O cálculo econômico sob o socialismo

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5. As mais recentes doutrinas socialistas e o problema do cálculo econômico
Desde que os recentes eventos ajudaram os partidos socialistas a obterem poder na Rússia, na Hungria, na Alemanha e na Áustria, e consequente fizeram com que a implementação de um programa socialista de estatização se tornasse uma questão atual,[20] escritores marxistas começaram eles próprios a abordar com mais detalhes os problemas da regulação da economia socialista. Porém, mesmo hoje eles ainda evitam a questão crucial, deixando que ela seja resolvida pelos “utopistas”. Eles próprios preferem confinar sua atenção a tudo o que deve ser feito no futuro imediato. E é isso que eles sempre fizeram: estão eternamente elaborando programas sobre o caminho para o socialismo e não sobre o socialismo em si próprio. A única conclusão possível a ser obtida destes escritos é que tais escritores não estão sequer conscientes do problema maior, que é exatamente o problema do cálculo econômico em uma sociedade socialista.

Para Otto Bauer, a estatização dos bancos é o último e decisivo passo rumo ao programa socialista de estatização. Se todos os bancos forem estatizados e amalgamados em um único banco central, então seu conselho administrativo passará a ser “a suprema autoridade econômica, o principal órgão administrativo de toda a economia. Somente por meio da estatização dos bancos terá a sociedade o poder de regular sua mão-de-obra de acordo com um plano, e de distribuir seus recursos racionalmente entre os vários setores da produção de modo a adaptá-los às necessidades da nação”.[21]

Bauer não está discutindo os arranjos monetários que irão prevalecer na economia socialista após a conclusão da estatização dos bancos. Assim como outros marxistas, ele está tentando mostrar quão simples e óbvio será o processo de transição das atuais condições vigentes em uma economia capitalista para a futura ordem socialista. “Basta transferir para os representantes da nação o poder que hoje é exercido pelos acionistas dos bancos por meio dos Conselhos Administrativos que eles elegem”[22] para que se possa estatizar os bancos e, com isso, assentar o último tijolo na construção do socialismo.

Bauer deixa seus leitores completamente ignorantes do fato de que a natureza dos bancos é totalmente alterada nesse processo de estatização e fusão em um único banco central. Assim que os bancos se fundirem em um único Banco, toda a sua essência será inteiramente transformada; eles passarão a poder emitir crédito sem qualquer restrição.[23] Consequentemente, o sistema monetário como o conhecemos hoje desaparecerá por completo. Quando, no mais, o único banco central de uma sociedade — a qual já está completamente socializada — for estatizado, as transações de mercado irão desaparecer e todas as trocas comerciais por meio da moeda serão abolidas. Ao mesmo tempo, o Banco deixa de ser um banco e suas funções específicas são extintas, pois não mais há lugar para ele nesta sociedade. Pode até ser que o nome “Banco” seja mantido, que o Supremo Conselho Econômico da economia socialista passe a ser chamado de Conselho de Diretores do Banco, e que eles façam suas reuniões em um edifício anteriormente ocupado por um banco. Mas ele não mais é um banco, ele não cumpre nenhuma daquelas funções que um banco realiza em um sistema econômico baseado na propriedade privada dos meios de produção e no uso de um meio geral de troca — o dinheiro. Ele não mais distribui qualquer tipo de crédito, pois uma sociedade socialista faz com que o crédito inevitavelmente se torne impossível.

O próprio Bauer não nos diz o que é um banco, porém ele começa seu capítulo sobre a estatização dos bancos com a seguinte frase: “Todo o capital disponível flui para um fundo comum nos bancos”.[24] Como marxista, não deveria ele suscitar a pergunta sobre quais serão as atividades dos bancos após a abolição do capitalismo?

Todos os outros escritores que já abordaram os problemas da organização da economia socialista são também culpados de confusões similares. Eles não percebem que as bases do cálculo econômico são removidas pela exclusão do mecanismo de precificação e de trocas, e que algo deve ser colocado em seu lugar, caso se deseje que toda a economia não seja abolida e disso não surja um caos desesperador. As pessoas acreditam que instituições socialistas irão se desenvolver sem dificuldades e sem grandes cerimônias a partir das instituições de uma economia capitalista. Mas isso, em absoluto, irá ocorrer. E tudo se torna ainda mais grotesco quando se fala de bancos, gerenciamento de bancos etc. em uma economia socialista.

Referências às condições que ocorreram na Rússia e na Hungria sob domínio soviético nada provam. O que ocorre lá nada mais é do que um retrato da destruição de uma vigente ordem de produção social, a qual foi substituída por uma economia fechada baseada na sociedade camponesa. Todos os setores da produção dependentes da divisão social do trabalho se encontram em um estado de total dissolução. O que está ocorrendo sob o domínio de Lênin e Trotsky é pura destruição e aniquilação.

