralmente superior do capitalismo encontrado aqui? De certa forma, essa questão já foi respondida pela explicação feita anteriormente de que mesmo um supermonopolista que se estabelece no mercado não pode ser considerado prejudicial para os consumidores. Mas, de qualquer forma, a teoria de que os preços monopolísticos são (supostamente) categoricamente diferentes dos preços competitivos foi apresentada numa linguagem técnica diferente e, portanto, merece um tratamento especial. O resultado dessa análise, que agora dificilmente causará surpresa, só reforça o que já foi descoberto: o monopólio não constitui um problema especial que obriga qualquer um a fazer alterações qualificadoras à regra geral de uma economia de mercado, sendo necessariamente mais eficiente do que qualquer sistema socialista ou estatista. Qual é a definição de “preço monopolístico” e, em contraste, de “preço competitivo”, de acordo com a ortodoxia econômica (que, na questão sob investigação, inclui a Escola Austríaca de economia representada por Ludwig von Mises)? A seguinte definição é típica:

O monopólio é um pré-requisito para o aparecimento de preços monopolísticos, mas não é o único pré-requisito. É necessário atender a uma condição adicional, qual seja, certa conformação da curva da demanda. A mera existência de monopólio não significa que essa condição esteja atendida. O editor de um livro do qual detenha os direitos de publicação é um monopolista. Mas pode ser que não consiga vender uma única cópia, por menor que seja o preço solicitado. O preço pelo qual o monopolista vende sua mercadoria nem sempre é um preço monopolístico. Preços monopolísticos são apenas os preços pelos quais é mais vantajoso para o monopolista restringir a quantidade a ser vendida do que expandir suas vendas até o limite que o mercado competitivo permitiria.[17]

Por mais plausível que essa distinção possa parecer, será argumentado que nem o próprio produtor nem qualquer observador imparcial externo poderiam decidir se os preços efetivamente obtidos no mercado eram monopolísticos ou competitivos baseado no critério “oferta restrita versus oferta irrestrita” especificado na definição anterior. Para compreender isso, suponha que exista um produtor monopolista como sendo “um único produtor de um determinado bem”. A questão de haver ou não um determinado bem diferente ou homogêneo dos outros bens produzidos por outras empresas não é a que pode ser decidida com base numa análise comparativa desses bens em termos físicos ou químicos ex ante, mas terá sempre que ser decidida ex post facto nos mercados futuros com tratamento igual ou diferente e com as avaliações que esses bens recebem do público comprador. Assim, cada produtor, não importa qual seja o seu produto, pode ser considerado um monopolista potencial nesse sentido do termo no ponto da tomada de decisão. Qual é,então, a decisão com que ele e cada produtor se depara? Ele tem que decidir quantos bens em questão deve produzir para maximizar a sua renda monetária (supondo que sejam dadas outras compensações de renda não-monetária). Para ser capaz de fazê-lo, ele tem que decidir como a curva da demanda para o produto em causa será conformada quando os produtos chegarem ao mercado, e deve levar em consideração os vários custos de produção para produzir diferentes quantidades dos bens a serem produzidos. Com isso feito, ele irá determinar a quantidade a ser produzida até aquele ponto em que os lucros das vendas, ou seja, a quantidade de bens vendidos vezes o preço, menos os custos de produção envolvidos na produção daquele volume, atingirá um valor máximo. Suponhamos que isso aconteça e que o monopolista também passe a acertar em sua avaliação da curva de demanda futura na qual o preço que ele busca para seus produtos, de fato, ganhem o mercado. Agora a questão é: esse preço de mercado é um preço monopolístico ou um preço competitivo? Como M. Rothbard percebeu em sua pioneira, mas bastante ignorada análise sobre o problema do monopólio, não há nenhuma maneira de saber. O volume de bens “restritos” foi produzido para tirar vantagem da demanda inelástica e dessa forma se obteve um preço monopolístico, ou o preço obtido foi um preço competitivo estabelecido para vender um volume de bens que foi expandido “até o limite que o mercado competitivo permitiria”? Não há maneira de decidir a questão.[18] Claramente, cada produtor sempre tentará definir o volume produzido num nível acima do qual a demanda se torne elástica e, consequentemente, produza retornos totais mais baixos devido aos preços pagos serem reduzidos. Desse modo, ele se envolve em práticas restritivas. Ao mesmo tempo, baseado em sua estimativa de conformar as curvas da demanda futura, cada produtor tentará sempre expandir a sua produção de qualquer bem até o ponto em que o custo marginal de produção (ou seja, o custo de oportunidade de não produzir uma unidade de um bem alternativo com a ajuda dos escassos fatores de produção agora estreitamente ligados ao processo de produção de uma outra unidade de x) iguala o preço por unidade de x que se espera ser capaz de cobrar a um nível de oferta correspondente. Tanto a restrição quanto a expansão são partes da maximização do lucro e da formação do preço de mercado, e nenhum desses dois aspectos podem ser separados um do outro para se fazer uma distinção válida entre a ação monopolista e a ação competitiva.

