Capítulo 6. Materialismo
1. Duas Variantes de Materialismo
O TERMO “materialismo”, tal como aplicado no discurso contemporâneo, tem duas conotações inteiramente diferentes.
A primeira conotação se refere a valores; caracteriza a mentalidade daqueles que almejam apenas riqueza material, satisfações corpóreas e prazeres sensuais.
A segunda é ontológica. Ela representa a doutrina de que todos os pensamentos, ideias, julgamentos de valor e vontades humanas são fruto dos processos físicos, químicos e fisiológicos que ocorrem no corpo humano. Consequentemente, materialismo, neste sentido, nega a importância da timologia e das ciências da ação humana, tanto da praxeologia quanto da história; apenas as ciências naturais são científicas. Neste capítulo, lidaremos apenas com esta segunda conotação.
A tese materialista nunca foi provada ou particularizada, até o momento. Os materialistas não apresentaram mais que meras analogias e metáforas. Eles compararam o funcionamento da mente humana com a operação de uma máquina ou com os processos fisiológicos; as duas analogias são insignificantes e nada explicam.
Uma máquina é um aparato construído pelo homem. É a realização de um projeto, e funciona exatamente de acordo com o intento de seus autores. O que produz o produto de sua operação não é algo dentro dela, mas o propósito que o construtor queria atingir através da sua construção. Quem cria o produto não é a própria máquina, mas o seu construtor e o seu operador. Atribuir a uma máquina qualquer atividade é antropomorfismo e animismo. A máquina não tem qualquer controle sobre o seu funcionamento. Ela não se move; é colocada e mantida em movimento pelos homens. É uma ferramenta morta, que é utilizada pelos homens e volta a ficar imóvel assim que cessam os efeitos do impulso do operador. O que o materialista que recorre à metáfora da máquina tem que explicar, em primeiro lugar, é: quem construiu esta máquina humana, e quem a opera? Em quais mãos ela serve como ferramenta? É difícil ver como qualquer outra resposta poderia ser dada a esta pergunta além de: foi o Criador.
Costuma-se chamar um aparelho ou dispositivo automático de “auto-agente”.[1] Esta expressão também é uma metáfora. Quem calcula não é a máquina de calcular, mas o seu operador, através de uma ferramenta projetada engenhosamente por um inventor. A máquina não tem inteligência; ela não pensa e não escolhe os fins nem recorre a meios para realizar os fins que estão sendo buscados. Isto tudo sempre é feito por homens.
A analogia fisiológica é mais sensata que a analogia mecânica. O ato de pensar está inseparavelmente associado a um processo fisiológico. Na medida em que a tese fisiológica apenas enfatiza este fato, ela não é metafórica; porém ela diz muito pouco. Pois o problema é exatamente este: não sabemos nada a respeito dos fenômenos fisiológicos que constituem o processo responsável por produzir poemas, teorias e projetos. A patologia fornece uma grande quantidade de informações sobre a diminuição ou a destruição total das faculdades mentais resultantes de danos cerebrais. A anatomia fornece uma quantidade igualmente grande de informação a respeito da estrutura química das células do cérebro e de seu comportamento fisiológico. Mas, apesar dos avanços no conhecimento fisiológico, não sabemos mais a respeito da questão mente/corpo do que os antigos filósofos que pela primeira vez começaram a refletir sobre ela. Nenhuma das doutrinas propostas por eles foi provada ou desmentida pelos conhecimentos fisiológicos recém-adquiridos.
Os pensamentos e ideias não são fantasmas; são reais. Embora intangíveis e imateriais, eles são fatores responsáveis por produzir mudanças no reino das coisas tangíveis e materiais. São gerados por algum processo desconhecido que ocorre dentro do corpo de um ser humano e podem ser observados e compreendidos apenas através de um processo semelhante, no corpo de seu autor ou nos corpos de outros seres humanos. Podem ser chamados de criativos e originais, na medida em que o impulso gerado por eles e as mudanças que originam dependem de seu surgimento. Podemos apurar o que desejamos saber acerca da vida de uma ideia e os efeitos de sua existência; já sobre sua origem, sabemos apenas que foi engendrada por um indivíduo. Não temos como rastrear sua história além deste ponto. O surgimento de uma ideia é uma inovação, um novo fato que é adicionado ao mundo. Devido à deficiência de nosso conhecimento, ela é, para as mentes humanas, a origem de algo novo, que não existia antes.