Se, como asseguram os liberais, o socialismo inevitavelmente deixa tais consequências em seu rastro, ou se, como respondem os socialistas, tais consequências são apenas resultado do fato de que a República Soviética está sendo atacada de fora, é uma questão que para nós não tem importância dentro do contexto aqui abordado. O que tem de ser estabelecido é o fato de que a comunidade socialista soviética nem sequer começou a discutir o problema do cálculo econômico, tampouco possui a intenção de fazê-lo. Pois nos lugares da Rússia Soviética onde bens ainda são produzidos para serem vendidos no mercado — não obstante as proibições governamentais —, tais bens ainda são valorados em termos de dinheiro, pois ainda existe ali a propriedade privada dos meios de produção, e os bens são vendidos em troca de dinheiro. Nem mesmo o governo pode negar a necessidade, a qual ele próprio confirma ao aumentar a quantidade de dinheiro em circulação, de manter um sistema monetário por um período de tempo suficiente para, no mínimo, efetuar o período de transição.

Que a essência do problema a ser enfrentado pela Rússia Soviética ainda não tenha vindo à luz é algo perfeitamente comprovado pelas declarações de Lênin contidas em seu ensaio Die nächsten Aufgaben der Sowjetmacht. Nas deliberações do ditador há a recorrente ideia de que a mais urgente e imediata tarefa do comunismo russo é “a organização das escriturações contábeis e o controle daquelas empresas das quais os capitalistas já foram expropriados, bem como de todas as outras empresas da economia.”[25] Lênin continua longe de entender que há um problema inteiramente novo com o qual ele está lidando, problema esse que é impossível de ser solucionado por meio dos instrumentos tradicionais da cultura “burguesa”. Como um verdadeiro político, ele não se preocupa com as questões que vão um pouco mais além do seu nariz. Ele ainda se encontra rodeado de transações monetárias, e não percebe que, com a progressiva socialização, o dinheiro também irá necessariamente perder a sua função de meio de troca de uso geral, pois, com a abolição da propriedade privada, as trocas também desaparecerão.

A implicação contida naquela frase de Lênin é a de que ele gostaria de reintroduzir na economia soviética as técnicas contábeis “burguesas”, as quais só podem ocorrer em um ambiente monetário. Consequentemente, ele também deseja fazer com que “especialistas burgueses” sejam novamente elevados a um estado de graça.[26] De resto, Lênin é tão ignorante quanto Bauer do fato de que, em uma economia socialista, as funções de um banco são inconcebíveis considerando-se seu atual formato. Ele deseja ir ainda mais longe na “estatização dos bancos”, implementando “uma transformação completa dos bancos, fazendo com que eles se tornem o ponto nodal do sistema socialista de contabilidade social.”[27]

As ideias de Lênin sobre o sistema econômico socialista, o qual ele está se esforçando para implementar sobre seu povo, são amplamente obscuras.

O estado socialista só pode surgir como uma rede de comunas produtoras e consumidoras, as quais diligentemente registram sua produção e consumo, efetuam seu trabalho de maneira parcimoniosa, elevam a produtividade de sua mão-de-obra ininterruptamente e, assim, alcançam a possibilidade de reduzir as horas de trabalho para sete ou seis ou até menos horas por dia.[28] […]

Cada vilarejo representa uma comuna produtora e consumidora que tem o direito e a obrigação de aplicar a legislação geral soviética à sua própria maneira (‘à sua própria maneira’ não no sentido de sua violação, mas sim no sentido da variedade de suas formas de realização), e de solucionar à sua própria maneira o problema de como calcular a produção e a distribuição dos produtos.[29]

“As mais importantes comunas devem e irão servir como educadoras, professoras e líderes estimulantes para as mais atrasadas.” Os sucessos das principais comunas têm de ser difundidos em todos os seus detalhes para assim servirem de bom exemplo. As comunas que “mostrarem bons resultados” devem ser imediatamente premiadas “com uma redução no dia de trabalho e com um aumento nos salários, e permitindo que se dê mais atenção a bens e valores culturais e estéticos.”[30]

Podemos deduzir que o ideal de Lênin é uma sociedade na qual os meios de produção não são de propriedade de alguns distritos ou municipalidade, e nem mesmo dos trabalhadores das empresas, mas sim de todo o público. Seu ideal é socialista e não sindicalista. Tal contradição não precisa ser especialmente enfatizada para um marxista como Lênin — afinal, tal programa, embora não seja estranho para o Lênin teorista, é bastante estranho para o Lênin estadista, que é o líder da revolução sindicalista camponesa russa. No entanto, por ora, estamos nos concentrando no escritor Lênin, e podemos considerar seus ideais separadamente, sem nos deixarmos afetar pelo retrato da fria realidade.

