A Ética da Redistribuição

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Apêndice – AS POTENCIALIDADES DA REDISTRIBUIÇÃO PURA

  • Redistribuição de renda pré ou pós-tributada?
  • Um cálculo a grosso modo
  • A significância da renda individual
  • A redistribuição real é oblíqua

AS POTENCIALIDADES DA REDISTRIBUIÇÃO PURA

O propósito deste apêndice é explorar as potencialidades da redistribuição pura da renda.  A seguir, definimos redistribuição pura.  Digamos que r é uma renda máxima, e R é o número de rendas que excedem esse máximo; digamos que o montante total de tais rendas é Rr + E.  A E, ou a soma da qual essa classe de detentores de renda pode ser privada ao serem deixados, cada um deles, de posse de uma renda montando ar, chamamos de excedente acima do teto.  Digamos que m é uma renda mínima, e M é o número de rendas abaixo desse mínimo.  Digamos que o total dessas rendas é Mm — F.  F é a soma que deveria ser adicionada para elevar essas rendas até o nível mínimo, e que chamamos de falta.  A redistribuição pura, então, è preencher a falta F aplicando-se a ela recursos do excedente E.  Nosso intento, aqui, é discutir o equacionamento de F com E. 

A redistribuição pura, como acima definida, parece ser a que merece maior sanção dentro da estrutura social do sentimento pró-redistribuição, na medida em que este desaprova, ao mesmo tempo, a insuficiência e o excesso de renda.  Quando proferi as palestras, pareceu-me relevante investigar se, na realidade social de hoje, a correção da renda “excessiva” poderia sanar as rendas “insuficientes”.  O resultado dos cálculos feitos, a grosso modo, com essa finalidade, é aludido nas palestras e justificado na exposição a seguir.  Mas sinto-me no dever de dizer que, tendo, desde então, retomado repetidamente esse estudo, cada vez mais tomo consciência das dificuldades concomitantes a qualquer discussão da distribuição atual.  Não podemos afirmar com segurança que sabemos o que é, de fato, a redistribuição da renda (e aqueles que nos fornecem os dados recomendam cautela no assunto, raramente vista); tampouco podemos afirmar que temos uma clara noção de “renda individual”.  As dificuldades revelar-se-ão no decorrer desta discussão.  Aliás, o seu gradual desdobramento bem pode ser a principal justificativa desta investigação.  Esta deve ser uma discussão, ao mesmo tempo, concreta e de ideias.  Concreta, na medida em que a basearemos em dados reais — a saber, rendas do Reino Unido de 1947-48, dados constantes no 91° Relatório da Comissão de Receita Interna.  Ficamos em dívida com o Diretor de Estatística e Inteligência do Departamento de Receita Interna, por nos fornecer uma complementação desses dados, e por sua inestimável ajuda para que os interpretássemos.  O Senhor F. A. Cockfield, no entanto, não tem qualquer responsabilidade por erros na nossa, lógica ou nossas conclusões. [1]

A discussão, por outro lado, é de ideias, no sentido de que supomos que, qualquer que seja a redistribuição que escolhermos, essa não apresentará qualquer dificuldade prática, nem terá qualquer efeito sobre o volume de atividade. [2]

Nossa tarefa, então, parece muito simples.  Escolhemos uma renda mínima, nosso piso.  A essa, chamaremos de p.  Sabemos quantas rendas estão abaixo desse piso, isto é, conhecemos P; conhecemos o agregado de tais rendas e, portanto, o quão abaixo esse agregado está de Pp.  Conhecemos, então, a nossa falta F.  Com isso, sabemos o quanto queremos que E seja, já que este deve ser igual a F.  Podemos tentar diversos valores de r, diferentes tetos, até encontrarmos um que resulte no excedente desejado.

 

REDISTRIBUIÇÃO DE RENDA PRÉ OU PÓS-TRIBUTADA?