O que uma doutrina materialista satisfatória teria que descrever seria a sequência de eventos que ocorreram na matéria para que ela pudesse produzir uma ideia específica. Ela teria que explicar por que as pessoas concordam ou discordam com problemas específicos. Teria que explicar por que um homem consegue resolver um problema que outras pessoas não conseguiram resolver. Nenhuma doutrina materialista, no entanto, conseguiu fazer isso até hoje.
Os defensores do materialismo estão decididos a mostrar a indefensabilidade de todas as outras doutrinas propostas para a solução do problema mente/corpo. Eles se dedicam especialmente ao combate à interpretação teológica. No entanto, a refutação de uma doutrina não prova a sanidade de qualquer outra doutrina que discorde dela.
Talvez a especulação sobre a sua própria origem e natureza seja uma empreitada muito ousada para a mente humana. É possível que, como sustenta o agnosticismo, o conhecimento destes problemas esteja fadado a jamais ser conhecido pelos homens mortais. Mas mesmo que isto seja verdade, não serviria como justificativa para a atitude dos positivistas lógicos, que condenam estes questionamentos por serem absurdos e sem sentido. Uma pergunta não é absurda apenas por não poder ser respondida satisfatoriamente pela mente humana.
2. A Analogia da Secreção
Uma célebre formulação da tese materialista afirma que os pensamentos têm com o cérebro uma relação semelhante à que a bile tem com o fígado ou a urina com os rins.[2] Via de regra, os autores materialistas são mais cautelosos em suas declarações. Essencialmente, no entanto, tudo o que falam equivale a este dito provocador.
A fisiologia distingue entre a urina que tem uma composição química normal e outros tipos de urina. Variações em relação à composição normal se devem a determinadas variações na condição física do corpo ou no funcionamento dos órgãos do corpo, em relação ao que é considerado normal e saudável. Estas variações também seguem um padrão regular. Um estado específico anormal ou patológico do corpo se reflete numa alteração correspondente na composição química da urina. A assimilação de determinados alimentos, bebidas e drogas provoca respectivos fenômenos na composição da urina. Em pessoas saudáveis, aquelas que costumam ser chamadas de normais, a urina tem, dentro de certos limites determinados, a mesma natureza química.
Com pensamentos e ideias não ocorre o mesmo. Não existe, quando se trata deles, normalidade ou desvios da normalidade que sigam um padrão definido. Certos danos ao corpo ou a ingestão de determinadas drogas ou bebidas podem obstruir e atrapalhar a capacidade da mente de pensar. Mas mesmo estes desarranjos não ocorrem de maneira uniforme com todas as pessoas. Pessoas diferentes têm ideias diferentes, e nenhum materialista conseguiu investigar a origem destas diferenças até chegar a fatores que possam ser descritos em termos químicos, físicos ou fisiológicos. Qualquer referência às ciências naturais e aos fatores materiais torna-se vão quando perguntamos por que determinadas pessoas votam no Partido Republicano e outras para o Democrata.
Até agora, pelo menos, as ciências naturais não conseguiram descobrir quaisquer traços corpóreos ou materiais a cuja presença – ou ausência – se possa atribuir o conteúdo das ideias e pensamentos. Na realidade, o problema da diversidade no conteúdo das ideias e dos pensamentos nem mesmo é abordado pelas ciências naturais. Elas lidam apenas com objetos que afetam ou modificam a intuição sensória. Mas ideias e pensamentos não afetam diretamente a sensação. O que os caracteriza é o significado — e os métodos das ciências naturais são inadequados para a compreensão do significado.
