25. A busca libertária por uma narrativa histórica global

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“Foi concedido aos historiadores um dom que foi negado até mesmo aos deuses – alterar aquilo que já aconteceu!” — David Irving

Todo mundo sabe que eu não sou um hayekiano. Mesmo assim, considero Hayek um grande economista – não da mesma estirpe de Mises, mas poucos, se existirem, o são. Porém, a fama de Hayek perante o público tem menos relação com seu trabalho econômico, derivando largamente de seu trabalho sobre teoria política, e é nesta área que considero Hayek mais deficiente. Nem mesmo seu sistema de definições é intrinsicamente consistente. Suas empreitadas no campo da epistemologia são geniais, no entanto, também nelas ele fica abaixo das proezas de seu professor Mises. Apesar disso, devido a sua extensa obra interdisciplinar, que contém um inestimável tesouro de insights aguçados sobre muitos temas, eu considero Hayek um dos intelectuais das ciências sociais mais magníficos do século XX.

Simbolizando esta admiração, coloquei uma citação de Hayek na declaração programática da PFS:

Devemos tornar a construção de uma sociedade livre novamente uma aventura intelectual, um ato de coragem. O que carecemos é de uma Utopia liberal, um programa que não se assemelhe a uma mera defesa das coisas como elas são e nem um tipo brando de socialismo, mas um radicalismo verdadeiramente liberal que não poupe as suscetibilidades do poderoso. . . ., que não seja exageradamente pragmático e que não se limite ao que seja aparentemente possível politicamente no momento. Precisamos de líderes intelectuais que estejam preparados para resistir as lisonjas do poder e da influência e que queiram trabalhar por um ideal, por menor que possam ser os prospectos de suas primeiras realizações. Eles devem ser homens que estejam dispostos a ater-se a princípios e lutar pela sua completa realização, por mais remota que seja. . . . A menos que consigamos mais uma vez tornar as fundações filosóficas de uma sociedade livre uma questão intelectual ativa, e sua implementação uma tarefa que desafie a engenhosidade e a imaginação de nossas mentes mais aguçadas, os prospectos da liberdade são realmente tenebrosos. Mas se conseguirmos reconquistar esta crença no poder das ideias que era a marca do liberalismo em seu auge, a batalha não está perdida.

Hayek, logicamente, não seguiu seu próprio conselho e sua filosofia política acabou sendo uma trapalhada repleta de concessões internamente inconsistentes. Mas isso não quer dizer que seu apelo por um radicalismo intelectual intransigente, que foi o propósito e se tonou a marca da PFS, não seja válido ou correto.

Mas este não será meu tópico aqui. Ao invés disso, quero falar sobre outro importante insight de Hayek que pode ser encontrado na introdução que ele escreveu para a coleção de ensaios reunidos no livro Capitalism and the Historians. Aqui Hayek argumenta que ao passo que o radicalismo intelectual intransigente é necessário como uma fonte de energia e inspiração para os líderes de um movimento liberal-libertário, isto não é suficiente para atrair o público. Porque o público em geral não está acostumando ou é incapaz de usar o raciocínio abstrato, teorias avançadas e consistência intelectual, mas formam suas convicções e opiniões políticas tendo por base narrativas históricas, i.e. de interpretações predominantes de eventos passados, e, portanto, cabe aos que querem mudar as coisas para um futuro liberal-libertário, desafiar e corrigir estas interpretações e propor e promover narrativas históricas revisionistas alternativas.

Quanto a isso deixe citar Hayek:

Enquanto os eventos do passado forem a fonte da experiência da raça humana, suas opiniões não serão determinadas por fatos objetivos mas pelos registros e interpretações que eles tiverem acesso. . . . Mitos históricos talvez tenham desempenhado um papel tão importante em moldar opiniões quanto os fatos históricos. . . . Então, a influência que os autores de história exercem sobre a opinião pública é provavelmente mais imediata e extensiva do que a de teóricos políticos que lançam novas ideias. Parece que quando estas novas ideias alcançam uma abrangência maior, geralmente não são em suas formas abstratas, mas como interpretações de eventos específicos. Ao menos neste sentido o historiador está mais próximo do poder direto sobre a opinião pública do que o teórico. . . . A maioria das pessoas, quando ouve que suas convicções políticas foram afetadas por opiniões particulares sobre história econômica, dirão que elas nunca se interessaram nela e nunca leram um livro sobre esse tema. Porém, isto não quer dizer que elas não consideram como fatos estabelecidos muitas lendas que em algum momento foram espalhadas por autores de história econômica.[1]

O tema central do livro mencionado, editado por Hayek, é a revisão do ainda popular mito de que foi o sistema de livre mercado capitalista, dos tempos do começo da chamada Revolução Industrial, por volta do início dos anos 1800, o responsável pela miséria econômica que fez com que até mesmo criancinhas tivessem que trabalhar 16 horas ou mais sob condições deploráveis em minas ou locais de trabalho igualmente execráveis; e que foi somente graças as pressões de sindicatos e da intervenção do governo na economia através de meios e medidas chamadas “políticas sociais” que este sistema “desumano” de “exploração capitalista” foi gradualmente superado e melhorado.

Ao ouvir esta triste história pela primeira vez, é de se esperar que a primeira pergunta que vem a mente seria: por que algum pai ou mãe submeteria seu filho a estas condições e o entregaria a um explorador capitalista malvado? Estas crianças tinham uma vida maravilhosa antes, passeando alegremente campos verdejantes, com bochechas rosadas cheias de saúde, colhendo flores, comendo maças das macieiras, pescando e nadando em riachos, rios e lagos, brincando com seus brinquedos e ouvindo atentamente os contos de seus avós? Neste caso, que pessoas horríveis devem ter sido estes pais?! Meramente fazer essas perguntas deveria ser o suficiente para perceber que esta história não pode ser verdade. E de fato, como Hayek e seus colaboradores demonstraram, são exatamente o oposto da verdade.

Até a Revolução Industrial, a Inglaterra e o resto do mundo, por milhares de anos, viveram sob condições malthusianas. Isto é, o suprimento de bens de consumo fornecido pela natureza e pela produção humana através de meios bens de produção intermediários não era suficiente para garantir a sobrevivência de uma população crescente. O crescimento populacional excedia o crescimento de produção e qualquer aumento na produtividade e, consequentemente, não apenas na Inglaterra mas em todos os lugares, um “excedente” de população regularmente tinha que morrer por desnutrição, saúde debilitada e por fim, fome. É somente com e a partir da Revolução Industrial que esta situação se altera fundamentalmente e a armadilha malthusiana foi sucessivamente superada, primeiro na Inglaterra, depois na Europa continental e nas colônias europeias e finalmente também em grande parte do resto do mundo, de modo a permitir não somente um aumento populacional constante mas também uma população crescente com um contínuo aumento no padrão de vida material. E esta realização história foi o resultado do capitalismo de livre mercado, ou mais precisamente, uma combinação e interação de três fatores. Primeiro, a segurança geral da propriedade privada; segundo, a baixa preferência temporal, i.e., a habilidade e disposição de um crescente número de pessoas de postergar a gratificação imediata como poupar para o futuro e acumular um sempre crescente estoque de bens de capital; e terceiro, a inteligência e engenhosidade de um número suficiente de pessoas para inventar e desenvolver um fluxo constante de ferramentas e máquinas de aumento de produção sempre novas.

Os pais da pobre criança, que a entregaram ao “capitalista malvado” nos tempos da Revolução Industrial não eram pais ruins, mas como a maioria dos pais em todos os lugares que querem o melhor para seus filhos, eles escolheram fazer isso porque preferiam que seus filhos vivessem, mesmo se fosse uma vida miserável, ao invés de morrerem. Ao contrário do ainda popular mito nos meios esquerdistas, o capitalismo não causou miséria, mas literalmente salvou a vida de milhões de pessoas que iriam morrer de fome e gradualmente as tirou de suas condições anteriores de pobreza extrema; e as chamadas “políticas sociais” dos sindicatos e governos não ajudaram nisto mas atrapalharam e retardaram este processo de melhoria econômica gradual e foram e ainda são responsáveis por incontáveis mortes desnecessárias.

Existem muito mais mitos relacionados tão ou mais absurdos propagados pelos, para usar o termo de Nicholas Taleb, IPIs (Intelectuais, Porém Idiotas) e são comumente aceitos pelo público em geral: Que seja possível legislar uma maior prosperidade econômica simplesmente aprovando leis de salário mínimo – mas então por que não legislar uma taxa salarial de US$100 ou 1.000 por hora, e por que a Índia, por exemplo, ainda é um país pobre? Seriam as elites dominantes na Índia tão burras a ponto de não conhecerem esta fórmula mágica? Ou então, que a miséria econômica pode ser resolvida simplesmente aumentando as despesas orçamentárias – mas então por que, uma vez que hoje em dia todos os governos podem facilmente aumentar a quantidade de papel moeda praticamente sem limites, ainda existe uma pessoa pobre?

Tampouco estas narrativas históricas fraudulentas se limitam somente à história econômica. Na verdade, muito do que aprendemos como verdades estabelecidas de nossos livros convencionais de história sobre a Primeira e Segunda Guerras Mundiais, sobre as Revoluções americana e francesa, sobre Hitler, Churchill, FDR ou Napoleão, etc., etc., etc., também vemos que são história fraudulenta: fatos misturados, voluntaria ou involuntariamente, com altas doses de ficção ou mentiras.

