Capítulo XXIII. A realidade do mercado
1 — A teoria e a realidade
A cataláxia, a teoria da economia de mercado, não é um conjunto de teoremas que só tenha validade em condições ideais e irrealizáveis e que só possa ser aplicado à realidade mediante restrições e modificações essenciais. Todos os teoremas da cataláxia são, sem qualquer exceção, rigorosamente válidos para todos os fenômenos da economia de mercado, sempre que estejam presentes as condições específicas definidas no próprio teorema. Por exemplo: é uma simples questão de fato constatar se determinada comunidade adota a troca direta ou indireta. Mas, onde houver troca indireta, todas as leis gerais relativas à teoria da troca indireta se aplicam em relação aos atos de troca e em relação aos meios de troca. Como já foi assinalado anteriormente,[1] conhecimento praxeológico é conhecimento exato e preciso da realidade. Todas as referências aos problemas epistemológicos das ciências naturais e todas as analogias decorrentes de comparações entre esses dois domínios da realidade e do conhecimento são ilusórias. Não há, além da lógica formal, outro conjunto de regras “metodológicas” que seja aplicável tanto à cognição alcançada por meio da categoria causalidade como à alcançada por meio da categoria finalidade.
A praxeologia lida com a ação humana em si, de uma maneira genérica e universal. Não lida nem com as condições específicas do meio ambiente onde o homem age, nem com o conteúdo concreto das valorações que impulsionam suas ações. Os dados com que a praxeologia lida são as características físicas e psicológicas do agente homem, seus desejos e julgamentos de valor, e suas teorias, doutrinas e ideologias desenvolvidas com o propósito de ajustá-lo às condições de seu meio ambiente, permitindo-lhe, assim, alcançar os objetivos almejados. Esses dados, embora permanentes em sua estrutura e rigorosamente definidos pelas leis que controlam a ordem do universo, estão permanentemente flutuando e variando; mudam de um instante para o outro.[2]
A realidade plena só pode ser compreendida por uma mente que recorra à concepção praxeológica e à compreensão histórica; e essa última requer que se tenha pleno domínio das ciências naturais. É o conjunto de conhecimentos que nos habilita a compreender e a prever.
O que cada setor da ciência nos pode oferecer é sempre fragmentário; precisa ser complementado com informações de todos os outros setores. Do ponto de vista do agente homem, a especialização do conhecimento e a sua divisão em várias ciências é meramente um dispositivo da divisão do trabalho. Da mesma maneira que o consumidor utiliza os produtos de vários setores de produção, o ator deve basear suas decisões em conhecimentos que lhe são fornecidos pelos diversos setores do pensamento e da investigação científica.
Nenhum desses setores pode ser desprezado se quisermos conhecer a realidade. A Escola Historicista e os Institucionalistas pretendem proscrever o estudo da praxeologia e da economia e se ocupar exclusivamente do mero registro dos dados ou, como costumam dizer hoje em dia, das instituições. Mas não se pode chegar a nenhuma conclusão sobre dados ou instituições sem se recorrer a um determinado conjunto de teoremas econômicos. Quando um institucionalista atribui a um determinado evento uma causa específica — por exemplo, o desemprego em massa às supostas deficiências do sistema capitalista de produção -, está presumindo um teorema econômico. Ao recusar-se a examinar mais profundamente o teorema tacitamente implícito nas suas conclusões, está apenas tentando evitar que se refutem os erros do seu raciocínio. Não tem sentido registrar fatos autênticos sem fazer qualquer referência a uma teoria. O simples registro de dois eventos como pertencentes a uma mesma classe já implica na existência de uma teoria. Não se pode dizer que exista uma conexão entre eles, sem se recorrer a uma teoria; e quando se trata da ação humana, sem se recorrer à praxeologia. É inútil tentar descobrir coeficientes de correlação se não se partir de um conceito teórico anteriormente formulado. O coeficiente pode ter um alto valor numérico, sem que isso signifique que haja uma conexão relevante entre os dois eventos considerados.[3]
2. O papel do poder
A Escola Historicista e o Institucionalismo condenam a ciência econômica por desprezar o papel que o poder representa na vida real. A noção básica da economia, qual seja, a do indivíduo que escolhe e que age, é, dizem os representantes dessas correntes, um conceito irrealista; o homem, na realidade, não é livre para escolher e agir; está sujeito à pressão social e à autoridade irresistível do poder. Não são os julgamentos de valor dos indivíduos, mas as interações das forças do poder, que determinam os fenômenos de mercado.
Essas objeções, tanto quanto as demais críticas à economia, carecem de fundamento. A praxeologia, em geral, e a economia e a cataláxia, em particular, não afirmam nem supõem que o homem seja livre num sentido metafísico que se possa atribuir ao termo liberdade. O homem está irremediavelmente sujeito às condições naturais de seu meio ambiente. Ao agir, tem que se ajustar à inexorável regularidade dos fenômenos naturais. O homem é impelido a agir precisamente pela dificuldade de encontrar condições naturais para o seu bem-estar.[4]
Ao agir, o homem é guiado por ideologias. Escolhe meios e fins sob influência de ideologias. A influência de uma ideologia pode ser direta ou indireta. É direta quando o ator está convencido de que o conteúdo da ideologia é correto e de que, adotando-a, estará atendendo aos seus interesses. É indireta quando o ator considera falso o conteúdo da ideologia, mas é obrigado a ajustar suas ações ao fato de que essa ideologia é adotada por outras pessoas. Os usos e costumes de um meio ambiente são uma realidade que as pessoas não podem ignorar. Quem os considera espúrios deve, em cada caso, escolher entre as vantagens a serem obtidas com uma forma de agir mais eficiente e as desvantagens de desrespeitar os preconceitos, as superstições e as tradições populares.