As ideias influenciam umas às outras, fornecem estímulo para o surgimento de novas ideias, suplantam ou transformam outras ideias. Tudo o que o materialismo pode oferecer para o tratamento destes fenômenos é uma referência metafórica para a noção de contágio. A comparação é superficial e não explica nada, no entanto. Doenças passam de um corpo para outro através da migração de germes e vírus. Mas ninguém sabe qualquer coisa a respeito de uma migração de fatores que possa transmitir os pensamentos de um homem para outro.
3. As Implicações Políticas do Materialismo
O materialismo teve sua origem como uma reação contra uma interpretação dualística primeva da natureza essencial e da existência do homem. À luz destas crenças, o homem vivo era formado por duas partes separáveis: um corpo mortal e uma alma imortal. A morte era responsável por dividir estas duas partes; a alma então se afastava do campo de visão dos vivos e continuava a ter uma existência além do alcance dos poderes terrenos, como uma sombra, no reino dos mortos. Em casos excepcionais, era permitido a uma alma reaparecer por um curto período de tempo no mundo sensível dos vivos, ou para um homem ainda vivo visitar rapidamente os campos dos mortos.
Estas representações um tanto rústicas foram sublimadas por doutrinas religiosas e pela filosofia idealística. Embora as descrições primitivas de um reino de almas e as atividades de seus habitantes não sejam capazes de se sustentar diante de um exame crítico e possam ser facilmente expostas ao ridículo, é impossível, tanto para o raciocínio apriorístico quanto para as ciências naturais, refutar de maneira convincente os princípios refinados dos credos religiosos. A história pode destruir boa parte das narrativas históricas da literatura teológica, porém uma crítica superior não afeta o cerne da fé. A razão não pode nem provar nem desmentir as doutrinas religiosas essenciais.
No entanto o materialismo, tal como se desenvolveu na França do século XVIII, não era apenas uma doutrina científica. Também pertencia ao vocabulário dos reformadores que combateram os abusos do ancien régime. Os prelados da Igreja na França monárquica eram, com poucas exceções, membros da aristocracia; a maioria deles estava mais interessada nas intrigas da corte do que no desempenho de suas funções eclesiásticas. Sua merecida impopularidade tornou populares as tendências antirreligiosas.
Os debates a respeito do materialismo teriam cessado em meados do século XIX se nenhuma questão política estivesse envolvida. As pessoas teriam percebido que a ciência contemporânea não contribuiu em nada para a elucidação ou análise dos processos fisiológicos que geram ideias definidas, e que é duvidoso se os cientistas futuros serão mais bem-sucedidos nesta tarefa. O dogma materialista teria sido visto como uma conjectura sobre um problema cuja solução satisfatória parecia, ao menos naquele momento, além do alcance da busca humana pelo conhecimento. Seus defensores não estariam mais numa posição que lhes permitisse considerá-lo uma verdade científica irrefutável, e não poderiam acusar seus críticos de obscurantismo, ignorância e superstição. O agnosticismo acabaria por substituir o materialismo.
No entanto, na maioria dos países europeus e latino-americanos, as igrejas cooperaram, pelo menos até certo ponto, com as forças que se opunham ao governo representativo e todas as instituições que lutavam pela liberdade. Nestes países era praticamente impossível evitar o ataque à religião quando se tinha como meta a implementação de um programa que correspondia, no geral, aos ideais de Jefferson e Lincoln. As implicações políticas da controvérsia acerca do materialismo evitaram que ele desaparecesse. Impulsionados não por considerações epistemológicas, filosóficas ou científicas, mas por motivos puramente políticos, fez-se uma tentativa desesperada de salvar o slogan “materialismo”, tão conveniente para o cenário político. Enquanto o tipo de materialismo que havia florescido até meados do século XIX recuou para o segundo plano, abrindo caminho para o agnosticismo e tornando impossível a sua regeneração por meio de escritos rústicos e ingênuos como os de Haeckel, um novo tipo de materialismo foi desenvolvido por Karl Marx, sob o nome de materialismo dialético.
[1] “Selfacting“, no original. (N.T.)
[2] C. Vogt, Köhlerglaube und Wissenschaft (2ª ed., Giessen, 1855), p. 32.