*

No entanto, por mais importante que seja a revisão de todos estes mitos, econômicos ou outros, o grande desafio para os libertários é desenvolver uma grande narrativa histórica que rebata e corrija a chamada teoria Whig da história que todas as elites dominantes, em todos os tempos e lugares, tentaram vender ao público: é a visão de que vivemos na melhor época de todos os tempos (e que são elas que garantem que isso ocorra) e que o longo curso da história, não obstante seus altos e baixos, tem sido de um progresso mais ou menos contínuo. Esta teoria Whig da história, apesar de alguns retrocessos motivados em particular pelas experiências das duas guerras mundiais durante a primeira metade do século XX, novamente recuperou uma posição predominante na opinião pública, como indicado pelo sucesso de livros como o The End of History and the Last Man de Francis Fukuyama ou, ainda mais recente, The Better Angels of our Nature e Enlightenment Now de Steven Pinker.

De acordo com os proponentes desta teoria, o que torna a presente época tão maravilhosa e a coloca como a melhor de todos os tempos é a combinação de dois fatores: primeiro, nunca antes na história da humanidade a tecnologia e as ciências naturais alcançaram um nível de desenvolvimento tão alto e o padrão de vida material médio foi tão alto quanto hoje em dia – o que parece ser essencialmente correto e que sem dúvida contribui muito para a aceitação e encanto do público à teoria Whig; e segundo, nunca antes na história as pessoas supostamente experimentaram tanta liberdade como hoje em dia, com o desenvolvimento da “democracia liberal” ou “capitalismo democrático” – cuja alegação, apesar de sua enorme popularidade, eu considero um mito histórico e, já que o nível de liberdade e de desenvolvimento econômico e tecnológico são de fato correlacionados positivamente, me leva a concluir que os padrões de vida material médio seriam ainda mais elevados do que são apenas se a história tivesse tomado um curso diferente.

Mas antes de apresentar uma narrativa histórica alternativa notavelmente revisionista e indicar onde Pinker e sua turma perdem o rumo com sua história mundial Whig, cabem alguns comentários sobre a história da ciência. Até recentemente, a crença em um crescimento contínuo da ciência, pelo menos, nunca foi colocado muito em dúvida – até o começo da década de 1960, com o historiador da ciência Thomas Kuhn e seu livro The Structure of Scientific Revolutions. Kuhn, em contraste com a visão ortodoxa Whig sobre o assunto, retratou o desenvolvimento da ciência não exatamente como uma marcha contínua ascendente e para a luz, mas como uma sequência de “mudanças de paradigmas” que seguem-se uns aos outros de uma forma muito parecida – sem rumo – como mulheres seguem as modas de roupas femininas. O livro foi um grande sucesso e por algum tempo a visão de Kuhn se tornou ela mesma uma moda bem difundida nas rodas filosóficas. Porém, apesar de Kuhn, eu ainda considero a visão tradicional a respeito do desenvolvimento da ciência essencialmente correta. O principal erro de Kuhn e também de muitos outros filósofos da ciência e, supreendentemente, expressado também sucessivas vezes por Sheldon Cooper, o personagem físico teórico super-científico nerd na popular série de TV The Big-Bang Theory, reside em um equívoco fundamental relativo à inter-relação entre ciência, por um lado, e engenharia e tecnologia, pelo outro.

Este é o popular equívoco de considerar que a ciência vem primeiro, tem prioridade e de assumir que ela possui uma dignidade e uma posição superior à engenharia e à tecnologia, estas sendo apenas atividades intelectuais secundárias e inferiores, i.e., como mera ciência “aplicada”. Porém, na verdade as coisas são exatamente o contrário. O que vem primeiro metodologicamente, e o que torna a ciência como a conhecemos possível e ao mesmo tempo fornece suas fundamentações definitivas, são a construção e engenharia humana. Falando francamente: Sem os instrumentos propositadamente projetados e fabricados como réguas de medição, relógios, balanças, lentes, microscópios, telescópios, audiômetros, termômetros, espectrômetros, maquinas de ultrassom e raios-x, aceleradores de partícula, etc., etc., etc., nenhuma ciência experimental e empírica como as conhecemos seria possível. Ou parafraseando o grande cientista filósofo alemão Peter Janich: “Handwerk” vem primeiro e fornece a fundação estável e a base da “Mundwerk.” Sejam quais forem as controvérsias ou picuinhas que os cientistas tenham, sempre serão controvérsias e picuinhas dentro de uma estrutura operacional estável e de um sistema de referência definido por um dado estado tecnológico. E, no campo da engenharia humana, ninguém descartaria ou “falsearia” um instrumento operacional a menos, ou até que, se tenha outro instrumento operacional melhor disponível.

Portanto, é a engenharia e os seus avanços que possibilitam a ciência e o progresso científico e ao mesmo tempo impedem que eles aconteçam, o que a filosofia “falsificacionista” da ciência de Karl Popper que atualmente domina a opinião pública intelectual deve considerar ser “sempre possível”: não apenas a re-gressão científica, mas mesmo o colapso total de todo o nosso sistema de conhecimento devido ao supostamente “sempre possível” falseamento até mesmo da hipótese aparentemente mais básica. O que impede que este pesadelo ocorra e o que expõe o envolvimento, tanto o relativismo de Kuhn e o relativo falsificacionismo de Popper, em erros metodológicos elementares é a existência do “Handwerk” e sua primazia e prioridade metodológica sobre a mera “Mundwerk” da ciência.[2]

(Nota: Não estou negando aqui a possibilidade de períodos de re-gressão no desenvolvimento da ciência. Mas eu iria explicar estas regressões como consequências de uma perda anterior de conhecimento prático de engenharia. ‘Inofensivamente’, no curso normal do desenvolvimento econômico, algumas técnicas podem desaparecer e serem esquecidas, porque não há mais nenhuma demanda para seus produtos.  Todavia, isto pode não significar necessariamente um passo atrás no conhecimento de engenharia. De fato, esta perda pode ser causada pelo desenvolvimento de técnicas diferentes, necessárias para a fabricação de produtos diferentes mais demandados. A perda aqui é o trampolim do progresso tecnológico. Ferramentas e máquinas antigas são substituídas por outras novas e melhores. Mas outro desenvolvimento, menos ‘inofensivo’ é possível também e de fato ocorreu em certos lugares e épocas. Por exemplo, por causa de uma peste a população – e com ela a divisão do trabalho – pode diminuir drasticamente e levar a uma enorme e generalizada perda de técnicas e conhecimento de engenharia, de modo que seja preciso uma volta a modos de produção anteriores mais primitivos. Ou então, uma população pode simplesmente ficar menos inteligente que os seus predecessores, por qualquer razão que seja, e serem incapazes de manter um nível dado (herdado) de avanço tecnológico.)

Com isto fora do caminho, posso agora focar na parte falsa da teoria da história Whig – relativa a história social. Ao passo que é comparativamente mais fácil diagnosticar o progresso tecnológico e junto com ele o científico: o progresso ocorre, independente se aprendemos como conseguir alcançar algum resultado melhor e/ou mais rápido em nossas relações propositais com mundo não-humano de objetos materiais, plantas e animais; — é muito mais difícil definir e diagnosticar o progresso social, i.e., o progresso nas relações interpessoais ou interações homem-à-homem.

Para isso é necessário primeiro definir um modelo de perfeição social que esteja de acordo com a natureza humana, i.e., do homem como ele realmente é, que possa servir como um sistema de referência para diagnosticar a proximidade ou distância relativa deste ideal de diversos eventos, períodos e desenvolvimentos históricos. E esta definição de perfeição social e progresso social deve estar rigorosamente separada, independente e distinta analiticamente da definição do crescimento e da perfeição tecnológica e científica (mesmo se as dimensões e o progresso – ou crescimento – forem empiricamente correlacionados positivamente). Ou seja, conceitualmente deve ser permitido que possa haver sociedades que sejam (quase) perfeitas socialmente mas tecnologicamente atrasadas, bem como sociedades que sejam tecnologicamente mais avançadas e no entanto socialmente atrasadas.

Para o libertário, este ideal de perfeição social é a paz, i.e., uma interação normalmente tranquila e sem tensões de pessoa para pessoa – e uma resolução pacífica de um conflito ocasional – dentro de uma estrutura estável de propriedade privada ou variada (mutuamente exclusiva) e direitos de propriedade. Todavia, não pretendo com isso atrair apenas libertários, mas uma audiência potencialmente universal ou “católica”, porque o mesmo ideal de perfeição social é essencial também o prescrito pelos dez mandamentos bíblicos.

Deixando de lado os primeiros quatro mandamentos, que se referem à nossa relação com Deus como a primeira e única autoridade moral suprema e juiz supremo de nossa conduta terrena e a celebração apropriada do Sabbath, o resto, referindo-se a assuntos mundanos, apresenta um firme e profundo espírito libertário.

  1. Honra teu pai e tua mãe, a fim de que tenhas vida longa na terra que o Senhor, o teu Deus, te dá.
  2. Não matarás.
  3. Não cometerás adultério.
  4. Não roubarás.
  5. Não darás falso testemunho contra o teu próximo.
  6. Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem seus servos ou servas, nem seu boi ou jumento, nem coisa alguma que lhe pertença

Alguns libertários podem argumentar que nem todos esses mandamentos possuem o mesmo status ou importância. Podem apontar, por exemplo, que o quinto e o sétimo mandamentos não se equiparam em dignidade aos mandamentos seis, oito e dez; que isto também pode valer para o mandamento nove, proibindo a difamação; ou que desejar a mulher ou os servos do próximo não se equipara com cobiçar sua casa ou terreno. No entanto, os dez mandamentos não dizem nada sobre a severidade e punição adequada das violações de seus mandatos. Eles proscrevem todas as atividades e desejos mencionados, mas deixam em aberto a questão de quão severamente qualquer um deles deva ser punido.

