A ética da polícia

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As polícias militar e federal são flagradas assaltando a propriedade de um Bingo.

Em uma era de dominância do positivismo legal, onde a intensa propaganda estatal tenta fazer desaparecer os conceitos de justiça e direito natural e impor a crença  de que “lei” é toda e qualquer coisa que o estado determine que seja, as pessoas ainda conservam suas noções daquilo que realmente é certo ou errado, justo ou injusto, criminoso ou legítimo e muitas vezes reconhecem prontamente que certas ações dos governos são injustas, embora ocorram sob o manto da autoridade estatal, com seus oficiais dizendo que não estão fazendo nada além de “cumprir a lei”.  Ações estas que, na prática, ocorrem pelas mãos da força armada do estado que entra em contato direto com seus súditos, a polícia.  Não obstante, as pessoas enfrentam um agravante que gera ainda mais confusão: o estado detém o monopólio dos serviços de justiça e segurança, e ninguém mais, a não ser a própria instituição criminosa que agride inúmeros direitos dos indivíduos, pode combater os crimes praticados por outros criminosos.  O serviço de segurança, vital para qualquer sociedade, acaba sendo prestado quase que exclusivamente pela polícia estatal.  Assim sendo, como avaliar eticamente a polícia?

Antes de qualquer coisa, quero deixar claro que este artigo não trata de uma crítica aos policiais corruptos, e sim à polícia em si.  Aliás, tendo como base a objetividade da ética[1], pretendo demonstrar que em muitos casos, o policial corrupto é o mais justo e o policial estrito cumpridor das funções designadas pelo estado é o mais criminoso.  Comecemos imaginado o seguinte caso: O dono de uma loja contrata João como segurança de seu estabelecimento.  Em troca de um salário, João passa a cumprir suas funções de proteger a propriedade do comerciante e seus clientes de possíveis furtos e assaltos, desencorajando as ações de ladrões, bem como os enfrentando corpo a corpo, caso estes tentem praticar um roubo.  Até aqui tudo perfeito — João desempenha uma das mais nobres e corajosas profissões, tudo dentro de um esquema de trocas estritamente voluntárias e de respeito à propriedade.  Agora imagine que o dono da loja ordene que seu segurança destrua as lojas concorrentes tornando a loja dele a única opção das redondezas.  Ou que ele impeça através do uso ou ameaça do uso de violência física, que os clientes comprem produtos que não sejam os da loja dele.  Ou que ele passe a extorquir uma quantia de dinheiro mensal de toda a vizinhança.  Bom, a partir deste ponto, qualquer pessoa pode afirmar que se João optar por cumprir as ordens do dono da loja, ele passará a ser um criminoso, embora ainda continue cumprindo sua função original de proteger a loja e seus clientes de outros criminosos.  Mas se João for uma pessoa honesta, que preza pela moral e ética, certamente irá se recusar a cometer estes crimes e procurar outro emprego.  Todavia, todas as funções descritas acima são executadas pela polícia estatal, não só a proteção da vida e propriedade dos indivíduos contra ataques de criminosos privados como também as criminosas, como o impedimento da livre concorrência no mercado colocando em prática as regulamentações e proibições estatais e a cobrança de impostos.  E muitas outras.

O que geralmente é alegado é que, diferentemente do segurança da loja do caso acima, o policial não segue ordens de um indivíduo privado, e sim de um estado. Mas isto não muda em absolutamente nada a natureza das ações.  A ação humana é sempre individual.  Apenas indivíduos agem.  Suas ações são legítimas ou criminosas devido ao tipo de ação que elas são, e o fato de uma ação ter sido ordenada pelo dono da loja, por um presidente, por um rei, por um ditador ou pela maioria dos habitantes de determinada extensão territorial, não faz nada para transformar vícios em virtudes.  Ninguém diria que os guardas que faziam cumprir a jus primae noctis não eram criminosos por estarem agindo em nome do rei.  Ou, para usar um exemplo de um estado democrático, que os oficiais da polícia secreta da Alemanha nacional socialista que executavam judeus nos campos de concentração não estavam cometendo crimes, pois estavam agindo à mando de um governo eleito democraticamente — estes, por exemplo, são dois casos em que um policial corrupto, que em troca de um suborno não cumprisse a “lei”, seria muito mais desejável do que o incorruptível.[2]  E uma vez que todos os estados cometem variados crimes contra seus súditos, devemos entender que todos os policiais são criminosos?  A resposta é não, pois as polícias são geralmente organizadas em subdivisões.

