A carga tributária brasileira e os impostos sobre os mais pobres

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17214432671971812686carga_tributaria_legislacaoA imprensa vem alardeando com pompa e circunstância o fato de que a carga tributária brasileira em 2009 — em porcentagem do PIB — foi menor que a média dos países da OCDE (33,6% contra 35%).

Não sei muito bem qual a grande vantagem de termos uma carga tributária 1,4 ponto percentual menor que a de Portugal, mas, se a imprensa está eufórica, então deve ser coisa boa.

Mas a questão a ser abordada aqui não é essa.  Houve um detalhe embutido nessa notícia que fez a imprensa verter lágrimas, compensando sua euforia com a notícia principal: o Brasil, em média, tributa bem menos a renda e a propriedade, e sobrecarrega de impostos os bens de consumo e os serviços.

Aparentemente, o pessoal quer assistencialismo e bem-estar social, mas não quer a dureza de financiá-los.  Querem ir a um restaurante fino, empanturrar-se de escalopes, belugas e vinhos franceses, mas não querem fazer cara de espanto quando chega a conta.

Em primeiro lugar, vale notar que, não fosse o Banco Central e sua capacidade de expandir continuamente a oferta monetária, a carga tributária necessária para financiar todos os serviços e funcionários estatais seria muito maior.  Estamos trocando mais impostos por inflação monetária.  A consequência desse arranjo é inevitável: preços constantemente em ascensão ao invés de preços em queda, o que realmente seria bom para os mais pobres.  Mas como são muito poucas as pessoas que realmente entendem a perversidade desse mecanismo fraudulento, todo mundo acha normal.

Porém, e finalmente entrando na questão principal, uma coisa precisa ser dita, sem qualquer juízo de valor: se os gastos do governo não caírem, se é para ter impostos para financiar um estado deste tamanho, e se é para permitir que haja um mínimo de crescimento econômico, então o único arranjo correto é de fato tributar o consumo, e não a renda e a propriedade.  Mais ainda (só para deixar evidente a perversidade da coisa): é preferível que a carga tributária seja pequena sobre os ricos e mais alta sobre os mais pobres.  E tudo isso para o bem destes.

Explico.

Poupança, produção e consumo

Para uma economia enriquecer e melhorar o padrão de vida de todos, ela precisa produzir bens e serviços de qualidade.  Quanto maior a abundância desses bens e serviços de qualidade, menor o preço deles.  O nível de riqueza de um país é proporcional à quantidade e à variedade de bens disponíveis em sua economia.

Porém, para que eles sejam produzidos, é necessário haver capital.  Capital, no caso, refere-se não a dinheiro, mas a ativos físicos das empresas e indústrias.  Capital são as instalações, os maquinários, as ferramentas, os estoques e os equipamentos de escritório de uma fábrica ou de uma empresa qualquer.  Ou seja, capital é tudo aquilo que auxilia um modo de produção

Quanto maior a quantidade desse capital, maior será a intensidade, a abundância e a qualidade dos produtos criados.  Portanto, para uma economia crescer e melhorar o padrão de vida das pessoas, ela precisa ser intensiva em capital.

Qualquer outra maneira de melhorar o padrão de vida de um país que não seja por meio do aumento do capital acumulado será completamente insustentável.  Essa, aliás, é a grande falácia do pensamento keynesiano, que diz que é o consumo que gera a riqueza.  Porém, se não houver produção, como pode haver consumo?  Como você pode consumir algo que não foi produzido?  Antes do consumo, tem de vir a produção.  E, para haver produção, é preciso acumular capital.

O problema é que o capital não surge do nada; ele não cai do céu.  Para haver um acúmulo de capital que possibilite toda essa produção, é preciso antes haver poupança.  E poupança nada mais é do que a abstenção do consumo.  O sujeito que poupa é aquele que deixa de consumir.  Ao se abster do consumo, esse indivíduo estará liberando bens de consumo para serem usados nos processos de produção que irão criar os bens de capital.

Funciona assim: se grande parte da população deixa de comprar computadores, laptops, carros, motos, celulares, iPhones, televisões, DVDs etc., isso fará com que haja uma maior abundância desses bens, reduzindo seus preços e liberando as indústrias da necessidade de produzir mais destes bens apenas para suprir a escassez deles.  Tal atitude estará liberando os fatores de produção dessas indústrias, que agora poderão utilizá-los em outros processos de produção, resultando em uma abundância ainda maior de bens de consumo.