Assim, os mandamentos bíblicos vão além do que muitos libertários consideram ser suficientes para o estabelecimento de uma ordem social pacífica: a mera adesão estrita aos mandamentos seis, oito e dez. Entretanto esta diferença entre um libertarianismo estrito e rígido e os dez mandamentos bíblicos não implica em nenhuma incompatibilidade entre os dois. Ambos estão em completa harmonia fazendo-se apenas uma distinção entre proibições legais, por um lado, expressas no mandamento seis, oito e dez, violações que podem ser punidas pela utilização de violência física, e proibições morais ou extra-legais pelo outro lado, expressas pelos mandamentos cinco, sete e nove, violações que podem ser punidas somente por meios abaixo do limiar da violência física, como ostracismo, exclusão, discriminação ou reprovação social. Na verdade, assim interpretada a totalidade dos seis mandamentos mencionados pode ser reconhecida como um aprimoramento de um libertarianismo estrito e rígido – dado o objetivo comum de perfeição social: de uma ordem social pacífica, justa e estável.

Com certeza, qualquer sociedade de pessoas que habitualmente desrespeitam seus pais e rotineiramente zombam da ideia de posições e hierarquias de autoridade social, que fundamentam a instituição da família; que desdenham da instituição do casamento e arrogantemente consideram o adultério inconsequente, sem problemas ou mesmo um ato de libertação; ou que habitualmente debocham da ideia de honra de honestidade pessoal e rotineiramente  ou mesmo prazerosamente comentem atos difamatórios, i.e., a prática de “dar falso testemunho contra o teu próximo” – qualquer sociedade como esta irá rapidamente se desintegrar em um grupo de pessoas incessantemente perturbadas por desavenças e conflitos sociais ao invés de desfrutarem de paz sólida e duradoura.

Tomando como um parâmetro de referência este ideal de perfeição social bíblico-libertário, então, o próximo passo em nosso argumento deve ser o diagnóstico, i.e., a classificação e avaliação comparativa de diversos desenvolvimentos e períodos históricos em relação a sua proximidade ou distância deste objetivo ideal supremo.

Neste quesito, imediatamente um primeiro diagnóstico relativo ao mundo contemporâneo se revela. Mesmo se nós concedermos que o modelo ocidental dominante de “democracia liberal” ou “capitalismo democrático” chega mais perto do ideal do que os modelos de organização social atualmente adotados em outros lugares, fora do chamado mundo ocidental, ainda assim fica extremamente longe do ideal. Na verdade, ele contradiz e viola explicitamente e categoricamente os mandamentos bíblicos “católicos”, e os proponentes e promotores deste modelo evidentemente (mesmo que eles não admitam) negam e se opõem à vontade de Deus e tornam-se ao invés defensores do diabo.

Pois mesmo com os maiores malabarismos intelectuais é impossível derivar a instituição do Estado à partir destes mandamentos. Se ninguém pode roubar, matar ou desejar a propriedade do outro, então jamais pode ser permitido que exista uma instituição que rouba, mata e deseja a propriedade do outro. Todavia, como em todas as outras sociedades hoje, todas as sociedades ocidentais atuais, também são sociedades com Estados, que podem rotineiramente roubar (impostos), matar (guerras) e cobiçar a propriedade de outro (legislar). Além disso, nas sociedades de estado democrático ocidentais em especial, o pecado moral de desejar a propriedade de outro homem não é apenas estritamente e universalmente legalizado (e rotineiramente praticado), como também, sob a democracia, este pecado é na verdade incentivado e “cultivado” ao seu absoluto – diabólico – extremo. Com a eleição democrática colocada como o ponto central da vida social, todos estão “liberados” do mandamento de Deus e estão “livres” para desejar qualquer propriedade alheia que quiserem e expressarem este desejo imoral através de votos anônimos periódicos.

Certamente, este modelo liberal democrático de organização social não pode ser o fim da história, nem para um libertário, nem para qualquer um que leve à sério os mandamentos bíblicos. Na verdade é o contrário, a alegação de Fukuyama beira a blasfêmia.

Independentemente do quão desastroso o diagnóstico do mundo contemporâneo tenha sido, ainda pode ser que o atual estado das coisas represente algum tipo de progresso. Pode não ser o fim da história, mas pode estar mais próximo do objetivo de perfeição social do que qualquer outro período histórico anterior. Então, para refutar completamente a teoria de história Whig, se faz também necessário identificar alguma sociedade anterior (e, portanto, naturalmente menos avançada tecnologicamente) que observasse mais os mandamentos bíblicos e se aproximasse mais da perfeição social. E para se ter alguma relevância no debate público (na luta das narrativas históricas rivais), o exemplo contrário tem que ser “grande”. Isto é, não deveria ser algum local pequeno por um curto espaço de tempo, mas um fenômeno histórico duradouro e de grande escala. E pelo mesmo motivo de potencial apelo popular, o exemplo deveria estar conectado tanto geograficamente como genealogicamente, como um predecessor histórico do modelo ocidental contemporâneo de sociedades-estado democráticas, e não deveria estar muito distante no longínquo e obscuro passado.

Nas minhas próprias tentativas de apresentar uma versão revisionista da história ocidental – em particular em meus dois livros Democracia, o deus que falhou e A Short History of Man – eu identifiquei a Idade Média europeia, ou como é melhor chamada também de Cristandade Latina, o período de aproximadamente mil anos que vai da queda de Roma até o final do século XVI e começo do XVII, como este exemplo. Nada perfeito em muitos aspectos, mas mais próximo do ideal de perfeição social do que qualquer outro que se seguiu, especialmente a atual ordem democrática.

Não é de se estranhar que este é o exato período em que a história ocidental que nossos governantes democráticos atuais – sem Deus – e seus historiadores asseclas escolheram descrever nos termos mais sombrios. Nas sociedades grega e romana, eles podem enxergar algum “bem” e valor, mesmo que elas supostamente estejam muito aquém do nível de avanço social alcançado com a ordem social democrática contemporânea. Mas quanto à Idade Média, ela é rotineiramente descrita como trevas, cruel e repleta de superstições, sendo melhor ser esquecida e ignorada em toda história padrão e narrativa histórica.

Por que é dado este tratamento tão desfavorável especificamente à Idade Média? Porque, como muitos historiadores antigos e contemporâneos certamente também notaram, a Idade Média representa um exemplo duradouro e de grande escala de uma sociedade sem Estado, e como tal representa o polo oposto da ordem social estatista atual. Na verdade, a Idade Média, não obstante suas diversas imperfeições, pode ser identificada como uma ordem social agradável a Deus – “gott-gefaellige” –, ao passo que a ordem estatista democrática atual, não obstante seus numerosos avanços, situa-se em constante violação dos mandamentos de Deus e deve ser identificada como uma ordem satânica. E para responder a questão, Satã e seus seguidores nesse mundo irão logicamente fazer de tudo para que ignoremos e esqueçamos sobre Deus e irão menosprezar, depreciar e denegrir tudo e qualquer coisa que mostre Sua mão.

Mais uma razão para todo libertário e todo ‘católico’ temente a Deus estudar e se inspirar neste período histórico da Idade Média europeia – algo que, por acaso, se tornou mais fácil nesses tempos sendo mais difícil de se encontrar oposição dos poderes estabelecidos e seu cada vez mais rigoroso código de expressão “politicamente correto” imposto, porque estes estudos há muito foram relegados ao status de exóticos, pitorescos, coisa de nerd, de um passado muito distante de nós e sem qualquer relevância contemporânea.

Na história padrão (ortodoxa) nos dizem, como uma verdade semi axiomática, que a instituição do Estado é necessária e indispensável para a manutenção da paz social. O estudo da Idade Média e Cristandade Latina mostra que isto não é verdade, que é um mito histórico, e como, por um longo período histórico, a paz foi eficazmente mantida sem um Estado e portanto sem uma franca renúncia dos preceitos bíblicos e libertários.

Enquanto muitos libertários imaginam uma ordem social anárquica como uma ordem majoritariamente horizontal sem hierarquias e posições diferentes de autoridade – como “antiautoritária” – o exemplo medieval de uma sociedade sem estado nos ensina o contrário. A paz não foi mantida pela ausência de hierarquias e posições de autoridade, mas pela ausência de qualquer coisa menos autoridade social e posições de autoridade social. Na verdade, em contraste com a ordem atual, que essencialmente reconhece apenas uma autoridade, a do Estado, a Idade Média foi caracterizada por uma grande variedade de posições de autoridade social concorrentes, cooperantes, simultâneas e hierarquicamente ordenadas. Havia a autoridade dos chefes de grandes famílias e de diversos grupos consanguíneos. Havia os patronos, senhores, suseranos e reis feudais com seus estados, e seus vassalo, e os vassalos dos vassalos. Havia incontáveis comunidades e cidades diferentes e separadas, e uma grande variedade de ordens sociais, religiosas, artísticas e profissionais, concílios, assembleias, guildas, associações, clubes, cada uma com suas próprias regras, hierarquias e ordenamentos. Além disso, e de suma importância, havia a autoridade dos padres locais, do mais distante bispo, e do Papa em Roma.