Podemos prosseguir rumo ao nosso objetivo por dois caminhos diferentes.  Quando pensamos em redistribuição, estamos propensos a pensar que, de alguma forma, ela ocorre antes da tributação, como se fosse recolhido um imposto especial sobre as rendas que aumentam, para achatá-las, e só então incidissem sobre elas os demais impostos.  Mas, nesse caso, o fisco sofre uma grande perda.  Vamos esclarecer bem isso: das rendas R, que estão acima do teto, o fisco toma, em impostos e taxas suplementares uma soma total, T. Se tais rendas forem reduzidas ao teto r, o fisco delas obterá somente o que as rendas r pagam.  Do excedente todo que terá sido transferido aos que auferem rendas abaixo do piso, ele ficará com, praticamente, nada.  Sua perda será, então, considerável.  Por um cálculo a grosso modo, constata-se que a fixação do teto em £ 2.000 e a redistribuição do excedente poderiam custar ao fisco um terço de sua atual receita de imposto de renda.  Se não quisermos, consequentemente, restringir as atividades do estado, teremos que compensar o fisco dessa perda.

Alguns dirão que, com uma nova distribuição da renda, o estado terá que gastar menos com os menos favorecidos.  Mas, sendo assim, as somas adicionadas às rendas destes não deveriam ser computadas como um ganho líquido, e os serviços que eles perderão devem ser compensados com o seu ganho de renda.  Aliás, se afirmarmos que os serviços que o estado pode cessar de prover, até o montante de sua perda na tributação direta, são serviços que anteriormente beneficiavam os que recebiam da distribuição de renda, na verdade estaremos dizendo que o benefício líquido destes será zero.

Consequentemente, se redistribuirmos o excedente antes da tributação, toca-nos recolher novos impostos sobre as rendas abaixo do teto, para compensar o fisco.  Para evitar essa complicação, parece que o melhor é pensar na redistribuição da renda como ocorrendo logicamente, após terem sido deduzidos os impostos, caso, cronologicamente, ocorra simultaneamente à tributação.  Assim, podemos pensar no nosso piso como um piso de renda líquida, e no nosso teto, como um teto de renda líquida.

 

UM CÁLCULO A GROSSO MODO

Comecemos, então, a nossa empreitada.  Fixamos nosso piso de renda líquida em £ 250, um número conveniente, porque é usado como linha divisória em todas as estatísticas disponíveis.  As perguntas que devemos fazer para determinar a nossa falta são: Quantas rendas pós-tributadas existem abaixo desse piso, a quanto montam, e, portanto, se multiplicadas por £ 250, quanto fica faltando?  Nossa primeira dificuldade, é que a única fonte que temos sobre o número de rendas é o livro azul, que, no entanto, lista somente as rendas acima do limite de isenção.  Temos, assim, para as rendas computadas em 1947-48, um total de 10,5 milhões de rendas abaixo de £ 250, mas acima de £ 120, e que montam a £1.995 milhões, [3]  havendo, portanto, uma falta de £ 630 milhões.

Temos, aqui, um número claro, mas, obviamente, completamente inadequado: ele não leva em conta as rendas que estão dentro do limite de isenção, que, presumidamente, são as que mais necessitam ser elevadas (isso será definido a seguir).  Não conhecemos a quantidade nem o montante agregado de tais rendas.  Consequentemente, não sabemos em quanto temos que aumentar a nossa cifra de £ 630 milhões.  Porém, está claro que esse número nos permite, pelo menos, uma estimativa mínima do excedente a ser obtido das rendas mais elevadas.

Se fixarmos o teto de renda líquida em £ 2.000, obteremos um excedente de £ 630 milhões?  Longe disso.  As rendas pós-tributadas acima de £ 2.000 montaram, no ano considerado, a apenas £ 171 milhões.  Reduzindo cada uma delas a £ 2.000, obteríamos um excedente de não mais de £ 47 milhões.  Da mesma forma, o total das rendas acima de £ 1.000 montou a £ 598 milhões.  Reduzindo isso a £ 1.000 por pessoa, resultaria em £ 216 milhões.

Temos que descer para um teto de £ 500, a fim de obter um excedente de £ 614 milhões, que quase equivale à nossa falta.  A renda líquida agregada dos contribuintes que auferem mais de £ 500 é de £ 1.494 milhões.  O número de pessoas que recebem tal renda é de 1.760 mil.  Uma renda permitida de £ 500 a cada uma delas corresponderia a £ 880 milhões, o que nos deixaria com um excedente de £614 milhões.