Agora, suponha que no próximo ponto da tomada de decisão o monopolista decida reduzir a fabricação do bem produzido de um nível anteriormente mais alto para um nível mais baixo, e considere que ele realmente consegue garantir neste momento lucros totais mais altos do que num ponto anterior no tempo. Não seria um exemplo claro de um preço monopolístico? Novamente, a resposta tem que ser negativa. E dessa vez, a razão seria o aspecto indistinguível dessa “restrição” realocacional de uma realocação “normal” que leva em consideração as mudanças na demanda. Todo evento que pode ser interpretado de uma determinada forma também pode sê-lo de outra maneira, e não há meios de decidir a questão, pois, mais uma vez, ambos são essencialmente dois aspectos da mesma coisa: da ação de escolher. O mesmo resultado, ou seja, uma restrição da oferta associada não apenas aos preços mais altos, mas aos preços altos o suficiente para aumentar a receita total das vendas, ocorreria se o monopolista que, por exemplo, produz um tipo único de maçãs se depara com um aumento na demanda por maçãs (um deslocamento para cima na curva de demanda) e, simultaneamente, um aumento ainda maior na demanda por laranjas (e um deslocamento para cima ainda mais drástico na curva de demanda). Nessa situação, ele também conseguiria lucros mais altos a partir de uma produção reduzida de maçãs, pois o seu preço anterior de mercado teria se tornado subcompetitivo no mesmo período. E se quisesse realmente maximizar seus lucros, em vez de simplesmente expandir a produção de maçãs de acordo com a demanda crescente, ele teria que usar alguns fatores anteriormente utilizados na produção de maçãs para produzir laranjas, pois nesse ínterim teriam ocorrido mudanças no sistema de preços relativos. Porém, e se o monopolista que limita a produção de maçãs não se envolve na produção de laranjas com os fatores agora disponíveis e, em contrapartida, nada faz com eles? De novo, tudo isso indicaria que junto com o aumento da demanda por maçãs ocorreria nesse período um aumento ainda maior na demanda por outro bem — por lazer, por exemplo (mais precisamente, a demanda do monopolista, que também é um consumidor, por lazer). A explicação para a oferta limitada de maçãs está nas alterações no preço relativo do lazer (em vez das laranjas) na comparação com outros bens.

Nem da perspectiva do próprio monopolista nem da de qualquer observador externo a ação restritiva poderia ser conceitualmente diferenciada das realocações normais que apenas acompanham as mudanças antecipadas na demanda. Toda vez que o monopolista se envolve em atividades restritivas que são acompanhadas por preços mais altos, ele deve, por definição, utilizar os fatores liberados para outros fins muito mais valorizados, o que significa que ele se adequa às mudanças na demanda relativa. Segundo M. Rothbard,