O mesmo também se pode dizer em relação à violência. O homem, ao escolher, deve levar em conta que existe sempre a possibilidade de que alguma forma de compulsão violenta seja exercida sobre ele.
Todos os teoremas da cataláxia são igualmente válidos em relação às ações que sofrem a influência de pressões sociais ou físicas. A influência direta ou indireta de uma ideologia e a ameaça de coerção física são meramente dados da situação do mercado. Pouco importa, por exemplo, que tipo de considerações induz um homem a não oferecer um preço maior por uma mercadoria, deixando consequentemente de comprá-la. Para a formação do preço de mercado é irrelevante se foi por preferir gastar seu dinheiro com outra coisa, ou se está com medo de ser considerado um novo rico ou um perdulário por seus vizinhos; se está com medo de violar um decreto de tabelamento de preço estabelecido pelo governo ou se não se atreve a desafiar um competidor que esteja disposto a reagir violentamente. Qualquer que seja o caso, ao abster-se de oferecer um preço maior está contribuindo da mesma maneira para a formação do preço do mercado.[5]
É costume, hoje em dia, qualificar de poder econômico ou poder de mercado a posição que os proprietários e empresários ocupam no mercado. Essa terminologia, quando usada para descrever o que se passa no mercado, induz ao erro. Tudo o que acontece numa economia de mercado não obstruída é regido pelas leis da cataláxia. Todos os fenômenos de mercado são, em última instância, determinados pelas escolhas dos consumidores. Quem quiser aplicar a noção de poder aos fenômenos do mercado deve dizer: no mercado, todo poder emana dos consumidores. Os empresários são forçados, pela necessidade de auferir lucros e evitar perdas, a procurar, sempre, atender os desejos dos consumidores da melhor maneira possível; inclusive na gestão dos assuntos que costumam erradamente ser denominados de “internos”, notadamente a gerência de pessoal. É inteiramente impróprio empregar o mesmo termo, “poder”, para designar tanto a capacidade de uma firma fornecer aos consumidores melhores automóveis, sapatos ou margarina, quanto a força de que dispõe o governo para esmagar qualquer resistência usando as suas forças armadas.
Nem a propriedade dos fatores materiais de produção nem a capacidade empresarial ou tecnológica podem, na economia de mercado, conferir poder no sentido de coerção. Podem apenas conceder o privilégio de servir os verdadeiros senhores do mercado, os consumidores, de uma posição mais elevada do que as demais pessoas. A propriedade do capital é um mandato outorgado aos proprietários, à condição de ser empregado para satisfazer os consumidores da melhor maneira possível. Quem não respeitar essa condição perde sua fortuna e é relegado a uma posição em que a sua inépcia não mais prejudica o bem-estar das pessoas.
3. O papel histórico da guerra e da conquista
Muitos autores exaltam a guerra, a revolução, o derramamento de sangue e a conquista. Carlyle e Ruskin, Nietzsche, George Sorel e Spengler foram os arautos das ideias que Lênin e Stálin, Hitler e Mussolini puseram em prática.
O curso da história, dizem essas filosofias, não é determinado pelas atividades mesquinhas de traficantes e comerciantes materialistas, mas pelas proezas heroicas de guerreiros e conquistadores. Os economistas se equivocam ao tentarem extrair, da experiência do efêmero episódio liberal, uma teoria à qual atribuem validade universal. Essa época – de liberalismo, individualismo e capitalismo; de democracia, tolerância e liberdade; de desrespeito aos valores “verdadeiros” e “eternos”; de supremacia da ralé — está desaparecendo para nunca mais voltar. Está raiando nova era de virilidade que requer uma nova teoria da ação humana.
Na realidade, nenhum economista jamais se atreveu a negar que a guerra e a conquista foram da maior importância no passado ou que os hunos e os tártaros, os vândalos e os vikings, os normandos e os conquistadores representaram um enorme papel na história. Um dos determinantes da situação atual da humanidade é o fato de terem existido milhares de anos de conflitos armados. Entretanto, o que subsistiu e que é a essência da civilização humana não é o que nos foi legado pelos guerreiros. A civilização é fruto do espírito “burguês” e não do espírito de conquista. Todos os povos que não substituíram a pilhagem pelo trabalho desapareceram da cena histórica. Os traços de sua existência que porventura ainda restam são obras realizadas sob a influência da civilização dos povos subjugados. A civilização latina sobreviveu na Itália, na França e na Península Ibérica, a despeito de todas as invasões bárbaras. Se os empresários capitalistas não tivessem sucedido a lorde Clive e a Warren Hastings,[6] a dominação dos ingleses na Índia poderia ter sido uma reminiscência histórica tão insignificante quanto o foram os 150 anos de dominação turca na Hungria.
Não cabe aos economistas examinar esses esforços feitos no sentido de reviver os ideais dos vikings. Cabe-lhes apenas refutar as afirmações segundo as quais o fato de haver conflitos armados invalida os seus ensinamentos. Convém, a esse respeito, reiterar o seguinte:
Primeiro: os ensinamentos da cataláxia não se referem a determinada época da história; aplicam-se sempre que a propriedade privada dos meios de produção e a divisão do trabalho estiverem presentes. Em qualquer lugar e em qualquer época, numa sociedade onde exista propriedade privada dos meios de produção, onde as pessoas não se limitem a produzir para as suas próprias necessidades, os teoremas da cataláxia são rigorosamente válidos.
Segundo: se independentemente do mercado e à sua margem existem roubos e assaltos, esses fatos são um dado para o mercado. Os atores devem levar em consideração o fato de que podem ser vítimas de ladrões ou assassinos. Se o ato de matar e roubar torna-se tão comum que o de produzir passa a ser inútil, pode ocorrer finalmente que o trabalho produtivo deixe de existir e a humanidade entre num estado de guerra de todos contra todos.
