13. Abraham Lincoln e o Estado Moderno

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Luigi Marco Bassani

[Luigi Marco Bassani ([email protected]) é professor de História da Teoria Política na Università di Milan, Itália.]

 

Embora ainda seja reverenciado pela grande maioria dos americanos como crucial para a liberdade nacional, o “episódio de Lincoln” é considerado por alguns estudiosos periféricos como o prego no caixão do experimento americano de autogoverno. Na melhor das hipóteses, ele alterou drasticamente a República dos Fundadores, e de uma forma que não coaduna com as perspectivas políticas conservadoras e libertárias. De acordo com Thomas Fleming, por exemplo, “a presidência de Lincoln foi . . . a segunda fundação americana . . . que transformou um sistema constitucional estabelecido por Washington, Adams e Jefferson, como um regime de liberdade, em um estado jacobino radical enraizado no princípio da igualdade”.[1]

Nesta breve abordagem de Lincoln – pela qual me aventurarei muito ciente, mas não com medo, do que um estudioso definiu apropriadamente como “o domínio que Jaffa e Thurow têm sobre a teoria política lincolniana”[2] – não há espaço ou mesmo necessidade de tratar a questão da escravidão. A conhecida carta a Horace Greely é, de qualquer forma, a mais direta refutação da ideia de que Lincoln travou uma guerra contra o Sul para erradicar a escravidão. Como ele reconheceu da forma mais clara possível, seu principal interesse sempre foi a preservação da União, e a preocupação com os escravos negros não fazia parte da questão. Ele afirmou sem rodeios que não queria “deixar ninguém em dúvida” de que

meu objetivo principal nesta luta é salvar a União, e não é salvar ou destruir a escravidão. Se eu pudesse salvar a União sem libertar nenhum escravo, eu o faria.[3]

Enquanto para a maioria das pessoas naquela época o antiescravismo era unionismo, e vice-versa, Lincoln adotou uma linha de argumentação mais simples e afirmou muito claramente que o unionismo era o único objetivo do conflito. É exatamente a noção da União como um fim em si mesma, como o único arranjo institucional moral para os americanos, que é central para a compreensão de Lincoln como o agente do estabelecimento do Estado moderno nos Estados Unidos.

Muito do debate sobre Lincoln nas gerações passadas se concentrou em se a República sobreviveu ilesa ao drama da Guerra Civil ou se foi fundamentalmente alterada. Lincoln sempre insistiu que seguia os passos de Washington e Jefferson em relação a todas as questões relevantes de governo. Mais tarde, no entanto, tanto os devotos de Lincoln quanto um grande número de historiadores (as duas categorias tendem a se fundir no “culto de Lincoln”) afirmaram que a nação americana estava, de fato, muito necessitada de outra fundação, refutando assim qualquer afirmação de continuidade com o passado republicano que possa ser atribuída às políticas e ações de Lincoln. De qualquer forma, hoje em dia a noção de que Lincoln, para o bem ou para o mal, instigou uma renovação radical e mudou para sempre o cenário político americano é ponto pacífico.

Aqui, vou argumentar muito brevemente que Lincoln de fato trouxe uma mudança de primeira ordem, e provavelmente muito maior do que a maioria dos historiadores das ideias admitiria, pois obliterou a ingênua República Americana original. Falando sem rodeios, Lincoln precipitou a migração final para a América das categorias europeias de poder e do Estado.

Prima facie, Lincoln parece simplesmente ser o sucessor vitorioso da progressão de personagens que vão de Alexander Hamilton a Daniel Webster e Henry Clay. Mas com a ideia da União como um fim em si mesma, Lincoln descobriu o cavalo de Tróia com o qual trazer as categorias europeias do Estado moderno para a América. Ou seja, ao garantir a União e erradicar a escravidão, Lincoln não estava apenas defendendo uma postura moral; mais que isso, ele estava incorporando o Zeitgeist da época, cujo verdadeiro foco estava na consolidação do Estado moderno.