Mais ainda: os bens que já foram produzidos e não consumidos — isto é, os bens que foram poupados — poderão ser empregados em outros processos de produção cujos produtos finais, embora irão estar prontos somente daqui a algum tempo, trarão óbvias satisfações para os consumidores.

Como disse Mises,

Aqueles que poupam — isto é, que consomem menos que a sua parcela dos bens produzidos — inauguram o progresso em direção à prosperidade geral.  As sementes que eles semearam enriquecem não apenas eles próprios, mas também todas as outras camadas da sociedade.  Sua poupança beneficia os consumidores.

Portanto, a poupança dos indivíduos permite que haja uma maior quantidade de bens (recursos) a serem empregados na produção, ajudando na criação de bens de capital, os quais, por sua vez, irão produzir mais e ampliar a abundância de produtos na economia.

O capital advém da poupança.  É a poupança que permite a formação de capital, o qual, por sua vez, irá produzir uma maior quantidade de bens de consumo.

Gastos do governo, tributação, pobres e ricos

O governo atrapalha esse processo de formação de capital de três maneiras: gastando, tributando e incorrendo em déficits orçamentários.

Quando o governo gasta — seja comprando recursos para fazer obras, seja comprando bens para políticos, seja dando salários para funcionários públicos, os quais irão consumi-los —, ele está impedindo diretamente a formação de capital.  Afinal, os gastos do governo fazem com que haja uma menor quantidade de bens na economia, anulando a poupança dos indivíduos (eles se abstiveram do consumo mas não terão o benefício da abundância futura de produtos, pois o governo consumiu boa parte) e interrompendo o processo de formação de capital acima descrito.

Para financiar seus gastos, o governo utiliza em grande parte as receitas provenientes de impostos.  Se a incidência de impostos for sobre a renda — e sobre a poupança advinda dessa renda —, então o governo estará impedindo que esses recursos sejam destinados a investimentos produtivos, levando aos mesmos efeitos acima.

Por fim, se o governo incorre em déficits orçamentários, ele terá de pegar empréstimos para cobrir esse rombo.  Na maioria dos casos, ele venderá títulos em troca do dinheiro poupado por indivíduos e empresas, e utilizará esse dinheiro para cobrir seus gastos.  Obviamente, essa apropriação de renda de indivíduos e empresas também surtirá os mesmos efeitos acima.

Portanto, se uma economia quiser aumentar a poupança e a formação de capital, o governo terá de ter um orçamento equilibrado, impostos baixos e gastos idem.  E, principalmente, os impostos não devem recair sobre a produção e nem sobre a renda, pois isso seria um enorme obstáculo à poupança e à formação de capital.

Sendo assim, o artifício de reduzir impostos sem uma concomitante redução de gastos — uma medida que soa muito positiva para muitos liberais —, não ajuda no processo de formação de capital.  Ao contrário, pode piorá-lo ainda mais, pois, os fundos que o governo agora deixou de confiscar via impostos, ele irá recolher via empréstimos.  O governo está trocando um real de impostos por um real de endividamento.  Cada real adquirido pelo governo desta forma significa um real a menos disponível para o resto do sistema econômico, e com um agravante: a pressão sobre os juros que tal medida pode criar.  Afinal, como o governo está desviando poupança para si próprio, haverá menos fundos disponíveis para investimentos produtivos, aumentando o preço (juros) deles.

Portanto, cortes de impostos que causam um aumento no déficit do governo não promovem a poupança e nem a formação de capital.  São, portanto, contrários a esse propósito.  O mesmo é válido para os déficits que, ao invés de serem financiados por mais endividamento, sejam financiados pelo aumento da expansão monetária praticada pelo banco central.  A inflação desestimula a poupança e estimula o consumo do capital numa velocidade ainda maior — afinal, poupar deixa de ser uma atividade benéfica, dado que seu dinheiro está perdendo poder de compra.

Da mesma forma, dado que a inflação provoca um aumento nominal da renda e dos lucros, isso faz com que as empresas tenham de pagar uma quantidade maior de impostos sobre a renda e sobre o lucro — a tabela do imposto de renda não é corrigida anualmente pela inflação —, reduzindo ainda mais sua capacidade de investimento.