Terceiro: para haver butim, é preciso haver alguma coisa para ser pilhada. Os heróis só podem viver se houver um número suficiente de burgueses a serem expropriados. A existência de produtores é uma condição para a sobrevivência dos conquistadores; mas os produtores não precisam dos conquistadores para nada.
Quarto: existem, é claro, além do sistema capitalista de propriedade privada dos meios de produção, outros sistemas imagináveis de sociedade baseada na divisão do trabalho.
Os que são a favor do militarismo, coerentemente, defendem a implantação do socialismo. A nação inteira devia ser organizada nos moldes de uma comunidade de guerreiros, na qual aos não combatentes cabe apenas a tarefa de fornecer às forças armadas tudo aquilo de que estas precisam. (Os problemas do socialismo serão tratados na quinta parte deste livro).
4. O homem como um dado da realidade
A economia se ocupa das ações reais de homens reais. Seus teoremas não se referem a homens perfeitos ou ideais, nem a um mítico homem econômico (homo oeconomicus) e nem à noção estatística de um homem médio (homme moyen). O homem, com todas as suas fraquezas e limitações, o homem tal como vive e age na realidade — eis o objeto dos estudos da cataláxia. Toda ação humana é tema para a praxeologia.
O campo de estudos da praxeologia não se limita à sociedade, às relações sociais e aos fenômenos de massa; abrange o estudo de todas as ações humanas. O termo “ciências sociais”, e todas as suas conotações, é, nesse particular, uma fonte de erros.
O exame científico da ação humana só pode ser feito a partir da constatação da existência de objetivos que os indivíduos procuram realizar ao empreender determinada ação.
Os objetivos em si não são passíveis de qualquer exame crítico. Ninguém pode ser chamado para estabelecer o que é necessário para que alguém seja feliz. O que um observador isento pode questionar é apenas se os meios escolhidos para atingir os objetivos são ou não adequados para produzir os resultados esperados pelo ator. Só nesse sentido, ou seja, só para analisar se os meios são compatíveis com os objetivos, é que a economia pode emitir uma opinião quanto às ações de indivíduos ou grupos de indivíduos, ou quanto às políticas dos partidos, dos grupos de pressão e dos governos.
Frequentemente os ataques arbitrários desfechados contra os julgamentos de valor de outras pessoas são feitos sob o disfarce de uma crítica ao sistema capitalista ou à conduta dos empresários. A economia é neutra em relação a manifestações desse tipo.
O economista não contesta a afirmativa de que, “no capitalismo, o equilíbrio na produção dos diferentes bens é reconhecidamente imperfeito”,[7] alegando ser esse equilíbrio perfeito. O que o economista afirma é que na economia de mercado livre a produção corresponde à conduta dos consumidores manifestada pela forma como gastam sua renda.[8]
Não cabe ao economista censurar os seus semelhantes nem considerar condenável o resultado de suas ações. A alternativa ao sistema em que a produção é determinada pelos julgamentos de valores individuais é a ditadura autocrática. Nesse caso, são os julgamentos de valor dos ditadores — não menos arbitrários do que os de qualquer outra pessoa — que determinam o que deve ser produzido. O homem certamente não é perfeito. Suas fraquezas certamente contaminam todas as instituições humanas e, portanto, também a economia de mercado.
5. O período de ajustamento
Toda mudança nos dados do mercado provoca os seus correspondentes efeitos. É necessário que transcorra algum tempo para que se consumam todos esses efeitos, isto é, para que o mercado se ajuste ao novo estado de coisas.
A cataláxia, evidentemente, tem que lidar com todas as reações propositadas e conscientes dos vários indivíduos, e não apenas com o resultado final produzido no mercado pela interação dessas ações. Pode ocorrer que os efeitos de uma mudança nos dados sejam contrabalançados pelos efeitos de outra mudança ocorrida, geralmente, ao mesmo tempo e com a mesma intensidade. Assim sendo, o resultado final não provoca mudanças consideráveis nos preços de mercado. Um estatístico, que estivesse preocupado exclusivamente em observar os fenômenos de massa e o resultado da totalidade das transações do mercado, tal como se refletem nos preços de mercado, ignoraria o fato de que a não ocorrência de mudanças no nível de preços é meramente acidental e não uma consequência da continuidade dos dados e da ausência de ajustes específicos. Deixaria de perceber qualquer movimento ocorrido assim como as consequências sociais de tais movimentos. Todavia, qualquer mudança nos dados segue o seu próprio curso, provoca certas reações por parte dos indivíduos afetados e perturba a relação entre os vários membros do sistema de mercado, mesmo que, eventualmente, não tenham ocorrido mudanças consideráveis nos preços dos diversos bens e na quantidade total de capital existente no sistema de mercado como um todo.[9]
A história econômica só pode fornecer uma informação imprecisa, a posteriori, sobre a extensão dos períodos de ajustamento. Este tipo de informação não pode ser obtido por meio de medições, e sim por meio da compreensão histórica. Os vários processos de ajustamento, na realidade, não são isolados. Num mesmo momento está ocorrendo um grande número desses processos, cujos percursos se cruzam e se influenciam mutuamente.
Desenredar essa intrincada teia e observar a cadeia de ações e reações provocada por uma determinada mudança nos dados é uma tarefa difícil para o historiador, e os resultados alcançados são, na sua maior parte, escassos e duvidosos.
Prever a extensão do período de ajustamento é a tarefa mais difícil daqueles que, por necessidade de sua função, precisam ter uma compreensão de como será o futuro: os empresários. Para se ter sucesso na atividade empresarial, não basta prever a direção que o mercado tomará a partir de certo evento; mais importante ainda é antecipar adequadamente a extensão dos vários períodos de ajustamento. A maior parte dos equívocos cometidos pelos empresários na condução dos seus negócios e a maior parte dos fracassos dos “especialistas” em previsões sobre o futuro do mercado são causadas por erros cometidos na avaliação da duração do período de ajustamento.