De acordo com o Lênin teorista, cada grande empresa agrícola e industrial é um membro da grande comunidade do trabalho. Aqueles que são ativos nessa comunidade têm o direito a um governo autônomo; eles exercem uma profunda influência na direção da produção e, de novo, na distribuição dos bens que lhes são especificados para consumo. No entanto, dado que a mão-de-obra é propriedade de toda a sociedade, e como seu produto também pertence à sociedade, a consequência é que os trabalhadores não controlam sua distribuição. Logo, a pergunta torna-se inevitável: como o cálculo econômico será feito em uma comunidade socialista organizada desta forma? Lênin nos fornece uma resposta totalmente inadequada ao apelar novamente às estatísticas.

Temos de levar a estatística às massas e torná-la popular, de modo que a população ativa irá gradualmente aprender por conta própria a perceber quanto e qual tipo de trabalho tem de ser realizado, e quanto e qual tipo de recreação deve ser implementado, de modo que a comparação dos resultados industriais das comunas individuais se torne objeto de educação e interesse geral.[31]

Baseando-se nestas escassas alusões, é impossível concluir o que Lênin entende por estatística, e tampouco se ele está pensando em uma computação monetária ou in natura. Em todo caso, temos de voltar ao que já foi dito sobre a impossibilidade de se determinar preços monetários dos bens de produção em uma economia socialista e sobre as dificuldades que impedem a valoração in natura.[32] A estatística só seria aplicável ao cálculo econômico se ela pudesse ir além do cálculo in natura, cuja inadequação a esse propósito já foi demonstrada. Ela é naturalmente impossível de ser utilizada onde nenhuma relação de troca entre bens no processo de transação comercial é formada.

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[20] [O leitor deve ser lembrar que Mises está escrevendo em 1920]

[21] Cf. Otto Bauer, Der Weg zum Sozialismus (Vienna: Ignaz Brand, 1919), p. 26 f.

[22] Cf. Otto Bauer, Der Weg zum Sozialismus (Vienna: Ignaz Brand, 1919), p. 25.

[23] Cf. Mises, Theorie des Geldes und der Umlaufsmittel (Munich and Leipzig: Duncker & Humblot, 1912), p. 474 ff. [Ver a tradução para o inglês The Theory of Money and Credit (Indianapolis: Liberty Classics, 1980), p. 411 da edição de 1980.]

[24] Cf. Otto Bauer, Der Weg zum Sozialismus (Vienna: Ignaz Brand, 1919), p. 24 f.

[25] Cf. V.I. Lenin, Die nächsten Aufgaben der Sowjetmacht (Berlin: Wilmersdorf, 1919), pp. 12 f., 22ff. [English translation, The Soviets at Work]

[26] Cf. V.I. Lenin, Die nächsten Aufgaben der Sowjetmacht (Berlin: Wilmersdorf, 1919), pp. 15. [English translation, The Soviets at Work.]

[27] Cf. V.I. Lenin, Die nächsten Aufgaben der Sowjetmacht (Berlin: Wilmersdorf, 1919), pp. 21 and 26. [English translation, The Soviets at Work.] Ver também Bukharin, Das Programm der Kommunisten (Zurich: no pub., 1918), pp. 27 ff.

[28] Cf. V.I. Lenin, Die nächsten Aufgaben der Sowjetmacht (Berlin: Wilmersdorf, 1919), pp. 24 f.. [English translation, The Soviets at Work.]

[29] Cf. V.I. Lenin, Die nächsten Aufgaben der Sowjetmacht (Berlin: Wilmersdorf, 1919), pp. 32. [English translation,The Soviets at Work.]

[30] Cf. V.I. Lenin, Die nächsten Aufgaben der Sowjetmacht (Berlin: Wilmersdorf, 1919), pp. 33. [English translation, The Soviets at Work.]

[31] Cf. V.I. Lenin, Die nächsten Aufgaben der Sowjetmacht (Berlin: Wilmersdorf, 1919), pp. 33. [English translation, The Soviets at Work.]

[32] Neurath também imputa grande importância à estatística na concepção do plano econômico socialista. Otto Neurath (Durch die Kriegswirtschaft zur Naturalwirtschaft [Munich: G.D.W. Callwey, 1919], pp. 212 et seq.).

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Ludwig von Mises
Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico. Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política. Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico. Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de 'praxeologia'.

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