Mas nenhuma autoridade era absoluta, e ninguém ou nenhum grupo de pessoas detinha um monopólio em sua posição de autoridade. A relação feudal hierárquica de suserano-vassalo, por exemplo, não era indissolúvel. Ela poderia ser desfeita se algum dos lados violasse as disposições dos juramentos de lealdade que ambos prometeram cumprir. Nem a relação entre suserano e vassalo era uma transitiva. Isto é, o suserano de um vassalo não era, por causa de sua senhoria, suserano de todos os vassalos do vassalo. Na verdade, estes vassalos poderiam estar ligados como vassalos a um suserano diferente, ou eles poderiam, em outra parte e relativo a outras coisas, serem eles mesmos um suserano que proibisse qualquer envolvimento nos assuntos do próprio suserano em questão. Era, portanto, praticamente impossível que alguém exercesse uma autoridade direta de cima para baixo e, consequentemente, tornava também extremamente difícil criar e manter um exército grande e permanente e entrar em guerras de grande escala ou mesmo de escalas continentais. Ou seja, o fenômeno que viemos a considerar perfeitamente normal hoje em dia, de que uma ordem dada de cima para baixo que vincule diretamente toda a sociedade, desde suas posições mais elevadas até as mais baixas, não existia na Idade Média. A autoridade era amplamente dispersa, e toda pessoa ou posição de autoridade era limitada e controlada por outra. Mesmo os reis feudais, bispos e na verdade mesmo o próprio Papa poderiam ser chamados e levados a justiça por outras autoridades concorrentes.

O “Direito Feudal” refletia esta estrutura social “anárquica-hierárquica” da Idade Média. Todo o direito era essencialmente direito privado, i.e. lei aplicada à pessoas e à interações pessoa-para-pessoa, todo litígio era entre um acusado pessoal e um denunciante pessoal, e a punição usualmente envolvia o pagamento de alguma compensação material específica pelo infrator à sua vítima ou seu representante legal. No entanto, esta característica central da Idade Média como um modelo histórico de uma sociedade de leis privadas não significa que o direito feudal era algum tipo de sistema legal unitário, coerente e consistente. Pelo contrário, o direito feudal permitia uma grande variedade de leis e costumes locais e regionais diferentes, e a diferença de tratamento de delitos similares em diferentes localidades podia ser bastante drástica. Todavia, ao mesmo tempo, com a Igreja Católica e os ensinamentos Escolásticos de Direito Natural, havia um sistema de referência moral e ordenamento institucional orientador estabelecido para servir como uma força moralizante unificadora, limitando e moderando a gama da variação entre as leis de diferentes localidades.

Evidentemente, havia muitas imperfeições que historiadores futuros, até hoje, abordariam e destacariam com a finalidade de difamar todo o período. Durante a Idade Média, sob a influência da Igreja Católica, a instituição da escravidão, que havia sido um elemento central das sociedades grega e romana, foi cada vez mais desqualificada e levada à beira da extinção, mas não havia desaparecido completamente. Bem como a instituição da servidão, de um ponto de vista moral “melhor” que a escravidão mas ainda imoral, continuava sendo um fenômeno social generalizado. Além disso, um monte de guerras de pequena escala e feudos ocorreram durante todo o período. E como nunca nos deixam esquecer: A punição aplicada em diversos tribunais para muitos delitos aqui e ali era algumas vezes (para as sensibilidades modernas) extrema, dura e cruel. Um assassino poderia ser enforcado, ou decapitado, esquartejado, queimado ou afogado. Um ladrão poderia ter seus dedos ou mãos decepados, e uma testemunha falsa poderia ter sua língua cortada fora. Uma adúltera poderia ser apedrejada, um estuprador castrado e uma “bruxa” queimada.

São particularmente estas características que a história padrão conta e associa à Idade Média de modo desperte nossa indignação moral e nos faça rejubilar sobre nossa iluminada época atual. Porém, mesmo que seja tudo verdade, este foco excessivo nestes elementos como sendo a característica distintiva da Idade Média é errar o alvo, ou enxergar apenas uma árvore e não ver a floresta. Considera que acidentes são o natural e o que é natural seja o normal. Isto é, ignora, deliberadamente ou não, a característica central de todo o período: o fato de que se tratava de uma ordem social sem Estado com centros de autoridade amplamente dispersas, ordenadas hierarquicamente e concorrentes. E então convenientemente fecha os olhos para o fato de que esses “excessos” da Idade Média de fato não são nada quando comparados aos da ordem estatista democrática atual. Com certeza, a escravidão e a servidão não desapareceram no mundo democrático. Ao contrário, poucas e cada vez mais raras escravidões e servidões “privadas” foram substituídas por um sistema “público” praticamente universal de servidão e escravidão via impostos. Igualmente, guerras não desapareceram, mas apenas aumentaram de escala. E quanto as punições excessivas e caças a bruxas, elas também não sumiram. Pelo contrário, elas se multiplicaram. Inimigos do Estado são torturados das mesmas formas horripilantes antigas ou mesmo tecnicamente ‘refinadas’. Além disso, incontáveis pessoas que não são assassinos, ladrões, caluniadores, adúlteros ou estupradores, i.e., pessoas que vivem em total conformidade com os dez mandamentos bíblicos e outrora seriam deixadas em paz, são mesmo assim rotineiramente punidas hoje em dia, indo desde longos encarceramentos até a perda de todas suas propriedades. Bruxas não são mais chamadas assim, mas com apenas uma única autoridade existente, a “identificação” de alguém como um “suspeito” ou um “agitador” fica muito mais fácil e o número de pessoas identificadas assim se multiplicou; e embora estes suspeitos não são mais queimados nas fogueiras, eles são rotineiramente punidos por privações econômicas que podem durar a vida inteira, desemprego, pobreza e até fome. E embora outrora, durante a Idade Média, o principal propósito da punição era a restituição, i.e. o criminoso tinha que compensar a vítima, o principal propósito da punição hoje é a submissão, i.e. o criminoso deve compensar e satisfazer não a vítima, mas o Estado (deste modo vitimando a vítima duas vezes).

Com isto podemos tirar a primeira conclusão. A ordem social democrática atual pode ser a civilização mais avançada tecnologicamente, mas indubitavelmente não é a mais avançada socialmente. Quando avaliada pelos padrões de perfeição social bíblicos-libertários ela fica muito atrás da Idade Média. Na verdade, quando avaliada por estes padrões, a transição na história europeia do mundo anárquico medieval para o mundo estatista moderno não é nada além do que a transição de uma ordem temente-a-Deus para uma sem-Deus.

Em diversos lugares, na forma mais condensada na minha obra From Aristocracy to Monarchy to Democracy, eu analisei e tentei reconstruir este processo de descivilização, que neste momento já vem ocorrendo por meio milênio, e explicar as consequências desastrosas e nefastas e as ramificações que ela tem tido para o desenvolvimento do direito e da ciência econômica. Não devo repetir ou recapitular isto aqui. Ao invés disso, apenas quero dar um esclarecimento sobre a principal estratégia que todos os estatistas, do final da Idade Média até hoje, tentaram alcançar seus objetivos estatistas, de modo a obter também (mesmo que apenas indiretamente) alguma ideia sobre uma possível contra-estratégia que posa nos tirar do atual apuro. Não uma volta à Idade Média, claro, pois muitas mudanças permanentes e irreversíveis ocorreram desde então, tanto com relação a nossas condições mentais quanto as materiais. Mas para uma nova sociedade que seja inspirada no estudo da Idade Média e entenda e conheça a razão principal de seu declínio.

A estratégia foi ditada pelo ponto de partida sem-Estado quasi-libertário medieval, e se apresentou ‘naturalmente’ sobretudo as posições elevadas de autoridade social, i.e., em especial aos reis feudais. Em suma, ela pode ser resumida nesta regra: Ao invés de permanecer um mero primus inter pares você deve se tornar um solus primus, e para conseguir isso você deve subverter, enfraquecer e em última instância eliminar todas as hierarquias de autoridade social e autoridades concorrentes. Começando pelos mais altos níveis de autoridade, com o seu concorrente mais imediato, e daí para baixo finalmente até o nível de autoridade social mais elementar e descentralizado depositado nos chefes de grandes famílias individuais, você (todo estatista) deve usar sua própria autoridade para enfraquecer toda e qualquer autoridade rival e acabar com seu direito de discriminar, sentenciar, punir e julgar independentemente dentro de seu próprio domínio de autoridade territorialmente delimitado.

Os outros reis não mais poderão determinar livremente quem é o outro ou o próximo rei, quem deve ser incluído ou excluído da classificação de reis, ou quem pode ou não recorrer a eles justiça e assistência. E do mesmo modo para todos os outros níveis de autoridade social, para nobres suseranos e vassalos bem como para todas as comunidades locais separadas, ordens, associações e por fim toda família individual. Ninguém deve ser livre para determinar autonomamente suas próprias regras de admissão e exclusão. Ou seja: determinar quem deveria estar ‘dentro’ ou ‘fora’, qual conduta esperar daqueles que estão ‘dentro’ e querem permanecer em situação regular, e qual conduta de associado por sua vez resulta em variadas sanções, indo de reprovação, censura e multas até expulsões e físicas.

