4. Responsabilidade e iniciativa em empresas comunais
O problema da responsabilidade e da iniciativa em empresas socialistas é estritamente ligado ao problema do cálculo econômico. Trata-se de um fato universalmente aceito que, a exclusão da livre iniciativa e da responsabilidade individual, das quais depende o sucesso das empresas privadas, constitui a mais séria ameaça à organização econômica socialista.[17]
Grande parte dos socialistas silenciosamente ignora esse problema. Já outros acreditam que podem responder a este desafio fazendo uma alusão aos diretores-executivos das empresas. Não obstante o fato de eles, os diretores-executivos, não serem realmente os proprietários dos meios de produção, as empresas sob seu comando prosperam. Logo, argumentam os socialistas, se a sociedade, em vez de os acionistas da empresa, se tornar a proprietária dos meios de produção, então nada terá se alterado. Os diretores-executivos não trabalhariam menos satisfatoriamente para a sociedade do que trabalham para os acionistas.
É necessário aqui se fazer um comparativo entre dois grupos de empresas de sociedade anônima. No primeiro grupo, que consiste primordialmente de pequenas empresas, alguns poucos indivíduos se unem em um empreendimento comum que assume a forma jurídica de uma empresa. Normalmente, eles são os herdeiros dos fundadores da empresa, ou são ex-concorrentes que decidiram se fundir. Neste exemplo, o controle e a administração da empresa está nas mãos dos próprios acionistas ou de pelo menos alguns dos acionistas, que comandam a empresa de acordo com seus próprios interesses; ou nas mãos de acionistas intimamente relacionados, como esposas, filhos etc. São os próprios diretores, na condição de membros do conselho de administração, que exercem a influência decisiva na conduta dos negócios. Tal arranjo não é alterado caso parte do capital social esteja nas mãos de um consórcio financeiro ou de um banco. Neste caso, com efeito, a empresa só se diferencia de uma empresa comercial de capital aberto em sua forma jurídica.
A situação se torna bastante diferente para o caso de grandes empresas, nas quais apenas uma fatia dos acionistas — isto é, os grandes acionistas — participa do controle efetivo da empresa. E eles normalmente possuem tanto interesse na prosperidade da empresa quanto qualquer proprietário. Ainda assim, é perfeitamente possível que os interesses deles sejam diferentes dos interesses da vasta maioria dos pequenos acionistas, que são excluídos da administração, mesmo possuindo a maior fatia do capital social. Vários conflitos de interesse podem ocorrer entre acionistas e diretores, principalmente quando os negócios da empresa são geridos em prol destes últimos. Seja como for, está claro que os verdadeiros detentores do poder nas empresas gerem os negócios de acordo com seus próprios interesses, independentemente de se tais interesses coincidem com os dos acionistas ou não. No entanto, no longo prazo, é do interesse do administrador sério, que deseja uma carreira sólida — e que não está meramente empenhado em obter um lucro passageiro —, representar os interesses de seus acionistas em todas as situações e evitar manipulações que possam trazer-lhes prejuízos. Logo, o sucesso de uma empresa não depende meramente da adoção de motivos éticos. Os interesses econômicos são também essenciais.
A situação se altera por completo quando uma empresa é estatizada. A motivação desaparece com a exclusão dos interesses materiais dos empreendedores privados; e se de algum modo as estatais prosperarem, isso se deve ao fato de elas estarem copiando “práticas de administração” de empresas privadas, ou ao fato de estarem constantemente sendo forçadas a adotar reformas e inovações pelos empreendedores privados de quem elas compram instrumentos de produção e matéria-prima.
Dado que hoje estamos em uma posição que nos permite pesquisar décadas de empreendimentos estatais e socialistas, é algo amplamente reconhecido que não há meios de se adotar mecanismos de estímulo para reformar e aprimorar a produção em empresas socialistas, que elas não são capazes de se ajustar às constantes alterações na demanda, e que, em suma, elas são um membro morto em um organismo econômico. Todas as tentativas de dar vida a elas até hoje têm sido em vão. Supunha-se que uma reforma no sistema de remuneração poderia alcançar o objetivo desejado. Se os administradores destas empresas estivessem interessados nos seus rendimentos, imaginava-se que eles então estariam em uma posição comparável àquela do administrador de grandes empresas. Esse foi um erro fatal. Os administradores de grandes empresas estão ligados aos interesses das empresas que eles administram de uma maneira totalmente diferente daquela que impera em empresas estatais. Eles ou já são proprietários de uma considerável fatia das ações da empresa ou esperam se tornar no devido tempo. Ademais, eles estão na posição de obter lucros por meio de especulação das ações da empresa. Eles têm a perspectiva de legar seus cargos — ou ao menos garantir parte de sua influência — para seus herdeiros. O tipo de administrador responsável pelo sucesso de empresas de sociedade anônima não se assemelha em nada ao de um complacente diretor-executivo semelhante a um funcionário público em sua mentalidade e experiência; ao contrário, tal administrador é necessariamente um gerente profissional, um empreendedor e homem de negócios que está ele próprio, na condição de acionista, interessado no bem da empresa. E é exatamente esse tipo de administrador que toda a estatização tem o objetivo de excluir.