A Constituição de Lincoln

Lincoln geralmente negou que suas ações violassem a Constituição ou estivessem fora de sua estrutura. A despeito das garantias de Lincoln, a Constituição a partir de sua presidência tornou-se, em efeito, um documento profundamente diferente daquele ratificado em 1788. Mesmo uma leitura superficial da Constituição e da Declaração de Direitos (1791) mostrará que a geração revolucionária pensava que quase todas as ameaças sérias à liberdade do indivíduo vinham do governo. Todas as liberdades e direitos de que os Fundadores falavam eram entendidos como uma salvaguarda do indivíduo contra o governo. Esse era o raciocínio, por menos sofisticado que seja, por trás da noção de governo mínimo dos Fundadores. Todas as liberdades básicas são consideradas carentes de proteção contra um e apenas um agressor potencial, a saber, o governo (mais propriamente o governo federal, em vez de governos estaduais). Enquanto outros indivíduos sempre podem ser uma ameaça à propriedade, o governo pode destruir tanto a propriedade quanto os direitos de propriedade.

Com Lincoln, o foco das ameaças à liberdade muda do governo para os indivíduos. Não é o governo, mas sim os indivíduos que podem se tornar potencialmente abusivos. O governo, portanto, deve ser encarregado de tomar as medidas necessárias para proteger os indivíduos de serem explorados por outras pessoas. Este é um ponto de inflexão de primeira ordem e indica uma forma totalmente diferente de pensar o governo. Expandindo essas ideias, George Fletcher escreveu um livro perspicaz chamado Nossa Constituição Secreta: Como Lincoln redefiniu a democracia americana. Em sua opinião, já existem duas Constituições neste país. Além da Constituição original, existe agora uma constituição “secreta”, que não está escrita, criada pelo próprio Lincoln. Os dois documentos envolvem dois conjuntos diferentes de valores, presos em uma contradição contínua. “A primeira Constituição compromete-se com a liberdade, e a segunda baseia-se na preferência pela igualdade e no reconhecimento de que a liberdade muitas vezes é uma ilusão.”[4]

Enquanto a primeira Constituição é construída sobre uma desconfiança arraigada em relação ao governo, a segunda pressupõe confiança em um governo forte, o protetor dos cidadãos contra outros cidadãos. Na profunda mudança engendrada pela presidência de Abraham Lincoln, uma nova compreensão da relação entre o indivíduo e o governo foi trazida para a América, uma noção que prevalecia – e ainda prevalece – na Europa. A conclusão é tal que abala a própria fundação do antigo instrumento constitucional: “A visão que vem à tona na Constituição Secreta reconhece que tanto a liberdade quanto os direitos dependem da interação adequada com o governo”.[5] Simpatizantes e críticos concordam em um ponto: Lincoln mudou a Constituição e o sistema de governo americano para sempre.

Lincoln distorceu a Constituição de acordo com seus próprios objetivos. A explicação da lógica por trás de todos os abusos vem à tona em uma carta muito importante para Albert Hodges. Ele escreveu em abril de 1864:

Eu entendi que meu juramento de preservar a constituição da melhor maneira possível, impôs-me o dever de preservar, por todos os meios indispensáveis, aquele governo – aquela nação – do qual aquela constituição era a lei orgânica. Era possível perder a nação e ainda preservar a constituição? Pela lei geral, a vida e os membros devem ser protegidos; ainda assim, frequentemente um membro deve ser amputado para salvar uma vida; mas uma vida nunca é sabiamente dada para salvar um membro. Achei que medidas, de outra forma inconstitucionais, poderiam se tornar legais, tornando-se indispensáveis ​​à preservação da constituição, por meio da preservação da nação. Certo ou errado, assumi esse fundamento.[6]

Esta é a declaração mais importante da “persuasão de Lincoln” por duas razões. É a melhor ilustração de seu pensamento político, e a sentença de morte declarada para o liberalismo clássico na América.

Lincoln acredita que a Constituição é uma “lei orgânica”, uma noção europeia que foi uma novidade no discurso político americano. Ele segue traçando um paralelo inequívoco entre um corpo humano e um corpo coletivo. Em poucas frases podemos encontrar todos os elementos da teoria do Estado moderno de origem europeia, articulada por um homem que pode nunca ter ouvido falar de Maquiavel, Bodin, ou Hobbes, mas mesmo assim cantava ao som de suas melodias. Na mente de Lincoln, a Constituição é de fato uma lei orgânica, pois se destina a proteger e dar forma a uma sociedade orgânica através da criação de um Estado orgânico. O ponto crucial é que a sociedade ou a nação que ela deve proteger é muito mais importante do que a lei em si, a Constituição. Em outras palavras, a Nação vem primeiro.