E como conseguir isso e centralizar e consolidar toda autoridade nas mãos de um único monopolista territorial, primeiro um monarca absolutista e subsequentemente um estado democrático? Obtendo o apoio de todo ressentido de não ser incluído ou promovido em alguma posição social, comunidade, associação, ou por ter sido expulso delas e ‘injustamente’ punido. Contra esta ‘discriminação injusta’ você, o Estado ou o aspirante a Estado, promete colocar as ‘vítimas’ excluídas para ‘dentro’ e ajuda-las a conseguir um tratamento ‘justo’ e ‘não-discriminatório’ em troca de se vincularem e se afiliarem obrigatoriamente a você. Em cada nível de autoridade social, quando e onde surgirem oportunidades, encoraje e promova ‘comportamento degenerado’ e ‘degenerados’ e obtenha o apoio deles a fim de expandir e fortalecer sua própria autoridade às custas de todas as outras.

Deste modo, a principal contra-estratégia ou re-civilização, então, deve ser um retorno à ‘normalidade’ por meio da descentralização. O processo de expansão territorial que caminhou junto com a centralização de toda autoridade nas mãos de um monopolista deve ser revertido. Todo e qualquer movimento e tendência secessionista, então, deveria ser apoiado e promovido, pois com toda separação territorial do Estado central é criado um outro centro de autoridade e adjudicação separado e rival. E a mesma tendência deveria ser promovida dentro da estrutura de qualquer território e centro de autoridade separado e independente recém criado. Ou seja, qualquer organização, associação, ordem, clube ou mesmo família de membros voluntários dentro do novo território deveria ser livre para determinar independentemente suas próprias regras, i.e. suas regras de inclusão, de sanções e de exclusões, de modo que sucessivamente substitua o sistema estatista atual de integração legal e territorial forçada e unificação com uma ordem social natural, quase-orgânica de associação e dissociação territorial voluntária e legal-consuetudinária. Além disso, como um adendo importante: Para proteger esta ordem de centros cada vez mais descentralizados, posições e hierarquias de autoridade social natural de corrupção interna ou externa (estrangeira), cada nova autoridade social (re)surgida deveria ser incentivada a construir uma rede mais abrangente possível com autoridades em posições semelhantes e com o mesmo pensamento em outros territórios e jurisdições ‘estrangeiros’ para o propósito de assistência mútua em caso de necessidade.

 

 

Neste ponto alcancei um estágio de análise conceitual e de insight histórico e informação contextual que possibilitam, como minha segunda tarefa, comentar detalhadamente a mais recente tentativa de Steven Pinker, com seu livro The Better Angels of Our Nature,[3] de renovar as forças da teoria Whig da história, i.e. o mito de que a história humana tem sido uma marcha, um tanto atribulada, porém constante crescente e em direção à luz e que hoje nós, o mundo ocidental, vivemos em um mundo que se não for o melhor dos mundos possíveis, é melhor do que qualquer mundo precedente.

O livro, como era de se esperar, tem sido aclamado com grande entusiasmo pelas elites dominantes e se tornou um sucesso comercial, certamente ainda mais intensificado por Pinker ser um carismático professor de Harvard. Nas 800 páginas de uma impressão em formato pequeno, o livro reúne uma enorme quantidade de informações interessantes e interpretações relativas a todo tipo de coisas, mas no que diz respeito a tese central de Pinker sobre um progresso social constante culminando no presente, meu veredito é terminantemente negativo. Pinker pode ser um excelente psicólogo, mas ele está por fora nas áreas da filosofia, metodologia, economia e história, todas necessárias para se fazer um julgamento consistente sobre o grau de perfeição social dos vários estágios e do desenvolvimento de longo prazo da história humana. Em particular, suas narrativas históricas frequentemente parecem ser escolhidas a dedo e não são capazes do formar um entendimento geral da situação pois se apegam muito aos detalhes ou vice-versa.[4]

Há muitos defeitos no livro, sem contar o fato de que Pinker não tem o cuidado de definir seus termos sem ambiguidades para evitar qualquer equívoco ou inconsistência interna. Aqui, porém, devo concentrar minhas críticas em apenas dois pontos centrais. Primeiro, a “medida” ou critério de progresso social de Pinker – seu explanandum – e então sua explicação para o fenômeno “mensurado” – sua explanans.

Em toda sua obra, Pinker revela uma hostilidade espantosa contra a religião e, portanto, não é surpresa nenhuma que não passou pela mente dele usar os mandamentos bíblicos (os quais, à propósito, ele deturpa grosseiramente) como referência de perfeição social. Ao invés disso, sua referência é “violência”, e o progresso social é definido como uma redução na violência. À primeira vista, seu critério não parece estar muito longe do objetivo bíblico-libertário de paz. Na verdade, porém, ele se revela algo bem diferente. Seus principais exemplos de violência são os homicídios e as baixas nas guerras. O livro é repleto de tabelas e estatísticas sobre estes indicadores de violência. Inacreditavelmente porém, Pinker não faz uma distinção categórica entre violência agressiva e defensiva. Nos mandamentos bíblicos, com seu reconhecimento explícito da santidade da propriedade privada, esta distinção é feita. Faz diferença se a violência é usada para tomar a propriedade de outro homem, ou se um homem usa violência em defesa de sua propriedade contra um agressor. Homicídio é uma coisa categoricamente diferente de matar alguém em legítima defesa. Não para Pinker. Propriedade e direitos de propriedade não figuram sistematicamente em suas análises. Na verdade, os termos nem sequer aparecem no índice remissivo de 30 páginas do livro. Para Pinker, violência é violência, e a redução de violência é progresso, independente se a redução for resultado de uma supressão bem sucedida e resignação de um povo por e vis-à-vis outro povo conquistador, ou o resultado da própria supressão bem sucedida de um povo contra seus agressores e conquistadores. No mundo de Pinker, uma relação mestre-escravos ‘estável’ é um sinal de civilização, enquanto que uma revolta violenta dos escravos é um sinal de de-civilização. Do mesmo modo, um sistema de tributação compulsória – outro termo que assim como ‘propriedade’ está completamente ausente do índice (não por acaso) – e independente do nível de imposto é um indicador de civilização contanto que seja estável, i.e. contanto que a mera ameaça de punição pelas autoridades fiscais seja suficiente para gerar conformidade geral da parte dos tributados, já que qualquer revolta fiscal e resistência é considerada uma de-civilização. Um é paz e progresso para Pinker, ao passo que o outro é violência e retrocesso.

Pinker não segue sua própria lógica à risca, mas ela merece ser mencionada para revelar a total depravação de seu pensamento. De acordo com ele, por exemplo, um campo de concentração administrado harmoniosamente, vigiado por homens armados que não matam os prisioneiros e evitam que eles matem uns aos outros, e que forneça a eles drogas que os mantenham trabalhando calmamente para o benefício dos guardas até que morram por morte natural (não violenta), seria o modelo perfeito de paz e progresso social, enquanto que a deposição violenta dos guardas pelos prisioneiros do campo seria violência e de-civilização.

Baseando-se nesta visão depravada de progresso social que não leva em conta violações de propriedade e de direitos de propriedade, mas somente considera os números de mortes não naturais, agressões físicas e ossos quebrados, era de se esperar que as análises de Pinker sobre diversos episódios históricos deveriam resultar em algumas conclusões inapropriadas ou mesmo grotescas, como de fato ocorre. Particularmente, isto também explica como Pinker foi capaz de considerar a era democrática atual como a melhor de todos os tempos.

Mas seria, mesmo nos próprios termos de Pinker? Estamos vivendo hoje na época menos violentos de todos os tempos?

A resposta é ambígua. Por um lado, temos as guerras, que por toda história sempre foram responsáveis pelos maiores números de fatalidades, superando muito aquelas resultantes de violência interpessoal ‘regular’ em pequena escala. Neste sentido, como Nicholas Taleb mostrou em resposta a tese de progressão de Pinker, nenhuma tendência estatisticamente discernível pode ser estabelecida. De acordo com Taleb, no período de 600 anos de por volta de 1500 até hoje, no qual contamos com dados relativamente confiáveis, nenhuma mudança significativa em relação a frequência de guerras ou o número de baixas em guerras (sempre consideradas em relação a população total) pode ser identificada. Na verdade, se há algo ali seria um ligeiro aumento na violência relacionada a guerras com o alastramento da democracia (contrariando os proponentes da chamada teoria da paz-democrática). E quanto ao período de 70 anos desde o fim da Segunda Guerra Mundial até hoje, que Pinker identifica como excepcionalmente pacífico e sem guerras, Taleb aponta que guerras e especialmente guerras de grande escala são eventos extremamente irregulares e comparativamente raros, e que então um período de observação de apenas 70 anos é demasiadamente curto para servir como a base de qualquer conclusão significativa. Também, como John Gray argumentou contra Pinker, mesmo essa avaliação dos “tempos modernos” tende muito a dourar a pílula, pois tende a subestimar sistematicamente o número de fatalidades de não combatentes nas guerras, i.e. o número de civis que morrem de diversas doenças alastradas através das guerras ou de efeitos colaterais de longo prazo das guerras como as “mortes lentas” causadas por privações econômicas e fome. (O mesmo perigo de subestimação não existe, ao menos não na mesma medida, para as guerras da Idade Média europeia, porque elas foram caracteristicamente de escala pequena, eventos territorialmente limitados e envolvendo uma distinção e separação comparativamente claras entre combatentes e não combatentes.)