Não podemos usar a “restrição da produção” como o teste do preço monopolístico vs. preço competitivo. Um movimento de um preço subcompetitivo para um preço competitivo também envolve uma restrição da produção desse bem associado, é claro, a uma expansão da produção em outros ramos de atividades pelos fatores que foram liberados. Não há nenhuma maneira de distinguir essa restrição da expansão, que é a consequência natural da suposta situação de “preço monopolístico”. Se a restrição é acompanhada por um aumento de lazer para o proprietário do fator trabalho em vez do aumento da produção de algum outro bem no mercado, ainda se trata da expansão do rendimento de um bem de consumo — o lazer. Ainda não há uma forma de determinar se a “restrição” resultou num preço “monopolístico” ou num preço “competitivo”, ou em que medida a causa estava envolvida no aumento do lazer. Definir um preço monopolístico como um preço alcançado pela venda de uma quantidade menor de um produto por um preço mais alto, por essa razão, não tem qualquer sentido, uma vez que a mesma definição se aplica ao preço “competitivo” quando comparado ao preço subcompetitivo.[19]

A análise da questão do monopólio não fornece qualquer razão para modificar a descrição feita anteriormente sobre a forma como a economia de puro mercado normalmente funciona e a sua superioridade sobre qualquer tipo de sistema de produção socialista ou estatista. Não é apenas altamente improvável, tanto empiricamente quanto teoricamente, ocorrer um processo de monopolização mas, mesmo que ocorresse, seria inofensivo do ponto de vista dos consumidores. No âmbito de um sistema de mercado, um preço monopolístico restritivo não poderia ser distinguido do aumento do preço normal decorrente de uma demanda mais elevada e de alterações nos preços relativos. E como toda ação restritiva é simultaneamente expansionista é simplesmente absurdo afirmar que a redução da produção em um ramo de produção associado a um aumento na receita total significa uma má-distribuição dos fatores de produção e uma exploração dos consumidores. O equívoco presente nesse raciocínio foi corretamente demonstrado no seguinte trecho de um dos trabalhos tardios de L. v. Mises no qual ele refuta implicitamente a sua própria posição ortodoxa já mencionada em relação ao problema monopólio-preço. Mises afirma:

Um empreendedor que tem 100 unidades de capital à sua disposição emprega, por exemplo, 50 unidades para a produção de p e 50 unidades para a produção de q. Se ambas são lucrativas, é estranho culpá-lo por não ter empregado mais, por exemplo, 75 unidades para a produção de p. Ele poderia aumentar a produção de p apenas pela redução correspondente da produção de q. Mas, no que se refere à q, a mesma falha poderia ser encontrada entre os descontentes. Se o empreendedor é responsabilizado por não ter produzido mais p, deve-se responsabilizá-lo também por não ter produzido mais q. Isso significa que se responsabiliza o empreendedor pelo fato de que há uma escassez dos fatores de produção e que a Terra não é a de Cockaigne.[20]

Não existe o problema do monopólio como um problema especial dos mercados que exige uma ação estatal para ser resolvido.[21] De fato, só quando o estado entra em cena é que surge um problema real, não ilusório, do monopólio e dos preços monopolísticos. O estado é a única empresa cujos preços e práticas empresariais podem ser conceitualmente diferenciadas de todos os outros preços e práticas, e cujos preços e práticas podem ser classificados como “muito altos” ou “exploração” de uma maneira completamente objetiva e não arbitrária. São preços e práticas que os consumidores não desejam voluntariamente aceitar e pagar, mas que são forçados a fazê-los mediante ameaças de violência. E só de uma instituição tão privilegiada quanto o estado também é normal esperar e constatar um processo permanente de aumento da monopolização e da concentração. Na comparação com outras empresas, que estão sujeitas ao controle dos consumidores compradores ou não-compradores voluntários, a empresa “estado” é uma organização que pode tributar as pessoas e não precisa aguardar que elas aceitem o imposto, e pode impor regulações sobre o uso que as pessoas fazem de sua propriedade sem que seja preciso obter o seu consentimento. Isso, evidentemente, dá ao estado uma enorme vantagem na competição pelos recursos escassos na comparação com outras instituições. Se apenas se considera que os representantes do estado são igualmente impulsionados pelo lucro como qualquer outra pessoa, deduz-se dessa posição privilegiada que a organização “estado” deva ter uma tendência relativamente mais evidente para o crescimento do que qualquer outra organização. E, realmente, enquanto não havia evidência para a tese de que o sistema de mercado provocaria uma tendência para o crescimento do monopólio, a tese de que um sistema estatista a produziria é amplamente apoiada pela experiência histórica.

 



[1] Cf. sobre o tema os capítulos 3 e 10 deste livro.