Ao se lidar com efeitos produzidos pelas mudanças nos dados, é costume distinguir entre os efeitos mais imediatos e os mais remotos, ou seja, os efeitos a curto prazo e a longo prazo. Essa distinção é muito mais antiga do que a terminologia usada hoje em dia para exprimi-la.
Para que se descubram os efeitos imediatos — de curto prazo — produzidos pela mudança num dado, geralmente não é necessário recorrer a uma investigação meticulosa e profunda. Os efeitos de curto prazo são, na sua maior parte, óbvios e raramente escapam a um observador comum, não familiarizado com investigações econômicas. A ciência econômica surgiu, precisamente, do fato de que alguns homens de gênio começaram a suspeitar que as consequências mais remotas de um evento podem ser diferentes dos efeitos imediatos, os quais são percebidos até pelas pessoas mais simplórias. O principal mérito da ciência econômica foi a descoberta de tais efeitos a longo prazo que, até então, não eram percebidos por um observador isento, e que eram negligenciados pelos governantes.
A partir dessas descobertas surpreendentes os economistas clássicos extraíram uma regra para a prática política. Os governos, os governantes e os partidos políticos, explicavam eles, deviam, ao planejar e agir, considerar não apenas as consequências de suas medidas, a curto prazo, mas também as de longo prazo. Ninguém contestaria nem discutiria a procedência dessa norma. A ação visa a substituir um estado de coisas menos satisfatório por outro mais satisfatório. Para saber se o resultado de uma ação será considerado mais ou menos satisfatório, é preciso prever corretamente todas as consequências, tanto a curto como a longo prazo.
Algumas pessoas criticam a ciência econômica por preferir estudar os efeitos a longo prazo e por dar pouca atenção aos efeitos de curto prazo. Essa crítica não tem fundamento. O único modo de a ciência econômica examinar os resultados de uma mudança nos dados é começar pelas suas consequências imediatas e analisar, passo a passo, da primeira reação às reações mais distantes, todas as consequências sucessivas, até chegar às consequências finais. A análise de longo prazo, necessariamente, inclui o exame das consequências de curto prazo.
É fácil compreender por que certos indivíduos, certos partidos e grupos de pressão procuram difundir a ideia de que só os efeitos a curto prazo têm importância. A política, dizem essas pessoas, não se deve ocupar dos efeitos a longo prazo de uma medida que traz benefícios a curto prazo, e não deve deixar de adotá-la só porque seus efeitos a longo prazo são prejudiciais. O que importa são os efeitos a curto prazo; “a longo prazo estaremos todos mortos”.[10] A economia responde a esses críticos movidos pela paixão, ao afirmar que qualquer decisão deveria ser baseada numa ponderação cuidadosa de todas as suas consequências, tanto as de curto quanto as de longo prazo. Existem, certamente, nas ações individuais e na condução dos negócios públicos, situações em que os atores podem ter boas razões para aceitarem efeitos de longo prazo bastante indesejáveis a fim de evitar situações de curto prazo ainda mais indesejáveis. Às vezes, pode ser conveniente queimar a mobília na lareira para esquentar a sala; quem age assim deveria saber quais os efeitos futuros de sua ação; só não deve é se iludir pensando ter encontrado um novo método maravilhoso de calefação.
Eis tudo o que a economia tem a opor ao frenesi dos apóstolos do curto prazo. A história, um dia, terá muito mais a dizer; terá de mostrar o papel que esse apoio ao princípio do curto prazo — essa ressurreição da famosa frase de Madame de Pompadour, après nous le déluge — representou na mais séria crise da civilização ocidental. Terá de mostrar de que forma, apoiados nessas ideias, os governos e partidos dilapidaram o capital moral e material herdado das gerações precedentes.
6. A limitação do direito de propriedade e os problemas relativos aos custos e aos benefícios externos
Os direitos de propriedade, tais como limitados pelas leis e protegidos pelo poder judicial e pela polícia, são o resultado de um longo período de evolução. A história de todo esse tempo é o registro dos violentos esforços feitos com o objetivo de abolir a propriedade privada. Seguidamente, déspotas e movimentos populares têm tentado restringir os direitos de propriedade privada ou aboli-los inteiramente. Essas tentativas falharam, é verdade. Mas deixaram traços nas ideias que influenciaram a forma legal e a definição de propriedade. Os conceitos legais de propriedade não levam na devida conta a função social da propriedade privada. Existem certas deficiências e incongruências que perturbam o desenvolvimento dos fenômenos do mercado.
O direito de propriedade, considerado de forma consistente, deveria, por um lado, conferir ao proprietário o direito de usufruir todas as vantagens que o bem possuído pode gerar, e deveria, por outro lado, onerá-lo com todos os inconvenientes resultantes de seu emprego. Assim sendo, as consequências seriam de exclusiva responsabilidade do proprietário, que, ao lidar com sua propriedade, levaria em conta todos os resultados esperados de sua ação, tanto os favoráveis como os desfavoráveis. Mas, se alguns dos benefícios de sua ação não podem ser auferidos e alguns dos inconvenientes não lhe são debitados, o proprietário, ao elaborar os seus planos, não se preocupará com todos os feitos de sua ação. Não considerará os benefícios que não aumentam a sua própria satisfação, nem os custos que não o oneram. Sua conduta se afastará da linha que teria seguido se as leis refletissem melhor os objetivos econômicos da propriedade privada. Realizará certos projetos só porque as leis o desobrigam da responsabilidade de alguns dos custos incorridos. Abster-se-á de realizar outros projetos simplesmente porque as leis o impedem de colher todas as vantagens decorrentes dos mesmos.