Por outro lado, temos de fato uma abundância de evidências empíricas para falar de uma tendência supra-secular em direção à uma redução na violência – não confundir com uma redução nas violações dos direitos de propriedade – conforme medidas especialmente nos índices de homicídio (um homicídio é um homicídio, independente de quem matou quem, por que ou como). Neste sentido amoral ou extra-moral, podemos de fato falar de um “processo civilizatório”, como Pinker faz e demonstra detalhadamente. Pinker adota este termo de Norbert Elias e seu livro The Civilizing Process, publicado originalmente em alemão em 1939 e traduzido para o inglês 30 anos depois. Neste livro, Elias descreve e tenta explicar as mudanças da etiqueta cotidiana, dos modos à mesa aos costumes sexuais, que ocorreram durante e desde a Idade Média europeia. Resumidamente, este processo pode ser descrito como uma transição gradual do comportamento bruto, grosseiro, animalesco, imodesto, primitivo, asqueroso etc. para uma conduta humana cada vez mais refinada, controlada, gentil, moderada etc. Sendo sugestionado por Elias, Pinker meramente generaliza e expande a tese civilizatória de Elias da etiqueta humana para toda a vida e comportamento cotidiano – e nisto, na minha opinião, ele é de maneira geral bem sucedido.

No entanto, a explicação de Pinker para este progresso social amoral ou extra-moral do comportamento grosseiro para um cada vez mais refinado está fundamentalmente errada. O que ele identifica como a principal causa deste desenvolvimento, e eu chegarei a esta causa daqui a pouco, na verdade, se teve alguma influência, retardou e distorceu este desenvolvimento. Ou seja, sem a causa de Pinker, não teria havido menos, mas mais (e bem diferente) refinamento na conduta humana.

Na verdade, a tendência histórica global de longo prazo em direção a um comportamento cada vez mais refinado (ou menos grosseiro) pode ser explicada, simplesmente, como o subproduto quase-natural da generalização e intensificação da divisão do trabalho no decorrer do desenvolvimento econômico e tecnológico. O desenvolvimento de mais e mais ferramentas e instrumentos diferentes de aumento de produtividade deu-se lado a lado com o desenvolvimento e aumento na diferenciação dos ofícios, habilidades e talentos humanos. Em suma, a importância da força muscular para o sucesso econômico declinou em relação a importância da força cerebral, da especialização física e da agilidade mental. Além disso, tentei explicar em meu Uma breve história do homem, especialmente sob condições malthusianas, que prevaleceram na maior parte da história humana, um prêmio sistemático para o sucesso econômico e a sobrevivência humana de fato é colocado no desenvolvimento e aumento da inteligência humana, da baixa preferência temporal, do controle dos impulsos e paciência (cujas características principais são ao menos particularmente hereditárias e portanto passadas através das gerações subsequentes).

No entanto, a explicação de Pinker para esta tendência em direção a um refinamento progressivo na conduta humana é bem diferente. Sua explicação para este desenvolvimento é a instituição de um estado, i.e. um monopolista territorial de decisões finais; e ele alega que o passo mais decisivo e fundamental para o progressivo refinamento da conduta humana foi a transição de uma ordem social sem estado para uma sociedade estatista. E nisto ele não está completamente errado – dado que a definição de refinamento progressivo é extra-moral ou amoral. Certamente, a instituição do estado, e mais especificamente de estados democráticos, é a principal causa de muitas observações e traços centrais relativos as nossas rotinas e condutas humanas – não considerando que muitas ou quase todas não têm praticamente nada a ver com progresso moral e estão em franca contradição com os mandamentos bíblicos. Igualmente, a violência como definida por Pinker pode ter diminuído de fato – não considerando que a prática da violência tem sido tão ‘refinada’ e redefinida sob a tutela do estado de forma a não mais se encaixar na definição limitada do termo de Pinker. “Bruxas”, por exemplo, não são mais violentamente queimadas, mas encaminhadas, aparentemente de forma pacífica, a alas psiquiátricas para serem drogadas e pacificadas por profissionais da saúde; e as vizinhanças não têm mais suas propriedades roubadas violentamente, mas, de modo muito mais ‘refinado’ e aparentemente sem qualquer violência física, são agraciadas com periódicos e recorrente carnês de impostos para serem pagos quase que automaticamente por transferências bancárias para as contas do estado.

Então, vemos que a causa central identificada por Pinker para o progresso social e cada vez mais perfeição social, a instituição de um estado, na verdade é uma força central de de-civilização, que retarda e distorce o processo de civilização inerente que é naturalmente ativado com a generalização e intensificação da divisão do trabalho no decorrer do desenvolvimento econômico. A instituição do estado pode explicar o refinamento da violência no decorrer do tempo, mas ele é por si só uma fonte constante de violência, apesar de refinada, e a força motriz para sua expansão e intensificação. O subtítulo do livro de Pinker, Por que a violência diminuiu, poderia levar a maioria dos leitores em potencial a esperar uma resposta para uma questão ou problema moral, por causa das conotações negativas normalmente associadas com o termo violência. Todavia, assim como o título do livro, é uma tentativa genial de propaganda enganosa e falsa, porque Pinker não entrega nada disso. Ao invés disso, ele responde a questão totalmente diferente de como definir violência ‘tecnicamente’ ou ‘cientificamente’ de modo a fazer a instituição mais violenta e moralmente depravada de todas parecer ser da paz, ou fazer Satanás parece um anjo (não decaído).

E como ele faz isso? Primeiro, descartando a lógica e o simples senso comum e então manejando os dados e as narrativas históricas de modo que se encaixem em sua premissa básica sem sentido. Esta premissa básica é apresentada por Pinker na forma de um simples diagrama (p. 35). Em qualquer cenário de duas pessoas, ambas as partes podem ter um motivo para violência, ou como agressor que vai molestar o outro ou como uma vítima que vai retaliar. Consequentemente, assim como Hobbes, Pinker retrata esta situação como uma de conflito violento infindável, como um bellum omnium contra omnes, uma guerra de todos contra todos. Mas milagrosamente, existe uma cura para este problema, uma terceira parte, que Pinker chama de espectador, que atua como juiz e assume o papel de um monopolista territorial da violência criando assim uma paz permanente. – Mas este espectador não seria também um predador em potencial? E seus motivos predatórios não seria intensificados, se ele fosse o monopolista da violência e não tivesse que temer nenhuma retaliação de suas vítimas? Pinker não aborda estas questões óbvias, muito menos oferece uma resposta sistemática a elas. Nem fornece uma resposta a questão de por que alguém se submeteria, sem resistência, a este espectador juiz monopolista. Ninguém iria perceber o perigo em potencial para sua própria propriedade neste arranjo e iria resistir contra seu estabelecimento? Na verdade, Pinker não pode deixar de notar depois que empiricamente, estados como monopolistas territoriais de violência não surgiram espontaneamente ou quase organicamente, mas parecido com máfias como um tipo de extorsão em troca de proteção. Contudo, esta observação não o levou a rever ou rejeitar sua tese fundamental sobre o papel principal do estado como um pacificador, nem o levou a reconhecer que muitos, ou quase todas os avanços civilizatórios que ele atribui a atuação do estado são na verdade os resultados da resistência popular contra o poder do estado, seja ativa e violenta ou passiva e não violenta. De fato, como já mencionado, Pinker classifica qualquer resistência violenta contra o estado como de-civilização, o que implica que a violência anterior exercida pelo estado vis-à-vis os que resistem deve ter sido uma atividade civilizatória e pacificadora, e não ser sequer considerada violência; e é praticamente desnecessário dizer que estas acrobacias mentais só podem levar a diversas contradições das quais Pinker só pode se livrar através de malabarismos mais ou menos engenhosos porém sempre intelectualmente penosos.

A identificação que Pinker faz do estado como força decisiva no processo de civilização coincide perfeitamente, é claro, com a análise de todos os governantes em toda parte, e é essencialmente a mesma lição que nos ensinaram na escola e na universidade para ser aceita como uma verdade praticamente axiomática. Particularmente, é a mesma lição ensinada também por todos os “principais economistas” contemporâneos. Ainda assim, ela contradiz categoricamente uma das leis econômicas mais elementares: A produção em condições monopolísticas leva a preços mais altos e qualidade mais baixa de qualquer coisa que seja produzida quando comparada a produção do mesmo produto em condições concorrenciais, i.e. em condições de “livre entrada”. A maioria dos economistas contemporâneos reconhece esta lei, mas não a aplicam ao monopólio peculiar que é o estado – provavelmente porque quase todos eles são empregados do estado. Mas na verdade ela se aplica ao estado também, independentemente de como é descrito o produto específico produzido pelo estado. Se descrevermos o estado, como Pinker descreve, como um monopolista territorial de pacificação, então a paz que ele alcança será mais cara e de menor qualidade. Se o descrevermos como um monopolista da justiça, então a justiça será uma com custos maiores e qualidade menor. Se o descrevermos como um monopolista da violência, sua violência será mais cara e de pior qualidade. Ou se o descrevermos, como acredito ser melhor, como um monopolista territorial de expropriação encarregado da tarefa de proteção da propriedade, então previsivelmente teremos muita expropriação, o que beneficia o monopolista, e pouca proteção, o que será oneroso para o estado. Em qualquer um dos casos, o resultado é sempre o mesmo, e, portanto, basta a lógica para invalidar a tese central de Pinker relativa ao efeito civilizatório da instituição de um estado.