Para Lincoln, a Constituição não tinha nenhum significado particular quando separada de seu mais importante “progenitor”, a União. Enquanto a questão no discurso político americano anterior devesse ser resumida como “se a União tinha algum significado fora da Constituição”,[7] Lincoln estava efetivamente revertendo a relação diádica. Na verdade, a União havia se tornado um fim místico e auto justificável.

Herman Belz e vários outros acadêmicos negam totalmente que o presidente tenha violado a Constituição. Segundo ele, “o exemplo de Lincoln é insistir na fidelidade ao texto, às formas e aos princípios da Constituição dos fundadores”.[8] Para Lincoln, “a nacionalidade americana foi definida pela Constituição … a nação era a Constituição”.[9] Na verdade, Lincoln declarou exatamente o contrário: a nação não era a Constituição, e Lincoln estava disposto a violar a última para salvar a primeira.

A parte mais reveladora da franca declaração de Lincoln sobre a Nação e a Constituição é o uso da metáfora orgânica. Essa equação entre um corpo vivo e um Estado é de extrema importância, uma vez que é crucial para o surgimento das categorias e da terminologia do Estado moderno na teoria política. O Estado (moderno), de fato, não é apenas um conjunto de regras, uma maneira nova de olhar para a comunidade política; também está personificado em uma terminologia que sutilmente obriga alguém a pensar sobre o Estado dentro da estrutura mental do próprio Estado. O surgimento do Estado moderno na Europa acompanhou a mudança do léxico político ocorrida a partir dos anos 1500. O Estado teve que ser interpretado pelos juristas como uma pessoa artificial que transcendia a pessoa do governante principesco e, em última instância, sua própria dinastia, garantindo sua perpetuação. O novo corpo político tinha vida própria, além dos súditos e até do soberano; não representava ninguém, simplesmente existia e era alimentado por mitos produzidos por historiadores, juristas, teólogos e também por políticos (sobretudo, o mito de ter sempre existido).

Vital para tal criação, quase tão crucial quanto a própria noção de soberania, foi o uso extensivo da metáfora orgânica. É a ideia de que o conjunto de relações entre os seres humanos forma uma entidade real, um organismo vivo, que o Estado, essa pessoa artificial, tem o dever de regular. Na melhor das hipóteses, isso implica simplesmente que o governo político é natural para a sociedade, visto que a própria sociedade é um corpo político. Embora seja verdade que tais metáforas possam ser encontradas no pensamento político grego da Antiguidade, principalmente na República de Platão, elas não eram particularmente populares antes do surgimento do Estado moderno.

Uma guerra civil é totalmente disruptiva, pois se opõe diretamente ao dogma do Estado: ela duplica ou multiplica a união na qual o Estado se baseia. Apresenta uma “casa dividida”, ou um organismo doente, e “não pode se manter”. Em um Estado moderno, os separatistas, os perturbadores da unidade, devem ser tratados como inimigos irredimíveis, inimigos absolutos, a serem eliminados da face da Terra: pois eles desafiaram o princípio mais sagrado de todos, o da união. Se esta perspectiva da Guerra Civil como o “Estado moderno vindo para a América” está correta, então a guerra não foi desnecessária como sugere Thomas DiLorenzo,[10] porque a República dos Fundadores, minimalista e descentralizada, precisava ser substituída pela “racionalidade” do Estado moderno, e a guerra foi o meio para esse fim.

Os Estados Unidos experimentaram em poucos anos, aproximadamente entre 1832 e 1865, uma réplica telescópica do que aconteceu com a Europa de 1525 a 1815. Na Europa foi o soberano – primeiro o rei e depois a assembleia – que prometeu libertar todos os indivíduos das lealdades tirânicas e antiquadas que eram o cerne da liberdade na Idade Média: igreja, cidade, corporação, família e assim por diante. O indivíduo precisava ser libertado de todos os laços sociais anteriores para se tornar um cidadão bom e livre.

Nesta tragédia o governo federal assumiu o papel do poder soberano na história europeia, enquanto os Estados ficaram com o papel de relíquias. A guerra foi de fato necessária porque a República dos Fundadores foi baseada em princípios que não estavam apenas em desacordo com o Estado moderno, mas eram totalmente hostis a ele. Um federalismo genuíno não é, de fato, uma opção para um Estado moderno.