As leis relativas à responsabilidade e à indenização por danos causados eram e ainda são deficientes sob muitos aspectos. De um modo geral, aceita-se como um princípio o fato de que cada um é responsável pelos danos que suas ações infringirem a outras pessoas. Mas esse princípio sempre teve suas brechas, suas exceções legais. Em alguns casos, esse privilégio foi concedido intencionalmente àqueles que se dedicavam a atividades que as autoridades desejavam impulsionar. Quando, no passado, em muitos países, os proprietários das fábricas e das estradas de ferro não foram responsabilizados pelos danos que suas empresas infringiam à propriedade e à saúde de seus vizinhos, clientes, empregados e outras pessoas (através de fumaça, fuligem, barulho, poluição da água e acidentes causados por equipamento inadequado ou defeituoso), a ideia subjacente era a de que não se deveria enfraquecer o progresso da industrialização e o desenvolvimento dos meios de transporte. As mesmas doutrinas que inspiraram e ainda continuam inspirando muitos governos a incentivarem investimentos em fábricas e estradas de ferro através de subsídios, isenção de impostos, tarifas e crédito barato, contribuíram para o surgimento de uma situação jurídica na qual a responsabilidade dessas empresas foi prática ou formalmente aliviada. Mais tarde, começou a prevalecer a tendência oposta, e a responsabilidade dos industriais e das estradas de ferro passou a ser tratada com maior severidade do que a dos demais cidadãos e firmas. Também, nesses casos, os objetivos são políticos. Os legisladores desejavam proteger os pobres, os assalariados, os camponeses, contra os ricos capitalistas e empresários.
Que o fato de desobrigar o proprietário de algumas das desvantagens que resultam da maneira como ele conduz o seu negócio seja fruto de uma política deliberada adotada pelos governos e pelos legisladores, ou seja, um efeito não intencional da redação tradicional das leis, é, de qualquer forma, um dado que precisa ser levado em conta. Estamos diante do problema dos denominados custos externos. Esta situação faz com que algumas pessoas escolham certas maneiras de satisfazer suas necessidades simplesmente em função do fato de que uma parte dos custos incorridos não lhes é debitada, mas recai sobre outras pessoas.
O exemplo extremo nos é proporcionado pelo caso, já referido anteriormente,[11] das terras sem dono. Se a terra não tem dono, embora o formalismo jurídico possa qualificá-la de propriedade pública, as pessoas utilizam-na sem se importar com os inconvenientes de uma exploração predatória. Quem tiver condições de usufruir de suas vantagens — a madeira e a caça dos bosques, os peixes das extensões aquáticas e os depósitos minerais do subsolo – não se preocupará com os efeitos posteriores decorrentes do modo de exploração. Para essas pessoas, a erosão do solo, o esgotamento dos recursos exauríveis e qualquer outra redução da possibilidade de utilização futura são custos externos, não considerados nos cálculos pessoais de receita e despesa. Cortarão as árvores sem qualquer consideração para com as que ainda estão verdes ou para com o reflorestamento. Ao caçar e pescar não hesitarão em empregar métodos contrários à preservação das reservas de caça e pesca. Nos primórdios da civilização, quando ainda havia abundância de terras de qualidade não inferior à já utilizada, o uso de métodos predatórios era corrente. Quando a produtividade diminuía, o lavrador abandonava sua terra e se mudava para outro lugar. Só mais tarde, à medida que a população crescia e não havia mais disponibilidade de terra virgem de primeira classe, as pessoas começaram a considerar tais métodos predatórios um desperdício. Consolidava-se assim a instituição da propriedade privada da terra; a princípio, nas terras aráveis, e depois, passo a passo, estendendo-se aos pastos, às florestas, aos pesqueiros. As novas colônias de ultramar, especialmente os vastos espaços dos Estados Unidos, cujas fantásticas potencialidades agrícolas estavam praticamente intactas, quando lá chegaram os primeiros colonizadores, passaram pelos mesmos estágios. Até as últimas décadas do século XIX havia sempre uma zona geográfica aberta aos recém-chegados: a fronteira. Nem a existência dessas regiões inexploradas, nem o seu desaparecimento são peculiares à América. O que caracteriza as condições americanas é o fato de que, ao esgotarem-se as terras inexploradas, fatores institucionais e ideológicos impediram que os métodos de utilização da terra se ajustassem à nova circunstância.
Nas áreas centrais e ocidentais da Europa continental, onde a instituição da propriedade privada já estava firmemente estabelecida há muitos séculos, as coisas foram diferentes. Não houve erosão de solos já cultivados. Não houve devastação de florestas, apesar do fato de as florestas particulares terem sido, durante gerações, a única fonte de madeira para construção e mineração, e de combustível para as fundições e os fornos, para as cerâmicas e para as fábricas de vidro. Os proprietários dessas florestas foram impelidos a conservá-las movidos pelos seus próprios interesses egoístas. Nas áreas mais densamente habitadas e industrializadas, até alguns anos atrás, entre um quinto e um terço da superfície era ocupado por florestas de primeira classe administradas segundo os melhores métodos da tecnologia florestal.[12]
Não cabe à teoria cataláctica elaborar uma explicação dos complexos fatores que acarretaram as atuais condições de propriedade da terra nos Estados Unidos. Quaisquer que tenham sido, esses fatores produziram um estado de coisas no qual um grande número de agricultores e de companhias madeireiras podiam considerar os inconvenientes de não se cuidar do solo e de se conservarem as florestas como custos externos.[13]
O cálculo econômico torna-se ilusório e os seus resultados enganadores sempre que uma parte considerável dos custos incorridos sejam custos externos. Mas isto não é uma consequência das alegadas deficiências inerentes ao sistema de propriedade privada dos meios de produção. É, ao contrário, uma consequência das brechas deixadas no sistema. Poderiam ser eliminadas por meio de uma reforma das leis relativas à responsabilidade por danos infringidos e pelo cancelamento das barreiras institucionais que impedem o pleno funcionamento do sistema de propriedade privada.