Então o que dizer sobre a argumentação empírica de Pinker? A lógica não pode ser refutada por dados empíricos, mas se descartarmos a lógica estaremos fadados a interpretar erradamente os dados empíricos. Pinker apresenta uma enorme quantidade de dados empíricos, tabelas e gráficos bastante interessantes. Eu vejo problemas em alguns, mas a título meramente argumentativo vou aceitar aqui a validade de todos. Minha crítica é somente em relação a interpretação destes dados. Na verdade, e conforme já mencionado, posso aceitar em grande medida sua tese genérica de Elias sobre um processo civilizatório de uma conduta humana grosseira para uma refinada. No entanto, baseando-se na lógica, eu a interpretaria de uma maneira diferente. Qualquer que seja o processo civilizatório que exista, ele não ocorre por causa do estado, mas apesar do estado e em resistência contra o estado; e qualquer que seja o processo de-civilizatório que exista, ele não ocorre por causa da ausência de um estado, mas apesar de sua ausência, ou como efeito tardio e prolongado de um estado anterior (agora extinto) e suas prévias tendências de-civilizatórias. Post-hoc não implica propter hoc.

Irei restringir minhas críticas a duas evidências centrais que Pinker apresenta como suporte empírico de sua tese. Uma relativa a questões globais, e outra regionalmente mais específica que está mais diretamente relacionada as minhas observações anteriores sobre a história europeia e ocidental.

O suporte empírico para a tese de progressão global é sintetizada em duas tabelas (p.49/53). A primeira pretendia mostrar a diminuição das mortes por guerras (em relação à população) da pré-história da humanidade até os dias atuais. Para isto, Pinker distingue quatro estágios históricos: pré-história, sociedades de caçadores e coletores, sociedades de caçadores e horticultores e finalmente sociedades com estado. E então ele apresenta dados para mostrar que na melhor das hipóteses houve apenas uma melhoria ínfima do altamente violento estágio pré-história para o estágio caçador-coletor; que a violência aumentou novamente com a introdução da horticultura e da agricultura (conforme passa a existir mais desigualdade econômica e mais a ser saqueado); e que finalmente diminui drasticamente a um nível jamais visto na história da humanidade com a introdução das sociedades com estado. Ademais, para reforçar ainda mais sua tese, a segunda tabela compara a taxa de mortalidade em guerras nas sociedades sem estado ‘modernas’ (dos séculos XIX e XX) com as sociedades com estados igualmente ‘modernas’, supostamente demonstrando mais uma vez o efeito civilizatório dos estados.

Como disse antes, não vou implicar com os números e estimativas apresentados nestas tabelas, exceto para notar que qualquer estimativa relativa a pré-história humana e o muito distante estágio(s) caçador-coletor-horticultor da história humana devem ser analisados com uma boa dose de ceticismo. Descobertas arqueológicas de crânios quebrados, por exemplo, podem fornecer base para alguma estimativa razoável da violência em lugares e tempos específicos, e é possível escalonar estas estimativas até a estimativa da população mundial total na época para calcular a taxa de mortes violentas para qualquer período. Mas o que não pode ser feito, e o que é por razões técnicas mais do que óbvias e ao menos até o presente praticamente impossível de se fazer, é demonstrar que a sua amostra de dados de violência seja uma amostra aleatória representativa, que bastaria para generalizar legitimamente resultados específicos para a população total.

Contudo, a razão principal de Pinker não conseguir demonstrar com seus dados o que ele gostaria de demonstrar é diferente. Em sua tentativa de comparar sociedades sem estado com sociedades com estado ele está comparando alhos com bugalhos. Seus exemplos de sociedades sem estado, sejam antigas ou modernas, referem-se quase que exclusivamente a algumas tribos obscuras fora da Europa (ou em alguns casos raros de tribos europeias que viveram milhares de anos antes da era cristã); e todos eles ou estão literalmente extintos ou não deixaram nenhum vestígio permanente na história, de modo que hoje é praticamente impossível rastrear genealogicamente se alguma sociedade contemporânea os tem como seus antecessores históricos. Em contraste, todos os exemplos de sociedades com estados são da Europa e do mundo ocidental, onde estes mapeamentos genealógicos são fáceis por períodos de centenas ou mesmo milhares de anos. Obviamente, tal comparação só pode gerar uma conclusão imparcial se assumirmos que o único fator relevante que diferencia o povo europeu ou “ocidental” das diversas tribos de Pinker é a presença ou ausência de um estado; e que excetuando-se isso, ambos os povos são iguais, constituídos das mesmas habilidades e composições físicas e mentais.

Pinker nunca afirma explicitamente isto para a própria suposição crucial de seu argumento. Provavelmente porque isto imediatamente colocaria em dúvida a validade de suas conclusões. E, de fato, existem incontáveis estudos empíricos nesse meio tempo, em muitas áreas, que demonstram a completa falsidade desta suposição. Diferenças substanciais existem nas habilidades e composições físicas e mentais de diferentes povos. Os europeus, ou mais genericamente os “ocidentais”, definitivamente não são o mesmo tipo de povo que as tribos de Pinker – e com isto sua primeira “evidência empírica” de sua tese de progressão colapsa. Sua prova é totalmente vã e não prova nada.

Além disso, Pinker perde os detalhes dos humanos ao focar no geral global da raça humana também em outro aspecto; pois de acordo com seus próprios dados existem também algumas sociedades sem estado, ainda que somente poucas, que igualam ou até superam o nível de paz alcançado em sociedades com estado.

Faço aqui um pequeno parêntese: provavelmente Pinker nem sequer estar a par do fato de que algum tipo de (falsa) suposição de “igualdade” humana é necessária para defender seu ponto, mas ele o assume de qualquer modo, repetidas vezes, ainda que implicitamente ou veladamente. No fundo, Pinker é um igualitarista, como demonstrado particularmente por sua simpatia explícita pelo “progresso” trazido pelo chamado “movimento dos direitos civis” e pelo “nobre” Dr. Martin Luther King, bem como por “um dos maiores estadistas da história”, Nelson Mandela (não obstante as bem conhecidas conexões comunistas de ambos). Pinker não é um igualitarista extremista (e extremamente tolo), claro. Ele faz distinções entre sexos, idades, raças e classes, e ele tem perfeita consciência da distribuição desigual de várias qualidades e habilidades humanas na sociedade, de inteligência, laboriosidade, controle dos impulsos, sociabilidade, etc. Mas sendo um “progressista” politicamente correto ele não pode admitir que a distribuição desigual destas qualidades e habilidades humanas na sociedade pode ser bem diferente em diferentes sociedades.

Com a primeira “evidência” global empírica de Pinker rechaçada, e quanto a segunda, a regional? Nesta, todos os dados vêm da Europa, logo evitamos o perigo de comparar incompatíveis. Pinker dedica umas dez páginas (pp. 228-238) a este ponto, e a informação central é condensada em um único parágrafo (p. 230) descrevendo a “taxa de mortalidade em conflitos na grande Europa, 1400-2000”. Entretendo, se este gráfico demonstra alguma coisa, é o oposto a tese de progresso de Pinker. O que ele mostra é que o período de maior duração de paz (relativa) e baixos índices de violência foram os 200 anos de 1400 até o fim do século XVI. Porém este período calha precisamente com o período mais longo da Idade Média europeia (e marca o seu fim), e a Idade Média, conforme expliquei anteriormente, é um exemplo excelente de uma ordem social sem estado. (Curiosamente, Pinker concorda com esta análise da Europa medieval sendo sem estado, mas ele não consegue enxergar que esta análise implica, de acordo com seus próprios dados, em uma refutação empírica de sua própria tese.)

E as coisas ainda ficam pior para a tese de Pinker. De acordo com o mesmo gráfico, o período histórico seguinte, do fim do século XVI até hoje, é caracterizado por três grandes picos no nível de violência. O primeiro pico, do fim do século XVI até o Tratado de Paz de Vestefália em 1648, está basicamente associado com a Guerra de 30 Anos; o segundo, do final do século XVIII até 1815 e ligeiramente menos acentuado que o primeiro, está associado com a Revolução Francesa e as Guerras Napoleônicas; e o terceiro e maior pico, de 1914-1945, está associado as duas Guerras Mundiais do século XX. Ademais, para todos os períodos intermediários, o nível de violência permaneceu bem acima dos níveis da época medieval e este nível só foi atingido novamente, três séculos depois, durante o período de 1815-1914, e novamente na era pós Segunda Guerra Mundial. Em suma, os registros para a Europa pós medieval em termos de violência figuram bastante depressivos. E no entanto, todo o período, do fim do século XVI até hoje, é a era dos estados, que Pinker considera a força motriz de um “processo civilizatório”.

Pinker associa o primeiro pico drástico de violência à religião e as “Guerras Religiosas”. Porém, na verdade elas foram guerras para formar estados. Reis e príncipes feudais pretendendo se tornar governantes absolutos entraram em guerra para trazer territórios maiores cada vez mais contíguos sob seus controles supremos. Nisto eles tiraram proveito da recente ruptura dentro da Cristandade Latina entre católicos e protestantes, e foram eles que na verdade inventaram o termo “Guerras Religiosas” – apenas para ocultar e ludibriar sobre o propósito real de criação de estado, que tinha pouco ou nada a ver com religião. O segundo pico marca o ponto de transição da monarquia para estados democráticos e resultou do uso da guerra pela França Napoleônica na tentativa de estabelecer hegemonia sobre toda a Europa continental. E o terceiro e mais drástico pico de alta no nível de violência marca o início da era da plena democracia e resultou da ida da Bretanha e dos EUA à guerra para estabelecer hegemonia mundial.