[2] Sobre a função do lucro e do prejuízo, cf. L. v. Mises, Ação Humana, São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, capítulo 15; e “Profit and Loss”, do mesmo autor, em Planning for Freedom, South Holland, 1974; M. N. Rothbard, Man, Economy and State, Los Angeles, 1970, capítulo 8.

[3] Sobre a economia de governo, cf., esp. M. N. Rothbard, Governo e Mercado, São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2012, capítulo V.

[4] Sobre as alocações democraticamente controladas, várias deficiências se tornam muito evidentes. Por exemplo, em The Consequences of Mr. Keynes (London, 1978, p. 19), J. Buchanan e R. Wagner escreveram que: “A competição no mercado é contínua; a cada compra, um comprador é capaz de selecionar entre vendedores concorrentes. A competição política é intermitente; uma decisão é geralmente obrigatória durante um período determinado. A competição no mercado permite que muitos competidores sobrevivam simultaneamente (…). A competição política leva a um resultado de tudo-ou-nada (…). Numa competição no mercado, o comprador pode estar razoavelmente certo quanto ao que ele receberá com sua compra. Numa competição política, o comprador está, na verdade, adquirindo os serviços de um agente que ele não pode constranger (…). Além disso, como um político precisa assegurar a cooperação de uma maioria de políticos, o significado de um voto para ele é menos claro do que o de um ‘voto’ para uma empresa privada”. (Cf. também J. Buchanan, “Individual Choice in Voting and the Market,” in Fiscal Theory and Political Economy, Chapel Hill, 1962; para um tratamento mais amplo sobre o problema, cf. J. Buchanan e G. Tullock,The Calculus of Consent, Ann Arbor, 1962.)

Porém, o que tem sido frequentemente ignorado — especialmente por aqueles que tentam transformar em virtude o fato de que uma democracia concede igual poder de voto a todos ao passo que a soberania do consumidor permite “votos” desiguais — é a mais importante deficiência dentre todas: que sob um sistema de soberania do consumidor as pessoas podem votar de forma desigual além de exercerem o controle exclusivamente sobre as coisas que adquiriram através de apropriação original ou por contrato e, consequentemente, são forçadas a agir moralmente. Sob uma democracia de produção, se considera que todo mundo tem algo a dizer sobre as coisas que não adquiriram e, portanto, se é permanentemente convidado não apenas a criar instabilidade legal, com todos os seus efeitos negativos no processo de formação de capital, mas também a agir de forma imoral. Cf. também sobre o tema L. v. Mises, Socialism, Indianapolis, 1981, capítulo 31; e cf. o capítulo 8 deste livro.

[5] M. N. Rothbard, Governo e Mercado, São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2012, p. 194.

[6] É uma suposição muito generosa assim como é quase certo que o setor público de produção atrai desde o início um tipo diferente de pessoa e ostenta uma quantidade surpreendentemente grande de pessoas ineficientes, preguiçosas e incompetentes.

[7] Cf. L. v. Mises, Bureaucracy, New Haven, 1944; Rothbard, Governo e Mercado, São Paulo: Instituto Mises Brasil, 2012, p. 174 et seq.; e For A New Liberty, New York, 1978, capítulo 10; e também M. e R. Friedman,Tirania do Status Quo, Rio de Janeiro: Record, 1984,.

[8] Sobre o tema, cf. L. v. Mises, Ação Humana, São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, capítulo 23.6; M.N. Rothbard, Man Economy and State, Los Angeles, 1970, capítulo 7, esp. 7.4-6;  “Conservation in the Free Market”, in: Egalitarianism As A Revolt Against Nature, Washington, 1974; e For A New Liberty, New York, 1978, capítulo 13.

[9] Sobre o tema, cf. L. v. Mises, Socialism, Indianapolis, 1981, part 3.2.

[10] Assim afirma J. W. McGuire em Business and Society, New York, 1963, p. 38-39: “de 1865 a 1897, a queda de preços ano após ano dificultou para o empresário fazer planos para o futuro. Em muitas áreas as novas ligações ferroviárias resultaram em nacionalização do mercado ao leste do Mississipi e mesmo pequenos negócios em pequenas cidades foram forçadas a competir com outras empresas geralmente maiores e localizadas longe dali. Ao mesmo tempo, houve avanços notáveis em tecnologia e produtividade. Em resumo, foi uma época maravilhosa para o consumidor, mas um período assustador para os produtores, especialmente porque a concorrência ficou ainda mais acirrada.”