As subdivisões da polícia

Existem órgãos da polícia que desempenham exclusivamente atividades virtuosas e legítimas, outros que desempenham unicamente atividades criminosas e outros que desempenham ambos os tipos de atividades.  Os policiais da Divisão Anti-Sequestro, por exemplo, são policiais que não se envolvem nas atividades criminosas do estado para o qual trabalham.  A função deles é única e exclusivamente combater os criminosos que sequestram pessoas, um dos crimes mais graves e terríveis que existe.  E sempre que realizam um trabalho bem feito, são justamente considerados heróis, não só pelas vítimas salvas, mas também pela sociedade em geral.  Nem o fato deles se absterem de combater o maior grupo sequestrador de inocentes da sociedade, que captura inocentes e mantém vítimas em cativeiro durante anos em uma escala colossal — o estado — faz desta divisão um órgão criminoso, pois a ação negativa de se abster de ajudar alguém pode até ser considerada imoral, mas jamais pode ser considerada um ato criminoso.  Por outro lado, um exemplo de policiais que não são nada além de criminosos são os policiais do DENARC, o departamento de investigações de narcóticos.  Eles possuem as funções de procurar e impedir o comércio e uso de algumas substâncias que o estado arbitrariamente decide proibir, como folhas de maconha, lança-perfume, esteroides anabolizantes, heroína, morfina, anfetaminas e até o suplemento para atletas creatina.  Eles usam suas armas para perseguir e sequestrar pessoas que estiverem realizando trocas voluntárias; para ameaçar a vida e a propriedade de vendedores que estiverem satisfazendo a livre demanda de compradores; roubam as mercadorias e a liberdade de inocentes.  Enfim, nada mais são do que criminosos cruéis.  Já alguns outros órgãos da polícia são incumbidos de praticar estes e muitos outros crimes, mas que também podem receber a função de, por exemplo, perseguir e prender um assassino.  A Polícia Federal é um exemplo destes órgãos.  Ela é incumbida de praticar estes mesmos crimes cometidos pelo DENARC e muitos outros, como perseguir e sequestrar pessoas que estejam tentando não ser roubadas (o que eles costumam chamar de “sonegação de impostos”), de pessoas que estejam enviando seu próprio dinheiro para fora das fronteiras dominadas pelo estado sob o qual vivem (o que eles chamam de “evasão de divisas”), que estejam entrando no país com mercadorias compradas no exterior sem a autorização do rei (o que na nomenclatura deles é “contrabando”), e até pessoas que não estejam fazendo nada além de tentar unir filhos e pais que se amam, como num caso ocorrido alguns anos atrás (o que eles têm a cara de pau de chamar de “tráfico de crianças”, como se as crianças pertencessem ao estado, e o lugar delas não fosse ao lado de seus pais).  Enfim, a lista de crimes que são cometidos pela Polícia Federal é infindável.  Mas se eles também são incumbidos de perseguir e prender criminosos reais como assassinos e estupradores, como devemos julgar este e outros órgãos da polícia que praticam tanto atividades criminosas como as legítimas, necessárias e até heroicas?

Simples dilema

O que a primeira vista pode parecer um dilema difícil de ser resolvido é na verdade bem simples, pois “bandido” e “herói” não são qualificações mutuamente excludentes, i.e., uma pessoa — não uma ação específica — pode ser ao mesmo tempo bandida e heroína.  Analisemos o caso hipotético de um conhecido assaltante da vizinhança que já praticou, e costuma praticar, muitos assaltados, e que por sempre ter conseguido escapar dos agentes de segurança que o perseguem, estava andando livremente pelas ruas quando se depara com um prédio em chamas e, corajosamente, arriscando sua vida, enfrenta o fogo e salva a vida de uma dúzia de pessoas.  Alguém diria que ele deixou de ser ladrão depois disso?  Claro que não, porque um ato bravo, digno e heroico não redime e nem apaga crimes cometidos anteriormente, e nem os que poderão ser cometidos posteriormente.  E vice-versa, um crime cometido não faz com que um ato heroico anterior ou posterior deixe de ser um ato heroico.  Este ladrão do exemplo será sempre um herói para as doze pessoas que continuaram vivas devido a seu ato, mas por outro lado, para suas vítimas, ele será sempre a pessoa que os assaltou.   Outro exemplo: se um homem persegue e prende o estuprador de uma criança e no dia seguinte assassina covardemente um homem, ele deixa de ser um assassino e não deve pagar por este crime?  Obviamente que não, pois embora ele mereça o reconhecimento e a admiração de todos por ter ajudado a fazer justiça no caso do estupro, ele também merece o desprezo e a revolta da sociedade por ter assassinado uma pessoa inocente, e deve ser punido severamente como qualquer outro assassino que nunca tenha cometido ato heroico algum.

Então, se é simples analisar eticamente aquelas subdivisões da polícia que não cometem crimes e aquelas que somente cometem crimes, também é fácil termos uma opinião sobre aquelas subdivisões que desempenham tanto funções legítimas e necessárias quanto funções criminosas.  Os policiais que fazem parte dessas subdivisões e desempenham estas funções não são em nada diferentes de João, o segurança de nosso exemplo acima, que além de segurança da loja, passa a cometer variados crimes.  Eles não passam de criminosos, que eventualmente também executam boas ações.