O caso dos benefícios externos não é simplesmente uma inversão do caso dos custos externos. Tem características e campo de aplicação próprios.
Quando os resultados de uma ação não beneficiam apenas o ator, mas também outras pessoas, existem duas alternativas:
1 — O ator considera as vantagens que espera auferir para si mesmo tão importantes que está disposto a arcar com todos os custos. O fato de sua ação também beneficiar outras pessoas não o impedirá de realizar aquilo que promoverá o seu próprio bem-estar. Quando uma companhia de estrada de ferro constrói um dique para proteger a sua linha férrea de deslizamentos ou avalanches, também está protegendo as casas nos terrenos adjacentes. Mas esse benefício auferido pelos vizinhos não impedirá a companhia de realizar um investimento que considera vantajoso.
2 — Os custos necessários à realização de um projeto são tão grandes que nenhum dos possíveis beneficiários está disposto a suportá-los inteiramente. O projeto só poderá ser realizado se um número suficiente de interessados compartilhar os seus custos.
Não seria necessário dizer mais nada sobre benefícios externos, se não fosse o fato de esse fenômeno ser inteiramente deturpado na literatura pseudoeconômica corrente.
Um projeto P não é lucrativo quando e porque os consumidores preferem a satisfação derivada de outro projeto à satisfação prevista com a realização de P. A execução de P desviaria capital e trabalho de algum outro projeto, considerado mais urgente pelos consumidores. O leigo e o pseudoeconomista não chegam a perceber esse fato. Teimosamente se recusam a reconhecer a escassez dos fatores de produção. No seu entendimento, P poderia ser realizado sem qualquer inconveniente, isto é, sem renúncia a qualquer outra satisfação; seria apenas a insensibilidade do sistema de lucro que estaria a impedir que a nação desfrutasse graciosamente os benefícios de P.
Ora — continuam esses críticos de visão curta -, o absurdo do sistema de lucro torna-se especialmente ultrajante se a não lucratividade de P se dever ao fato de o empresário não considerar nos seus cálculos as vantagens de P que para ele são benefícios externos. Do ponto de vista da sociedade como um todo, dizem esses críticos, tais vantagens não são externas; beneficiam pelo menos alguns membros da sociedade e aumentam o “bem-estar total”. A não realização de P seria portanto uma perda para a sociedade. Por isso, quando a iniciativa privada, egoistamente, se recusa a realizar tais projetos não lucrativos, o dever do governo é preencher esse vazio. O governo deveria ou realizá-los através de empresas públicas ou subsidiá-los para torná-los atrativos ao empresário privado e ao investidor. Os subsídios poderiam ser concedidos seja diretamente em dinheiro, às custas do erário público, seja através de tarifas cuja incidência recairia sobre os compradores dos produtos. Os que assim argumentam não percebem que os meios que o governo utiliza para fazer funcionar uma empresa deficitária ou para subsidiar um projeto não rentável terão de ser retirados da capacidade de gastar e investir dos contribuintes ou terão de ser obtidos de modo inflacionário. Nem o governo nem qualquer indivíduo têm a possibilidade de criar algo do nada. Maiores gastos do governo representam menores gastos do público. As obras públicas não são realizadas pelo poder milagroso de uma varinha de condão; são pagas com recursos tomados dos cidadãos. Se o governo não tivesse interferido, os cidadãos os teriam empregado em projetos lucrativos e que não serão realizados porque os meios correspondentes lhes foram subtraídos. Para cada projeto não rentável realizado com a ajuda do governo, há um outro que deixa de ser realizado em virtude da intervenção governamental. Com uma diferença: o projeto não realizado teria sido lucrativo, isto é, teria empregado os escassos meios de produção de maneira a atender às necessidades mais urgentes dos consumidores. Do ponto de vista dos consumidores, o emprego desses meios de produção para realização de um projeto não lucrativo é um desperdício. Priva-os das satisfações que preferem, dando-lhes em troca as que o projeto patrocinado pelo governo lhes pode oferecer.
As massas crédulas incapazes de ver além do que a vista alcança se entusiasmam com as realizações maravilhosas de seus governantes. Não chegam a perceber que são elas, as massas, que pagam a conta e que, consequentemente, têm que renunciar a muitas satisfações de que teriam usufruído se o governo tivesse gasto menos com projetos não rentáveis. Não têm imaginação suficiente para sequer vislumbrar as possibilidades que o governo não permitiu que viessem a existir.[14]
Esses entusiastas da intervenção estatal ficam ainda mais extasiados quando a ação governamental possibilita que produtores submarginais continuem produzindo, competindo com usinas, lojas ou fazendas mais eficientes. Nesses casos, dizem eles, é óbvio que a produção total aumentou e que alguma coisa — que se não fosse a ajuda das autoridades não teria sido produzida — foi acrescentada à riqueza geral. O que ocorre, na realidade, é exatamente o oposto; o montante da produção total e da riqueza total diminui. Instalações que produzem por custos maiores entram em funcionamento, enquanto outras instalações que produzem por custos menores são forçadas a diminuir ou a paralisar a sua produção. Os consumidores não estão obtendo mais, e sim, menos.
Uma ideia que habitualmente tem muita aceitação é a de que o governo deve promover o desenvolvimento agrícola daquelas regiões do país maldotadas pela natureza.