[11] Cf. G. Kolko, The Triumph of Conservatism, Chicago, 1967; e Railroads and Regulation, Princeton, 1965; J. Weinstein, The Corporate Ideal in the Liberal State, Boston, 1968; M. N. Rothbard e R. Radosh (eds.), A New History of Leviathan, New York, 1972.

[12] G. Kolko, The Triumph of Conservatism, Chicago, 1967, p.4-5; cf. também as investigações de M. Olson,The Logic of Collective Action, Cambridge, 1965, sobre o efeito das organizações de massa (particularmente, os sindicatos dos trabalhadores), que também não são um fenômeno de mercado, mas devem sua existência à ação legislativa.

[13] Sobre o tema, cf. L. v. Mises, Socialism, Indianapolis, 1981, part 3.2; e Ação Humana, São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, Capítulos 25-26; M. N. Rothbard, Man, Economy and State, Los Angeles, 1970, p.544 et seq.; p.585 et seq.; e “Ludwig von Mises and Economic Calculation under Socialism,” in: L. Moss (ed.), The Economics of Ludwig von Mises, Kansas City, 1976, p. 75-76.

[14] Cf. F. A. Hayek, Individualism and Economic Order, Chicago, 1948, esp. capítulo 9; I. Kirzner, Competição e Atividade Empresarial, São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2012.

[15] Sobre a propriedade em grande escala, em particular a da terra, Mises observou que ela normalmente só ocorre e é mantida pelas forças de não-mercado: pela violência coercitiva e pelo sistema legal estatal compulsório que proíbe ou dificulta a venda da terra. “Em nenhum lugar e em nenhum momento, a propriedade em grande escala veio a existir por obra das forças econômicas no mercado. Fundada na violência, tem sido mantida tão-somente pela violência. Tão logo os latifúndios são atraídos para a esfera das transações do mercado, começam a desmoronar até que desaparecem completamente (…). Que numa economia de mercado é difícil agora manter um latifúndio, tal dificuldade é mostrada pelos esforços para se criar legislação voltada a instituições como ‘Fideicomisso’ e instituições legais relacionadas à “herança inalienável” inglesa (…). A propriedade dos meios de produção nunca foi tão concentrada quanto na época de Plínio, quando metade da província da África pertencia a seis pessoas, ou no tempo dos Merovíngios, quando a igreja possuía a maior parte de todo o solo francês. E em nenhuma parte do mundo há menos propriedade da terra em grande escala do que na capitalista América do norte”. Socialism, Indianapolis, 1981, p.325—326.

[16] Cf. sobre o assunto M. N. Rothbard, Man, Economy and State, Los Angeles, 1970, capítulo 10, esp. p.586 et seq.; e também W. Block, “Austrian Monopoly Theory. A Critique”, in: Journal of Libertarian Studies, 1977.

[17] L.v. Mises, Ação Humana, São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, p.421; cf. também qualquer livro-texto, como o de P. Samuelson, Economics, New York, 1976, p.500.

[18] Cf. M. N. Rothbard, Man, Economy and State, Los Angeles, 1970, capítulo 10, esp. p.604-614.

[19] M. N. Rothbard, Man, Economy and State, Los Angeles, 1970, p.607.

[20] L.v. Mises, “Profit and Loss,” in: Planning for Freedom, South Holland, 1974, p.116.

[21] De fato, historicamente, a política governamental antitruste tem sido quase exclusivamente a prática de municiar concorrentes não tão bem-sucedidos com instrumentos legais necessários para dificultar o trabalho dos seus rivais mais bem-sucedidos. Uma impressionante coletânea de estudos de casos sobre os resultados dessa prática pode ser cf. em D. Armentano, Antitrust and Monopoly, New York, 1982; e também Y. Brozen,Is Government the Source of Monopoly? And Other Essays, San Francisco, 1980.

 

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