Em um contexto socialista, de nada adianta recorrer a estes argumentos para garantir que uma ordem econômica construída sobre fundamentos socialistas terá sucesso. Todos os sistemas socialistas, inclusive aquele de Karl Marx e seus apoiadores ortodoxos, partem da suposição de que, em uma sociedade socialista, um conflito entre os interesses do indivíduo e do coletivo jamais poderá surgir. Todos irão agir com total interesse em dar o seu melhor, pois ele participa da produção de toda a atividade economia. A óbvia objeção de que o indivíduo está muito pouco preocupado em determinar se ele próprio é diligente e entusiástico, e que é da maior importância para ele que todos os outros o sejam, é algo completamente ignorado por eles. Quando muito, é insuficientemente abordado. Eles acreditam que podem construir uma economia socialista tendo por base apenas o Imperativo Categórico. O quão suave é a intenção deles em proceder desta maneira foi bem explicitado por Kautsky quando ele diz, “Se o socialismo é uma necessidade social, então é a natureza humana, e não o socialismo, quem deve se reajustar às necessidades caso os dois venham a colidir.”[18] Isso nada mais é do que uma absoluta quimera.
Porém, mesmo se por um momento concedermos que tais expectativas utópicas possam realmente se materializar, que cada indivíduo em uma sociedade socialista irá se empenhar com o mesmo fervor com que se empenha hoje em uma sociedade na qual ele está sujeito à pressão da livre concorrência, ainda há o problema de se mensurar o resultado da atividade econômica em uma economia que não permite qualquer tipo de cálculo econômico. Não podemos agir de maneira racionalmente econômica se estamos em uma situação que não nos permite entender o que é agir de modo economicamente racional.
Uma frase popular afirma que, se os trabalhadores de empresas estatais pensarem menos burocraticamente e mais comercialmente, tais empresas irão funcionar tão bem quanto empresas privadas. Se os principais cargos forem ocupados por mercadores, a renda crescerá aceleradamente. O problema é que “mentalidade comercial” não é algo externo, algo que pode ser arbitrariamente transferido. As qualidades de um comerciante não dependem de aptidões inatas e nem são adquiridas por meio de estudos em uma escola de comércio ou por meio do trabalho em um estabelecimento comercial. Tampouco dependem de ele já ter sido um homem de negócios durante algum tempo. A atitude e a vivacidade comercial de um empreendedor surge de sua posição no processo econômico; porém, ela é perdida quando ele sai desse ramo.
Quando um homem de negócios bem sucedido é nomeado gerente de uma empresa estatal, ele ainda pode trazer consigo alguma experiência de sua atividade anterior e, com isso, ser capaz de fazer proveitoso uso dela por algum tempo. No entanto, com sua entrada na atividade estatal, ele deixa de ser um comerciante e se torna uma burocrata igual a qualquer outro funcionário público que ganhou uma sinecura no setor estatal. Não é o conhecimento de regras de contabilidade, de organização empresarial ou do estilo de comunicação comercial que fazem de um indivíduo um bom comerciante, mas sim sua posição representativa no processo de produção, o qual permite a identificação entre seus interesses e os da empresa. Otto Bauer [proeminente pensador marxista e líder Partido Social-Democrata Austríaco] não está apresentando nenhuma solução quando propõe, em sua mais recente obra publicada, que os diretores do Banco Central Nacional, para os quais será concedido o comando do processo econômico, sejam nomeados por um conselho diretor, do qual também participariam representantes do sindicato dos professores do ensino médio.[19] Assim como os filósofos de Platão, os diretores nomeados podem até ser os mais brilhantes e sábios de sua categoria, mas eles não podem se portar como mercadores ocupando cargos de comando de uma sociedade socialista, mesmo que eles já tenham sido mercadores anteriormente.
Trata-se de uma reclamação geral o fato de que a administração de empresas estatais não possui iniciativa. Os socialistas creem que isso pode ser remediado por meio de mudanças na organização. Trata-se de outro erro atroz. A administração de uma empresa socialista não pode ser inteiramente colocada nas mãos de um único indivíduo, pois sempre haverá uma constante suspeita de que ele irá tirar proveito de tal situação e, com isso, permitir que seus erros que inflijam pesados danos à sociedade. Por outro lado, se as decisões importantes tornarem-se dependentes dos votos de comitês, ou do consentimento de importantes funcionários do governo, então se está impondo limitações na iniciativa deste indivíduo. Comitês raramente são propensos a introduzir inovações ousadas.
A ausência de livre iniciativa nas empresas estatais decorre não de uma ausência de organização, mas sim do fato de isso ser algo inerente à natureza desse tipo de organização. Não se pode permitir que um empregado tenha a liberdade de organizar livremente os fatores de produção, por mais alto que ele esteja no escalão da burocracia. A tentação para tirar vantagem da situação será enorme. Quanto mais acentuado for o seu interesse material na consecução de suas atribuições, menor será a possibilidade de a ele ser designada tal tarefa. Pois, na prática, ele poderá no máximo ser moralmente responsabilizado pelas perdas geradas. Ele não terá como restituir seus erros. Portanto, no socialismo, as fraquezas éticas são justapostas às oportunidades de ganhos materiais.
Já sob um arranjo liberal, o dono da propriedade arcará ele próprio com a responsabilidade, pois ele será o principal atingido pelo prejuízo de ter conduzido seus negócios imprudentemente. É precisamente neste quesito que existe uma percuciente diferença entre o modo de produção liberal e o modo de produção socialista.
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[17] Cf. Vorläufiger Bericht der Sozialisierungskommission über die Fragse der Sozialisierung des Kohlenbergbaues, concluído em 15 de fevereiro de 1919 (Berlin, 1919), p. 13.
[18] Cf. Karl Kautsky, Prefácio de “Atlanticus” [Gustav Jaeckh], Produktion und Konsum im Sozialstaat (Stuttgart: J.H.W. Dietz, 1898), p. 14.
[19] Cf. Otto Bauer, Der Weg zum Sozialismus (Vienna: Ignaz Brand, 1919), p. 25.