Os críticos da alta carga tributária que recai sobre os bens de consumo — prejudicando, portanto, os mais pobres — querem que haja mais impostos sobre a renda e sobre a propriedade dos mais ricos, exatamente a medida mais destrutiva para a formação de capital, algo que seria ainda mais prejudicial para os mais pobres no longo prazo.  É dos ricos e das grandes empresas que vem a poupança necessária para os investimentos produtivos.

Ironicamente — e essa é a parte chocante —, a única maneira de haver um estado assistencialista, provedor e gastador, sustentado por uma alta carga tributária, e que, ao mesmo tempo, permita uma relativa formação de capital, é fazendo com que a carga tributária se concentre majoritariamente sobre os mais pobres (tanto sobre sua renda quanto sobre os bens de consumo).  Isso simplesmente porque os pobres poupam relativamente menos de sua renda do que os ricos, de modo que eles pouco contribuem para o processo de formação de capital.

Assim, a única forma de haver uma maior poupança e uma maior formação de capital em uma economia como a brasileira, cujo governo só faz aumentar seus gastos, é mantendo um orçamento equilibrado por meio de impostos que recaem maciçamente sobre os mais pobres.  Mais ainda: para aumentar a poupança, e com isso acelerar o processo de formação de capital, os impostos sobre os ricos teriam de ser reduzidos, o que significa que os impostos sobre os pobres teriam de ser aumentados ainda mais — dado que o governo se recusa a cortar gastos.

Portanto, se uma pessoa se recusa a aceitar que o governo tem de reduzir gastos, e ao mesmo tempo ela quer que haja crescimento econômico, então ela está logicamente obrigada a defender aumentos de impostos sobre a renda dos mais pobres e sobre os bens de consumo, de modo a compensar a necessária redução de impostos sobre a renda dos mais ricos.

Como bem explicou George Reisman,

Ironicamente, um aspecto dessa abordagem existe — dentre todos os lugares — justamente na Suécia!  O que permite que a Suécia tenha uma das mais altas cargas tributárias do mundo e, ao mesmo tempo, se mantenha como um país moderno, com avanços moderados, é o fato de que a carga tributária na Suécia recai mais pesadamente no assalariado sueco médio, e não nas empresas suecas, cuja carga tributária é na realidade menor do que a das empresas de muitos outros países ocidentais. (Por exemplo, quando consideramos o fato de que as empresas suecas podem deduzir 50 por cento de seus lucros para reinvesti-los no futuro, o que os torna uma reserva isenta de impostos, o imposto de renda de pessoa jurídica efetivo se torna menor na Suécia do que nos EUA: 26 por cento versus 35 por cento). Se as empresas suecas tivessem de arcar com a mesma carga tributária que incide nos assalariados suecos, a economia sueca há muito já estaria em ruínas.

Conclusão

Um estado inchado como o brasileiro não oferece almoço grátis.  Ao contrário: ele cobra muito caro até pelo couvert.

Se os brasileiros querem manter um estado com esse mesmo nível de gastos, então não apenas a carga tributária não pode ser reduzida, como, pior ainda, ela tem de ser aumentada sobre os mais pobres e concomitantemente reduzida sobre os mais ricos, de modo que a arrecadação final se mantenha.  Esse seria o único arranjo compatível com um crescimento econômico sustentável — embora muito abaixo do crescimento possível caso houvesse uma redução dos gastos do governo.

Portanto, um estado desse tamanho pode até permitir que haja crescimento econômico, mas não será nada bondoso com os mais pobres, que só começarão a se beneficiar do capital acumulado em um futuro longínquo — e isso levando-se em conta um nível constante de gastos do governo.  Quanto mais estes forem elevados, pior para eles.

Finalmente, uma vez compreendida a real natureza da poupança, torna-se compreensível por que a mera expansão monetária — isto é, criação de dinheiro pelo banco central — não pode gerar investimentos.  Como Mises nunca se cansou de explicar, bens de capital não podem ser criados por meio de uma expansão monetária.  Inundar uma economia de dinheiro não vai fazer com que os bens de capital necessários para os processos de produção surjam do nada.  O que importa não é a quantidade de dinheiro em circulação, mas sim a quantidade de capital acumulado pela economia.  E esse capital só pode crescer se houver poupança — isto é, abstenção do consumo.

Resta saber o que os intelectuais acham disso.  Por que não defender a redução de gastos do governo?  Não é nada impossível.

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Leituras recomendadas:

Trabalho, emprego, poupança e capital

Imposto de renda vs. imposto sobre o consumo – uma abordagem liberal clássica

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