Para Lincoln, a União era a metáfora orgânica ideal. Como evidência da posição de Lincoln sobre a União, a mensagem para o Congresso de 1º de dezembro de 1862 é bastante útil. A comovente descrição dos Estados Unidos como uma entidade física viva, como “nossa família  nacional”, é a premissa sobre a qual o presidente alicerça sua afirmação de que tal entidade orgânica

em todas as suas adaptações e aptidões. . . exige união e abomina separação. Na verdade, isso … forçaria a re-união, por mais sangue e tesouro que a separação possa ter custado.[11]

Nesta importante mensagem ao Congresso, Lincoln também enfatizou muito claramente por que não deveria haver separação, custe o que custasse:

Aquela porção da superfície da terra que pertence e é habitada pelo povo dos Estados Unidos está bem adaptada para ser o lar de uma família nacional; e não é bem adaptada para duas ou mais. … [Tudo neste país deve] ser uma combinação vantajosa, para um povo unido.[12]

Para Lincoln, a União era o grande guardião do princípio da igualdade, e ele estava disposto a sacrificar tudo para preservá-la. Ele queria que os Estados Unidos tomassem o lugar da Europa na supremacia mundial porque acreditava firmemente que a Europa estava condenada por sua história de opressão, brutalidade e desigualdade radical, e que os Estados Unidos seriam um líder muito melhor e mais justo: um líder que iria eventualmente levar igualdade e democracia para toda a humanidade.

A religião civil de Abraham Lincoln

Outro elemento de interesse nesta avaliação da irrupção das categorias do Estado moderno na América é a noção de Lincoln de “religião civil”. Nos tempos modernos, a ideia de uma religião civil foi sugerida por Maquiavel e mais tarde foi totalmente desenvolvida por Jean-Jacques Rousseau. A busca por uma religião civil que substituísse o Cristianismo anda de mãos dadas com a construção intelectual do Estado moderno. Um dos dogmas seculares do Estado moderno é que o “mistério do ser” deve estar localizado neste mundo e na comunidade política, não no céu acima de nós. Maquiavel, Rousseau e muitos outros consideravam uma “religião cívica (ou civil)” o instrumento mais adequado para garantir a obediência dos cidadãos às instituições políticas.

Lincoln se considerava um cristão puro e ainda é considerado por muitos como um personagem inspirador neste campo. Ainda assim, sua única referência clara à noção de uma “religião política americana” é caracterizada por conotações distintamente não-cristãs. Refiro-me ao seu famoso discurso de 1838, no qual defendia que a “reverência pelas leis” se tornasse a virtude suprema do país:

Que seja ensinado nas escolas, seminários e faculdades … seja pregado do púlpito, proclamado nas salas legislativas e aplicado nos tribunais de justiça. E, em resumo, que se torne a religião política da nação; e que os velhos e os jovens, os ricos e os pobres, os sérios e os alegres, de todos os sexos e línguas, e cores e condições, sacrifiquem incessantemente em seus altares.[13]

Mais uma vez, o leitor e o estudioso devem se perguntar se de fato Lincoln de alguma forma teve Rousseau gravado em seu coração, sem, provavelmente, nunca ter ouvido falar dele.

Francis Lieber e a Escola Staatstheorie alemã

Quando confrontado com todos esses tópicos – União, Nação, metáforas orgânicas, religião civil – todos levando a um único objetivo, a renovação da comunidade política americana na forma de um Estado moderno, o historiador das ideias enfrenta uma grande questão: “De onde isso estava vindo?” Embora Lincoln tenha sido o político americano mais brilhante de sua época (e possivelmente da história americana), ele era bastante inculto em filosofia política. De certa forma, no entanto, as obras de Francis Lieber, que em 1827 foi um dos primeiros acadêmicos alemães a migrar para os Estados Unidos, podem muito bem ter influenciado a mentalidade de Lincoln. Lieber serviu como um canal entre as culturas intelectuais e políticas da Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos. A influência de Lieber em trazer as categorias do Estado moderno para o Novo Mundo não deve ser subestimada. Conforme observado por dois historiadores das influências culturais alemãs nos Estados Unidos:

As contribuições [de Lieber] para a teoria política marcaram o início de uma nova era nas ideias americanas sobre a natureza do Estado. Houve declarações antecipatórias da teoria que ele apresentou, mas estas foram fragmentárias e assistemáticas em comparação com o sistema orgânico apresentado em seus tratados eruditos. A publicação entre 1838 e 1853 de seus três livros sobre ética política, sobre hermenêutica jurídica e política, e sobre liberdade civil e autogoverno o colocaram à frente da nova escola de pensamento político, ao mesmo tempo em que punha em retirada a então reinante teoria da lei natural.[14]