Em sua interpretação destes dados, Pinker tenta tirar o melhor proveito (para ele) de um argumento muito desesperador. Pois ele aponta com a ajuda de um segundo gráfico (p. 229), que por todo o período o número de conflitos violentos declinou e o número de estados caiu devido a consolidações e centralizações territoriais. Um número maior de guerras de pequena escala com poucas baixas foi substituído por um número menor de guerras de grande escala com muitas baixas. No entanto, isto não parece muito com progresso, especialmente se lembrarmos que a taxa de mortalidade em conflitos na verdade aumentou durante toda a era estatista, mesmo que o número de conflitos violentos tenha diminuído. Ainda tentando salvar sua tese de progresso, Pinker então apresenta dois argumentos auxiliares. Primeiro, ele afirma que o caráter mais letal das (menos frequentes) guerras modernas não tem nada a ver com os estados per se ou as expansões e consolidações territoriais dos estados, mas ao invés disso são resultado praticamente casuais de avanços na tecnologia militar (uma tese que ele rejeita em outro momento, quando ele diz que o desenvolvimento de tecnologia é essencialmente ‘neutro’ para o nível de violência). E segundo, para dar mais sustentação a sua tese sobre o declínio na frequência de guerras (mas não, enfatizando novamente, o declínio na taxa de mortalidade relativa a guerra!), ele aponta que o processo de centralização política, i.e., o número cada vez menor de estados com territórios estatais cada vez maiores, não foi acompanhado por um aumento correspondente de guerras civis ou entre estados, e portanto representa um ganho civilizatório real (e não apenas um truque de contabilidade). Essencialmente, de acordo com Pinker, com cada centralização política e em última instância com o estabelecimento de um estado mundial a probabilidade de guerras declina e em última instância desaparece junto com o declínio e desaparecimento paralelo da guerra civil. Em resumo: o estado civiliza e um estado mundial civiliza melhor. Ou o inverso: cada secessão de-civiliza e liberdade total de secessão de-civiliza totalmente.

Todavia, a lógica econômica (praxeologia) impõe uma interpretação bem diferente de tudo isso. Estados não são associações espontâneas e voluntárias. Eles resultam de guerras. E a existência de estados aumenta a probabilidade de mais guerras, porque sob condições estatistas o custo da guerra não mais é arcado privadamente mas pode ao menos ser parcialmente exteriorizado sobre terceiros inocentes. Que o número de guerras então declina conforme o número de estados cai e que não pode haver guerras entre estados uma vez que o número de estados seja reduzido a um único estado mundial não é nada além de um fato conceitual. Porém, mesmo que sejam menos frequentes, quanto mais avançado o processo de centralização política e consolidação territorial, i.e. quanto mais perto do objetivo final estatista de um único estado mundial, mais letais serão estas guerra.

Nem pode a instituição de um estado mundial cumprir a promessa de Pinker. É verdade que então não poderia haver guerras entre estados, por definição. A título meramente argumentativo, podemos até admitir que a taxa de baixas e frequência de guerras civis internas possa declinar também (embora evidências empíricas para isto sejam bem duvidosas). De qualquer modo, contudo, o que pode ser previsto com segurança sobre as consequências de um único estado mundial é isto: Com a eliminação de toda competição entre estados, i.e. com a substituição de uma grande variedade de jurisdições territoriais diferentes com diferentes leis, taxas, estruturas de impostos e regulamentações por uma única jurisdição uniforme global, qualquer possibilidade de se votar com os próprios pés em oposição a um estado e suas leis também é eliminada. Consequentemente, um obstáculo fundamentalmente importante ao crescimento e expansão do poder do estado é removido, e o custo de produção de justiça (ou de qualquer coisa que o estado alegue produzir) irá assim aumentar a níveis jamais vistos, ao passo que a qualidade irá atingir níveis mais baixos do que nunca. Pode ou não haver menos violência do tipo ossos quebrados a la Pinker, mas de qualquer modo haverá violência mais ‘refinada’, i.e. violações de direitos de propriedade que não contam como violência para Pinker, do que nunca; e a sociedade de um governo mundial parecerá então mais como um cenário de campo de concentração estável mencionado anteriormente do que qualquer coisa que lembre uma ordem social convivial livre.

Reduzida a sua essência, o argumento central de Pinker não passa de uma série de absurdidades lógicas: De acordo com ele, sociedades tribais de algum modo “convergiram” para formar estados pequenos e estados pequenos sucessivamente “aglutinaram-se” em estados cada vez maiores. Todavia, se estas “convergência” e “aglutinação” foram, conforme o termo insinua, uma situação espontânea e voluntária, o resultado, por definição, não seria um estado e sim uma ordem social anárquica composta e governada por associações de livre filiação. Se, por outro lado, estas “convergência” e “aglutinação” resultaram ao contrário em um estado, não pode ser uma situação espontânea e voluntaria, mas tem que, por necessidade lógica, implicar em violência e guerra (qualquer monopolização territorial de qualquer coisa que seja monopolizada necessita da proibição violentamente imposta da “livre entrada”). Então como alguém como Pinker, que quer reduzir a violência e a guerra a um mínimo e possivelmente elimina-las completamente, pode preferir um sistema social, qualquer sistema, que necessita do emprego de violência e da guerra à um sistema que não necessita? Resposta: Somente abrindo mão completamente da lógica e declarando que a relação entre estado e violência e guerra não é logicamente necessária, mas ao invés disso é uma relação empírica meramente contingente; que assim como é na verdade uma questão completamente empírica se você ou eu cometemos violência e vamos à guerra, também é uma questão empírica puramente contingente se o estado emprega ou não violência e vai à guerra.

Logo, de acordo com Pinker, a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, com todas as suas atrocidades, essencialmente não teve nada a ver com a instituição de estados mas foi um acaso histórico, causado pelas más ações de um único indivíduo desequilibrado, Adolf Hitler. De fato, inacreditavelmente e aparentemente sem se envergonhar (apesar de ser difícil de dizer isso a partir de um texto escrito!) Pinker aprova a citação do historiador John Keegan que diz que “só um europeu realmente queria a guerra – Adolf Hitler.” (p. 208) Pergunta: Mas quanto mal um único indivíduo desequilibrado pode causar na ausência da instituição de um estado centralizado? Quanto mal Hitler teria causado em um ordenamento de uma sociedade sem estado como da Idade Média? Teria ele se tornado um grande lorde, um rei, um bispo ou um Papa? De fato, quanto mal ele poderia ter causado mesmo no ordenamento de mil mini-estados, como Liechtenstein, Mônaco ou Singapura? Resposta: Não muito, e certamente nada comparável ao mal associado a Segunda Guerra Mundial. Não precisaria então de: ‘nenhum Hitler, nenhum Churchill, nenhum Roosevelt ou nenhum Stalin, e assim, nenhuma guerra’, como Pinker diria, mas ao invés: ‘nenhum estado intensamente centralizado, e assim não teríamos nenhum Hitler, Churchill, Roosevelt ou Stalin’. Elimine o estado e eles poderiam ter se tornado um Jack Estripador, um Charles Ponzi ou mesmo uma pessoa inofensiva, mas não os monstros genocidas que sabemos que eles foram. Institua o estado e você cria, atrai e desenvolve monstros.

Então, resumindo: a tentativa de Pinker de resgatar a teoria Whig da história e demonstrar que vivemos no melhor dos mundos revela-se um fracasso total. Na verdade, pode-se até mesmo dizer que seu livro e seu grande sucesso comercial são eles mesmos uma prova empírica do contrário.

 

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Notas

[1] Friedrich A. Hayek, Capitalism and the Historians (Chicago: University of Chicago Press, 1954), pp. 3–8.

[2] (Nota: não estou negando aqui a possibilidade de períodos de regressão no desenvolvimento da ciência. Mas eu explicaria tal regressão como consequência de uma perda anterior de conhecimento prático de engenharia. “Inofensivamente” no curso normal do desenvolvimento econômico, certas habilidades podem desaparecer e ser esquecidas, porque não há mais demanda por seus produtos. Isso não implica necessariamente um retrocesso no conhecimento de engenharia. Na verdade, essa perda pode ser mais do que compensada pelo desenvolvimento de diferentes habilidades necessárias para a fabricação de produtos diferentes e mais demandados. A perda aqui é o trampolim do progresso tecnológico. Ferramentas e máquinas antigas são substituídas por novas melhores. Mas outro desenvolvimento menos “inofensivo” também é possível, e de fato ocorreu em certas épocas e lugares. Devido a uma pestilência, por exemplo, o tamanho da população, e com ela também a divisão do trabalho, pode diminuir drasticamente e levar a uma perda enorme e generalizada de conhecimentos e habilidades de engenharia acumulados, de modo a exigir um retorno aos modos de produção anteriores e mais primitivos. Ou uma população pode simplesmente se tornar menos brilhante, por qualquer motivo, do que seus antepassados ​​e incapaz de manter um determinado nível (herdado) de avanço tecnológico.

[3] Viking Books, 2011.

[4] Veja sobre isso também Stefan Blankertz, https://www.lewrockwell.com/2018/05/no_author/pinker-versus-anarchy-are-tyrants-the-lesser-evil/.

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