Portanto, trabalhando a partir de uma subestimativa evidente da falta a ser preenchida, constatamos que ainda assim a cifra necessária não pode ser obtida com o enxugamento do “excesso de renda”, sem fixar-se um teto muito mais baixo do que qualquer pessoa esteja disposta a considerar. [4]

 

A SIGNIFICÂNCIA DA RENDA INDIVIDUAL

Os resultados seguintes são muito rudimentares, e estimulam o apetite por informações.  Em primeiro lugar, gostaríamos de ter informações mais precisas com relação à real distribuição da renda. [5]  Em segundo lugar, não podemos nos contentar em ignorar o que acontece sob o limite de isenção.  Quantas rendas “subterrâneas” existem que iríamos querer elevar?  Esta pergunta nos força a considerar a natureza dessas pequenas rendas.

Dentre elas encontram-se as rendas dos pensionistas do estado, quer casados ou solteiros, ou aquelas de solteironas que vivem de um pequeno investimento.  Em tais casos, essas rendas sustentam totalmente uma ou duas vidas, talvez até mais.  Mas nessa categoria também estão as rendas dos adolescentes que moram com a família, e as daqueles membros das forças armadas, cujas necessidades vitais são cobertas pela organização à qual pertencem.

Obviamente, não faria sentido elevar para um piso de £ 250 a renda de um adolescente que mora com os pais, e deixar seu pai e sua mãe — possivelmente com filhos menores — no mesmo nível de £ 250.  Esta observação mostra-nos que nossa preocupação real não deve ser a de determinar quantas rendas individuais estão abaixo do limite de isenção, mas, sim, qual o tamanho da população que vive de tais rendas.  Passamos a pensar em termos de grupos sociais.  Da mesma forma, gostaríamos de saber qual é a população total que vive com rendas inferiores a £ 250.

Quando dei as palestras, parecia-me que essas perguntas poderiam ser respondidas usando-se o método residual: as rendas declaradas mostrariam, pelas provisões e deduções requeridas, quantas pessoas eram por elas sustentadas.  Os dados necessários, na época, não estavam convenientemente disponíveis; mas agora estão, graças à feliz iniciativa do Diretor de Estatística da Renda Interna.  Eles encontram-se na tabela 87 do 92° Relatório.

A partir dos dados dessa tabela, parece, pelos meus cálculos, que nada menos de 46 milhões de pessoas são sustentadas pelas 20.750.000 rendas acima do limite de isenção. [6]

Já que, como fomos alertados, o número de dependentes pode estar subestimado, devido à inabilidade das pessoas não sujeitas a tributação em reivindicar todas as isenções que lhes são devidas, parece que somente uma pequena parcela da população (especialmente se deduzidas as forças armadas) deixa de ser considerada por essas rendas.  Portanto, parece apropriado somarmos esse resíduo à faixa de £ 135-250, e tomarmos essa população como um todo.

Parece, portanto, que cometemos um erro bem menor do que acreditávamos ao negligenciar esse grupo.  Façamos isso novamente num novo cálculo, cujo princípio é o seguinte: presumindo que agora conhecemos o número de pessoas sustentadas pelas rendas da faixa de £ 135-250, calculemos, então, em quanto a renda total dessa categoria teria que ser elevada para situar a renda per capita no nível da faixa de £ 250-500.  Na tabela mencionada, encontramos 22,8 milhões de pessoas vivendo de rendas na faixa de £ 250-500; e a rendaper capita antes do imposto chega a £ 136,9, e a £ 130 após tributação.  Na faixa de £ 135-250, encontramos 16,2 milhões de pessoas, e a renda per capita é de £ 104,3 antes do imposto, e de £ 102,5 após tributada.  A equiparação antes da tributação demandaria, pois, uma importância de £ 528 milhões, [7] à qual, naturalmente, alguma coisa deveria ser adicionada, em vista do residual desconsiderado. [8]

 

A REDISTRIBUIÇÃO REAL É OBLÍQUA

Para mim, o resultado mais surpreendente desses cálculos grosseiros, é que as somas envolvidas são ínfimas em relação àquelas que passam pelas mãos do estado.  Fica-se imaginando até que ponto o formidável afluxo de recursos financeiros aos cofres públicos foi, de fato, aplicado a elevar as rendas mais baixas, e se não teríamos alcançado maiores resultados nesse sentido se a redistribuição não tivesse implicado um crescente papel do estado.