Nessas regiões, os custos de produção são maiores do que em outras áreas; é precisamente este fato que torna o seu solo submarginal. Se não forem ajudados por recursos públicos, os agricultores que trabalham essas terras não conseguiriam suportar a competição das fazendas mais férteis. A agricultura desapareceria ou não se desenvolveria e a região se tornaria uma parte atrasada do país. Com pleno conhecimento dessa realidade, as empresas que visam ao lucro evitam investir na construção de estradas de ferro que liguem essas regiões inóspitas aos centros de consumo. A situação difícil dos agricultores não é causada pela falta de meios de transporte. A causalidade é no sentido inverso: como as empresas percebem que as perspectivas agrícolas da região não são favoráveis, abstêm-se de investir em estradas de ferro que provavelmente não serão lucrativas, porque há falta de uma quantidade suficiente de bens a serem transportados. Se o governo, cedendo aos grupos de pressão interessados, constrói a estrada de ferro e a opera com déficit, certamente estará beneficiando os proprietários de terras dessas regiões pobres. Podem então esses agricultores, uma vez que uma parte dos custos de transporte é absorvida pelo erário público, competir com os que cultivam terras melhores e que não recebem ajuda oficial. Mas quem paga os favores concedidos a esses agricultores privilegiados são os contribuintes, que terão de prover os fundos necessários para cobrir o déficit. Tal liberalidade não afeta o preço nem a quantidade total disponível de produtos agrícolas. Simplesmente torna rentável a operação de fazendas que até então eram submarginais, e marginaliza outras fazendas cuja operação era até então lucrativa. Desloca a produção das terras, que poderiam produzir por custos menores, para terras cujos custos de produção são maiores. Em vez de aumentar, diminui a riqueza e a disponibilidade total de mercadorias, uma vez que as quantidades adicionais de capital e trabalho, necessárias ao cultivo de campos que exigem custos de produção maiores, são retiradas de outros empregos que tornariam possível a produção de outros bens de consumo. O governo consegue beneficiar algumas regiões do país, dando-lhes o que lhes falta, operando outros setores e gerando custos que excedem os ganhos do grupo privilegiado.
As externalidades da criação intelectual
O caso extremo de externalidades fica mais evidentemente exemplificado pela “produção” de base intelectual. O traço característico das fórmulas, isto é, os dispositivos mentais que orientam os procedimentos tecnológicos, é a inesgotabilidade dos serviços que podem prestar. Esses serviços, consequentemente, não são escassos e, portanto, não há necessidade de economizar o seu emprego. As considerações que resultaram no estabelecimento da instituição da propriedade privada dos bens econômicos não se aplicam nesse caso. As fórmulas ficam fora da esfera da propriedade privada, não por serem imateriais, intangíveis e impalpáveis, mas por ser inesgotável o serviço que podem proporcionar.
Só mais tarde as pessoas começaram a perceber que este estado de coisas também tem os seus inconvenientes, pois coloca os autores dessas fórmulas — especialmente os inventores de processos tecnológicos, os escritores e compositores — numa situação peculiar.
Tais autores arcam com o custo de produção, enquanto o serviço prestado pelo produto por eles criado pode ser usufruído gratuitamente pelas demais pessoas. O que produzem é para eles inteiramente, ou quase, uma externalidade.
Se não houver direito autoral nem registro de patentes, os inventores e autores estarão na posição de um empresário. Têm uma vantagem temporária em relação a outras pessoas. Como podem começar a utilizar mais cedo sua invenção, ou seu manuscrito, ou colocá-lo à disposição de outras pessoas (fabricantes, editores), têm a possibilidade de auferir lucros enquanto sua obra não é de domínio público. Tão logo a invenção ou o texto do livro venham a ser conhecidos pelo público, tornam-se “bens livres”, e ao inventor ou ao autor resta apenas a glória.
O problema em questão nada tem a ver com as atividades do gênio criador. Esses pioneiros e descobridores de coisas, até então desconhecidas, não produzem nem trabalham no sentido com que esses termos são empregados para evocar a atividade dos homens comuns. Tais seres excepcionais não se deixam influenciar pela reação de seus contemporâneos ao seu trabalho; não precisam de qualquer tipo de estímulo.[15]
Não é esse o caso da ampla classe dos intelectuais por profissão, cujos serviços a sociedade não pode dispensar. Deixemos de lado a questão dos autores de poesias, novelas e peças de teatro sem valor, ou a dos compositores de música popular de segunda categoria; tampouco nos preocupemos em elucidar se seria uma grande perda para a humanidade a não existência dessas obras. Fixemos nossa atenção no fato de que, para transmitir o conhecimento de uma geração a outra e para familiarizar os indivíduos com o conhecimento indispensável à realização de seus planos, há necessidade de livros, manuais e obras de divulgação científica. É pouco provável que as pessoas assumissem o encargo de redigir tais publicações se qualquer um pudesse reproduzi-las. É muito provável que o progresso tecnológico ficasse seriamente retardado se, para o inventor e para os que arcam com as despesas de suas experiências, os resultados obtidos fossem apenas externalidades.
As patentes e os direitos autorais resultam da evolução legal dos últimos séculos. Seu lugar no corpo tradicional dos direitos de propriedade ainda é controvertido. Muitas pessoas fazem restrições à sua existência e contestam a sua legitimidade; consideram-nos como privilégios remanescentes do período rudimentar de sua evolução, quando a proteção legal era concedida aos autores e inventores por meio de privilégios excepcionais outorgados pelas autoridades. Tais direitos são vistos com suspeição, pois só podem ser lucrativos se vendidos por preços monopolísticos.[16] Além disso, a equidade da legislação sobre patentes é contestada com base no fato de recompensar apenas aqueles que deram o toque final que possibilitou a utilização prática de descobrimentos e investigações já realizadas por outras pessoas. Esses precursores ficam de mãos vazias, embora sua contribuição para o resultado final seja, frequentemente, mais substancial do que a do detentor da patente.