Desde seu início com Francis Lieber, a “ciência política” americana foi – e permaneceu por décadas – estampada nos moldes da Staatstheorie teutônica, embora sem as sutilezas filosóficas da tradição Kant-Fichte-Hegel. Fundamentou-se em noções continentais, antes de mais nada no culto do “estado cuja origem está na história, cuja natureza é orgânica, cuja essência é a unidade, cuja função é o exercício de sua vontade soberana na lei, e cujo fim último é a perfeição moral da humanidade.”[15]

Ou, como o próprio Lieber declarou em uma de suas obras mais significativas:

O Estado foi criado juntamente com o homem; não é uma associação voluntária … não é uma empresa de acionistas; não é uma máquina, não é um serviço contratado por indivíduos que antes viviam fora dele; não é mal necessário; … O Estado é uma forma e faculdade da humanidade para conduzir a espécie em direção a uma perfeição maior – é a glória do homem.[16]

A doutrina de Lieber é “uma concepção profética”, de acordo com Vernon Parrington, baseada no “princípio de um estado em evolução que atrai todas as soberanias menores para sua órbita pela lei da atração”.[17] Parrington estava bem ciente da importância de Francis Lieber, que “forneceu uma base filosófica” para a teoria jurídica de Joseph Story. “Sob o ataque jurídico e filosófico combinado, a teoria compacta viu suas defesas filosóficas derrubadas, sua teoria dos direitos naturais minada, e sua posição privilegiada efetivamente subvertida.”[18] Alan Grimes coloca Lieber na transição entre “a abordagem constitucional e legal para uma compreensão da natureza da União Americana, e a ascensão do conceito orgânico de nação”.[19] A importância do professor alemão na formação das ideias que Lincoln explorou em sua plenitude foi observada por outros historiadores. Lieber “havia de fato argumentado antes da guerra que a Constituição original era insuficiente para as necessidades da nação. … Nas décadas de 1830 e 1840, ele ganhou destaque, no Norte e no Sul, por atacar a ideia de uma Constituição fixa.” Defensor ferrenho do crescimento federal, ele pensava “que o poder federal deveria se expandir lenta e organicamente – e, portanto, constitucionalmente – à medida que a nação crescia. … Ele acreditava que a guerra solidificaria a União e, assim, realizaria seu sonho, alimentado durante seus anos escolares na Alemanha, de viver em um Estado-nação moderno.” Mais tarde, durante a guerra, Lieber tornou-se muito popular, e escreveu dezenas de artigos e panfletos para “popularizar sua marca distinta de nacionalismo”. Na prática, “[s]uas muitas declarações públicas usaram a insurreição do Sul para justificar uma expansão do poder federal para além do que a Constituição expressamente sancionou.”[20]

Embora um dos mais importantes, Lieber não foi o único a fomentar esses conceitos por todo o país. William T. Harris de St. Louis, um dos primeiros hegelianos americanos, e o educado na Alemanha John W. Burgess, o próprio sucessor de Lieber no Columbia College, estavam unindo forças para familiarizar os cidadãos com o novo dogma nacionalista. Nesse aspecto, a guerra foi claramente um ponto de inflexão. Como disse Merle Curti:

Durante e após a Guerra Civil, os intelectuais do Norte desenvolveram a incipiente teoria orgânica, que a princípio não atingiu as massas nem mesmo no Norte. No Velho Mundo, a teoria orgânica também estava servindo ao tipo integral de nacionalismo que havia substituído, em grande parte, a versão mais antiga e humanitária do início do século XIX.[21]

Conclusão

Nas palavras de Karl Marx, a Guerra Civil foi um “movimento revolucionário de transformação mundial”.[22] Datada do ano de 1862, esta deve ser considerada uma de suas poucas profecias corretas, embora essa tenha sido fácil.

Todo o cenário político da América foi mudado pela guerra de uma forma incomparável. O apelo ao poder centralizado foi o tema do dia e tornou-se o legado eterno da guerra. Para os Estados, não era apenas a ideia de uma união perpétua e não exatamente voluntária que prevalecia, mas também a noção de que os Estados eram meras províncias de um vasto império.