A diferença que existe entre os criminosos privados e esporádicos e os policiais criminosos é que os primeiros são anônimos, eles estão sempre fugindo e se escondendo, e geralmente só são revelados como sendo criminosos depois de pegos.   Já os polícias geralmente revelam sua identidade e se identificam através de uniformes e distintivos.  Os veículos e edificações usados por este grupo criminoso exibem abertamente suas marcas.  E eles alardeiam com orgulho seus crimes, como quando, por exemplo, eles “fazem uma apreensão de drogas e contrabando”, em outras palavras, quando eles assaltam a propriedade de comerciantes, e anunciam orgulhosamente para a sociedade todos os números e detalhes do roubo que praticaram.

Conclusão                                  

Deste modo, o monopólio compulsório do uso da força exercido por uma organização que além deste crime — do monopólio[3] — pratica inúmeros outros, cria uma situação em que a instituição da polícia, que deveria ser a guardiã dos direitos de propriedade, é a mesma que ataca estes direitos; que aquelas pessoas que deveriam desempenhar exclusivamente uma das mais honradas e corajosas funções da sociedade, a de enfrentar e combater diretamente uma das piores coisas de nosso mundo, a maldade humana, manifestada na forma de terríveis crimes contra a vida e propriedade, são as mesmas pessoas que na maioria dos casos desempenham muitos outros crimes — as vezes não fazem nada além de praticar crimes, conforme visto acima.  Não deixa de ser espantoso o fato de que, por exemplo, um PM, em um dia heroicamente e arriscando a própria vida proteja pessoas de um latrocínio, e no dia seguinte invada uma propriedade privada e aponte armas para senhoras impedido-as de se divertirem num jogo de bingo, merecendo com este e tantos outros crimes que cometem no seu dia a dia o mesmo menosprezo que a sociedade reserva ao assaltante combatido por ele no dia anterior.  Estas pessoas, que, por um dom divino, por uma propensão genética, ou pelo motivo que for, possuem a coragem de enfrentar os elementos mais cruéis da sociedade, deveriam ser as primeiras a denunciar os crimes ordenados pelo estado e, obviamente, se recusarem a executá-los.[4]

 

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[1] A ética não é subjetiva, não é uma “questão de opinião pessoal”.  Existe uma ética objetiva, válida para todos os seres humanos, independentemente de tempo ou lugar, ou seja, um crime é um crime tanto para um tupi-guarani em 1424, quanto para um polonês em 1986, um egípcio 3000 a.C. e um brasileiro hoje, não importando o que o estado ou outro grupo criminoso dominante definam como crime.  Para mais sobre a objetividade da ética, veja Murray N. Rothbard, A Ética da Liberdade, parte I.

[2] Este ponto é mais profundamente analisado e brilhantemente exemplificado pelo professor Block em “O policial desonesto”, Defendendo o indefensável, Editora Ortiz, 1993.

[3] Segundo a ciência econômica, o termo “monopólio” refere-se apropriadamente à “concessão de um privilégio especial pelo Estado, que reserva determinada área de produção a um indivíduo ou grupo específico”, obviamente através do uso ou ameaça do uso de violência contra pessoas que tentem concorrer com o privilegiado, ofertando no mercado o mesmo produto ou serviço. Murray Rothbard, Man, Economy and State with Power and Market, cap. 10, parte 3-A.

[4] Não só os policiais que praticam estes crimes consentem com eles, como também uma maioria da população apóia estas ações criminosas.  E é este aval, mesmo que passivo, que dá força para que estas ações ocorram.  Seria o ideal, mas mesmo que os policiais não se recusassem a seguir as ordens criminosas do estado, se a maioria da população enxergar a verdade sobre estas ações e retirar seu consentimento, elas irão cessar.  Sem este consentimento, as armas dos policiais nada poderiam fazer. Ou, como o professor Hoppe coloca:

Novamente, a ideia é a seguinte: o presidente pode dar uma ordem, mas a ordem tem de ser aceita e executada por um general; o general pode dar uma ordem, mas a ordem tem de ser executada pelo tenente; o tenente pode dar a ordem, mas a ordem tem de ser executada em última instância pelos soldados, que são aqueles que terão de atirar. E se eles não atirarem, então tudo aquilo que o presidente — ou o supremo comandante — ordena passa a não ter qualquer efeito. Assim, o estado somente pode efetuar suas políticas se as pessoas lhe derem seu consentimento voluntário. Elas podem não concordar com tudo que o estado faça e/ou ordene que outros façam, mas, enquanto elas colaborarem, serão obviamente da opinião de que o estado é uma instituição necessária, e os pequenos erros que esta instituição cometa são apenas o preço necessário a ser pago para se manter a excelência do que quer que ela produza. Quando essa ilusão desaparecer, quando as pessoas entenderem que o estado nada mais é do que uma instituição parasítica, quando elas não mais obedecerem às ordens emitidas por essa instituição, todos os poderes estatais, mesmo o do mais poderoso déspota, desaparecerão imediatamente.

Hans-Hermann Hoppe, A fraude chamada “estado”.

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