Por outro lado, também é surpreendente constatar que mesmo essas somas relativamente pequenas não podem ser obtidas podando-se as rendas mais altas.  Não foi “dos ricos” que se pôde obter as somas demandadas, assim como não foi dos ricos que os recursos para os vastos gastos sociais feitos até hoje puderam ser obtidos.

Basta observar que o total dos recolhimentos atuais em tributação sobre as rendas acima de £ 2.000 (£419 milhões) é inferior aos subsídios dos alimentos, sozinhos, e inferior, até, aos gastos sociais do estado, embora, mesquinhamente, desejemos limitar a noção de gasto social.

Consequentemente, na prática, a redistribuição não é “vertical”, é “oblíqua”; é muito mais uma translação horizontal de rendas do que uma descida vertical, e o elemento da descida vertical desempenha um papel muito mais psicológico do que financeiro.  A ideia de que as somas que passam pelas mãos do estado vêm de cima somente é verdadeira com relação a uma fração muito pequena, e serve para obscurecer o fato de que, em sua maior parte, o poder de compra que é redistribuído vem das mesmas camadas sociais que o recebem via redistribuição.

 

[1] Subsequentemente, aproveitamos também o 92° Relatório.  Preferimos esses “livros azuis”, como são chamados no decorrer desta nota, aos “livros brancos”* de receita e despesa, porque aqueles fornecem dados mais detalhados.

* N.T.- No original, “blue books” e “white books”: relatórios do governo, provavelmente anuários estatísticos, com capa azul e capa branca, respectivamente.

[2] Desconsideramos, aqui, o efeito sobre o investimento.

[3] Os cálculos baseiam-se nos números deste apêndice da tabela 32 do 91° Relatório da Comissão da Receita Interna.

Faixas de renda líquida (£ 1,00)           Números             Renda líquida (£ milhões)

120-150                               2.030.000                        275

150-250                               8.470.000                     1.720

250-500                                8.740.000                     2.950

500-1.000                              1.378.000                        896

1.000-2.000                                 320.000                        427

2.000-4.000                                   58.500                        156

4.000-6.000                                      3.430                         14,6

Acima de 6.000                                     70                           0,4

21.000.000                       6.439

Imposto Pessoal 1.086

Renda Bruta 7.525

[4] Se as rendas determinadas deixam de levar em conta algumas vantagens tidas por aqueles que possuem propriedades ou direitos de posse (públicos ou privados), é um outro ponto.  É óbvio que essas vantagens que não se enquadram na definição de renda tornam-se mais valiosas à medida em que a tributação da renda se torna mais severa.  Na hipótese da redistribuição da propriedade (o que está fora do nosso assunto), as vantagens dos direitos de posse tornar-se-iam da maior importância.

[5] A Grã-Bretanha é, hoje em dia, o país que dispõe de mais e melhores informações.  Ainda assim, o documento Renda e Gasto Nacional admite que uns 13% da renda total auferida pelas pessoas não puderam ser alocados a faixas particulares de renda.  Recentemente, M. Dudley Seers tentou fazer tal alocação.  Pelos seus estudos, constata-se que a incorporação daquele percentual não alteraria muito significativamente a distribuição da renda.

[6] Isso se aplica ao exercício de 1948-49, em que o limite de isenção era de £ 135.  Os detalhes, conforme acho que sejam (em milhares): 10.381 pessoas solteiras e 20.738 pessoas casadas, com um total de 3.480 dependentes e 11.575 filhos menores.

[7] As faixas de renda a que nos referimos aqui são faixas pré-tributação.  No caso de juntar-se grupos, a equiparação pós-tributação parece inconcebível.

[8] O autor pede desculpas por esses esforços ingênuos num campo que pertence, adequadamente, aosexperts. 


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