A crise setorial que começou em 1828 (com a publicação da Exposição e Protesto da Carolina do Sul, escrita por John Calhoun), até a tentativa de independência do Sul, desenvolveu-se em duas questões interligadas: interpretação constitucional e tarifas. A vitória do Norte nas duas frentes foi absoluta. A Constituição foi transformada pelas emendas do pós-guerra e podia ser interpretada livremente pela Suprema Corte, com os Estados – enquanto Estados – não participando de sua leitura. A Constituição tornou-se um assunto típico do poder federal. Da mesma forma, ao final, a supremacia econômica do governo federal era incontestável. Um sistema de bancos nacionais licenciados pelo governo nacional tornou obsoleta a luta de uma década contra um banco nacional. Se a luta dos jeffersonianos tinha sido por “moeda forte e quase nenhum governo”, no final da década de 1870 um governo todo-poderoso promovia uma moeda fiduciária.

A Suprema Corte, sob Chase … confirmou a constitucionalidade da Lei de Curso Legal. Antes do final da Reconstrução, os Greenbackers clamavam por mais papel-moeda. Poucos cidadãos antes da guerra haviam contribuído diretamente para o tesouro. Com o fim da guerra, tudo e todos foram tributados.[23]

No final, foi a presidência de Lincoln – o próprio estadista que disse “os princípios de Jefferson são as definições e axiomas da sociedade livre”[24] – que escreveu finis para esses mesmos princípios e encerrou a experiência americana de governo limitado e autogoverno. Uma das principais consequências da teoria meta-constitucional da União como um fim em si mesma (e de equiparar sua dissolução a uma “catástrofe moral”) adotada por Abraham Lincoln foi tornar o pensamento político americano mais receptivo às teorias europeias.[25] Os Estados Unidos avançaram em direção a uma espécie de “normalização”, tornando-se cada vez mais semelhantes à Europa. E esse processo de “convergência” atingiria seu ápice no século passado. Lincoln “normalizou” os Estados Unidos, abrindo assim a porta para a americanização do mundo.

O liberalismo constitucional americano original, a saber, o federalismo, tendo perdido suas amarras na teoria dos direitos naturais, foi se transformando cada vez mais em um instrumento de conflito ideológico entre as duas seções do país, que já eram equivalentes a verdadeiras nações distintas.

As mudanças profundas que tentei resumir aqui são mais bem entendidas como o triunfo do Estado moderno, mas também podem ser vistas, em uma abordagem americana mais clássica, como o afastamento definitivo do projeto de autogoverno e governo limitado dos Pais Fundadores. Esta conclusão, é claro, pode irritar os ouvidos daqueles – acadêmicos, historiadores populares, jornalistas e políticos – que subscrevem à visão padrão em voga de que a gigantesca revolução ocasionada pela Guerra Civil foi, antes de mais nada, uma cruzada moral para a erradicação da escravidão e a redenção do pecado original da raça branca neste país.

Para concluir, devemos voltar aos professores americanos da Staatstheorie. É verdade que seu domínio na profissão enfraqueceu após a Primeira Guerra Mundial, e seu fracasso final pode estar ligado ao fato de que eles foram “incapazes de aplicar a ideia alemã de Estado à tradição política americana”.[26] Mas isso é verdade apenas de uma perspectiva puramente teórica. Abraham Lincoln não estava engajado em um objetivo tão complexo. Ele não teve que tornar as duas tradições compatíveis, mas sim queimar as pontes com a antiga noção americana de “liberdade vs. governo”. Além disso, ele não precisava vencer nenhuma disputa acadêmica sofisticada, pois tinha armas melhores do que autoridades acadêmicas continentais em matéria de liberdade e de Estado. Foi o seu exército que de fato fez com que todos os cidadãos, ao Sul e ao Norte do Potomac, reconhecessem a noção de que existia uma identidade de interesses entre o indivíduo e o Estado (agora entendido como Nação).

A sabedoria convencional admite que Abraham Lincoln, ao erradicar a escravidão, também erradicou a velha noção de uma oposição entre o indivíduo e o Estado. Eu diria, entretanto, que uma leitura mais cuidadosa da história nos dá um quadro materialmente diferente. O objetivo principal de Lincoln era, de fato, erradicar a oposição do século XVIII entre o indivíduo e o Estado, privando de qualquer sentido uma Constituição construída sobre tal dicotomia. O principal resultado foi o fim da República dos Fundadores e o surgimento dos Estados Unidos como um Estado Moderno. O resultante fim da escravidão foi apenas um efeito colateral, embora muito bem-vindo, do objetivo principal de Lincoln.