Não cabe à cataláxia examinar os argumentos pró ou contra a instituição de patentes e de direitos autorais. Cabe-lhe apenas enfatizar o fato de que esse é um problema de delimitação dos direitos de propriedade e que, se as patentes e os direitos autorais fossem abolidos, os autores e inventores seriam, na sua maior parte, geradores de externalidades ou economias externas como também são chamadas.
Privilégios e quase privilégios As restrições que as leis e as instituições impõem à liberdade de escolher e agir nem sempre são insuperáveis. Há casos em que, em certas condições, podem ser removidas. O privilégio da isenção de obrigações que são impostas a todas as pessoas pode ser concedido a alguns protegidos, seja pela própria lei, seja por um ato administrativo das autoridades encarregadas de fazer cumprir a lei. Alguns outros podem ser suficientemente inescrupulosos a ponto de desafiar a lei, apesar da vigilância das autoridades; sua insolência assegura-lhes um quase privilégio.
Uma lei que ninguém cumpre é ineficaz. Uma lei que não é válida para todos ou a que nem todos obedecem pode propiciar àqueles que estão isentos — seja em virtude da própria lei ou em virtude de sua audácia — a oportunidade de auferir rendas diferenciais ou ganhos monopolísticos.
No que diz respeito à determinação dos fenômenos do mercado, pouco importa que a isenção seja concedida legalmente como um privilégio ou ilegalmente como um quase privilégio.
Tampouco importa se os custos, se houver, em que o indivíduo ou a firma favorecida tenham incorrido a fim de obter o privilégio ou o quase privilégio sejam legais (por exemplo, uma taxa a ser paga pelo licenciado) ou ilegais (por exemplo, propinas pagas a funcionários corruptos). Se uma proibição de importação é atenuada para permitir a entrada de uma certa quantidade de mercadoria, os preços são afetados pela quantidade importada e pelos custos incorridos para adquirir e utilizar o privilégio ou quase privilégio. Mas a estrutura de preços não é afetada pelo fato de a importação ser legal (por exemplo, uma licença concedida a algum grupo privilegiado mediante um sistema de quotas) ou proveniente de um contrabando ilegal.
[1] Ver página …..
[2] Ver Strigl, Die ökonomischen Kategorien und die Organisation der Wirtschaft, Viena, 1923, p. 18 e segs.
[3] Ver Cohen e Nagel, An Introduction to Logic and Scientific Method, Nova Iorque, 1939, p. 316-322.
[4] A maior parte dos reformistas sociais, e entre eles, sobretudo, Fourier e Marx, silencia sobre o fato de que os meios fornecidos pela natureza para satisfazer as necessidades humanas são escassos. Segundo eles, o fato de não haver abundância de todas as coisas úteis é causado simplesmente pelo inadequado sistema capitalista de produção; na “fase superior” do comunismo desaparecerá a escassez. Um eminente autor menchevique, não podendo negar as barreiras que a natureza opõe ao bem-estar humano, denominou a natureza, no melhor estilo marxista, de “o mais impiedoso explorador”. Ver Mania Gordon, Workers Before and After Lenin, Nova Iorque, 1941, p.227 e 458.
[5] As consequências econômicas da compulsão e da coerção sobre os fenômenos de mercado serão tratadas na sexta parte deste livro.
[6] Lorde Clive, Robert Clive, barão de Plassey, 1725-1774, foi o fundador do Império Inglês na Índia. Warren Hastings, 1732-1818, foi o primeiro e mais famoso governador geral da Índia sob a dominação inglesa. (N.T.)
[7] Ver Albert L. Meyers, Modern Economics, Nova Iorque, 1946, p.672.
[8] Essa é a característica geral da democracia, seja ela política ou econômica. Eleições democráticas não garantem que o homem eleito esteja isento de defeitos, mas apenas que a maioria dos eleitores preferem-no aos outros candidatos.
[9] Em relação às mudanças nos elementos que determinam o poder aquisitivo da moeda, ver p. …… Em relação à acumulação e desacumulação de capital, ver p. ……..
[10] Mises se refere à afirmativa feita por lorde Keynes. (N.T.)
[11] Ver página
[12] No final do século XVIII, os governos europeus começaram a promulgar leis visando à conservação de florestas. Entretanto, seria um grave erro atribuir a essas leis qualquer importância na conservação das florestas. Na segunda metade do século XIX, ainda não havia uma estrutura administrativa capaz de fazer com que essas leis fossem cumpridas. Além disso, os governos da Áustria e da Prússia, para não mencionar os estados alemães menores, não tinham suficiente poder para obrigar a aristocracia a respeitá-los. Nenhum funcionário público antes de 1914 teria tido a audácia de causar irritação a um magnata da Boêmia ou da Silésia, ou a um Standesherr alemão (aquele cujo feudo tivesse sido anexado a uma dos estados soberanos do império). Esses príncipes e condes cuidavam espontaneamente de suas florestas porque estavam seguros quanto à posse de seus domínios e porque procuravam preservar a fonte de suas rendas e o valor venal de suas terras.
[13] Poderia também ser dito que eles consideravam as vantagens a serem obtidas com a conservação do solo e das florestas como benefícios gratuitos a terceiros.
[14] Ver a brilhante análise sobre gastos públicos no livro Economics In One Lesson, de Henry Hazlitt, nova edição, Nova Iorque, 1962, p. 21 e segs. Editado em português pelo Instituto Liberal, sob o título Economia numa única lição, Rio de Janeiro, José Olympio Editora e Instituto Liberal, 1986, p. 17 e segs.
[15] Ver página
[16] Ver página