 

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Notas

[1]  Thomas Fleming, “Três Faces da Democracia: Cleisthenes, Jefferson e Robespierre”, Telos 104 (Verão de 1995), p. 51.

[2] William S. Corlett, Jr., “The Availability of Lincoln’s Political Religion,” Political Theory X, no. 4 (novembro de 1982) p. 521.

[3] Abraham Lincoln para Horace Greely, 22 de agosto de 1862, The Collected Works of Abraham Lincoln, R.P. Basler, ed. 9 vols. (New Brunswick, N.J.: Rutgers University Press, 1953) [doravante Collected Works], vol. V, p. 388.

[4] George P. Fletcher, Our Secret Constitution: How Lincoln Redefined American Democracy (Nova York: Oxford University Press, 2001), p. 223.

[5] Ibid.

[6]  Abraham Lincoln para Albert G. Hodges (4 de abril de 1864), Collected Works, vol. VII, pág. 281.

[7] Richard Gamble, “Rethinking Lincoln,” em The Costs of War. America’s Pyrrhic Victories, John V. Densen, ed. (New Brunswick: Transaction, 1999), p. 141.

[8] Herman Belz, Abraham Lincoln, Constitutionalism, and Equal Rights in the Civil War Era (Nova York: Fordham University Press, 1998), p. 100.

[9] Ibidem, p. 98.

[10] Thomas J. DiLorenzo, The Real Lincoln: A New Look at Abraham Lincoln, His agenda, and An Unnecessary War (New York: Three Rivers Press, 2003).

[11] Abraham Lincoln, “Annual Message to Congress” (1º de dezembro de 1862), Collected Works, vol. V, p. 529.

[12] Ibidem, p. 527.

[13] Abraham Lincoln, “Discurso perante o Liceu dos Rapazes de Springfield, Illinois” (27 de janeiro de 1838), Collected Works, vol. I, p. 112 (ênfase adicionada).

[14] Henry A. Pochmann e Arthur R. Schultz, Cultura Alemã na América, 1600–1900: Influências Filosóficas e Literárias (Madison, WI: University of Wisconsin Press, 1957), p. 125.

[15] Sylvia D. Fries, “Staatstheorie and the New American Science of Politics,” Journal of the History of Ideas 34, no. 3 (julho-setembro de 1973), pp. 391-404: 391.

[16] Francis Lieber, Manual de Ética Política, Projetado Principalmente para o Uso de Faculdades e Estudantes de Direito (1838-1839), 2ª rev. ed., Theodore D. Woolsey, ed. (Filadélfia: Lippincott, 1888), vol. II, p. 162.

[17] Vernon L. Parrington, Main Currents in American Political Thought: Uma Interpretação da Literatura Americana dos Começo a 1920, The Romantic Revolution in America (1800-1860) (New York: Harcourt, Brace, 1927), vol. II, p. 89.

[18] Ibid.

[19] Alan Pendleton Grimes, American Political Thought (Nova York: Holt, 1960), p. 283.

[20] Michael Vorenberg, Liberdade Final: A Guerra Civil, a Abolição da Escravidão e a Décima Terceira Emenda (Cambridge: Cambridge University Press, 2001), p. 64.

[21] Merle Curti, The Roots of American Loyalty (Nova York: Columbia University Press, 1946), p. 175.

[22] Karl Marx para Friedrich Engels, 29 de outubro a novembro. 17 de 1862, em Karl Marx sobre a América e a Guerra Civil, Saul K. Padover, ed. (Nova York, McGraw-Hill, 1972), p. 263.

[23] James A. Rawley, The Politics of Union: Northern Politics during the Civil War (Lincoln, NE: University of Nebraska Press, 1980), p. 184.

[24] Abraham Lincoln para H.L. Pierce et al. (6 de abril de 1859), Collected Works, vol. II, p. 375.

[25] Apenas como exemplo, no final do século XIX, John W. Burgess ofereceu uma definição de soberania como um “poder original, absoluto, ilimitado e universal sobre o sujeito individual e sobre todas as associações de sujeitos” e do “Estado … [como] a fonte de todos os títulos de terra e de todos os poderes sobre ela”, John W. Burgess, Political Science and Comparative Constitutional Law (Boston-London: Ginn, 1891), vol. I, pp. 47 e 52.

[26] Sylvia D. Fries, Staatstheorie and the New American Science of Politics, p. 403.

 

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