A tradição praxeológica antes de Mises

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[Extraído do livro Curso Básico de Escola Austríaca]

Após o nascimento oficial da Escola Austríaca com Carl Menger, em 1871, ela encontrou novos desenvolvimentos em Eugen von Böhm-Bawerk e Friedrich Wieser, os dois maiores discípulos de Menger. Mas foi somente no trabalho de Ludwig von Mises que a Escola Austríaca encontrou finalmente a sistematização do seu método distintivo: a Praxeologia.

Conquanto a Praxeologia tenha sido sistematizada por Mises em 1949, em seu tratado econômico Ação Humana, afirma Murray Rothbard que o método praxeológico, isto é, aquele centrado na ação do indivíduo, já era utilizado por economistas anteriores a Mises e considerado o método natural de estudar Economia.[1]

Pode-se definir praxeologia como a ciência que estuda a ação humana, sendo ação humana definida pelo próprio Mises como comportamento propositado.[2] A praxeologia estuda, por conseguinte, o conceito de ação enquanto comportamento propositado e suas implicações formais. Note que a praxeologia investiga o conceito de ação, e não as ações reais, uma vez que isso fugiria ao seu escopo. O escopo da praxeologia é puramente formal e lógico. A praxeologia não estuda as causas e efeitos do comportamento humano histórico; ela não estuda por que alguém faz ou fez alguma coisa. Ela não investiga, por exemplo, os motivos psicológicos que levam um indivíduo a gastar todo o seu dinheiro em uma roupa de marca, nem muito menos os efeitos dessa escolha. Ela investiga o fato formal de que escolhas são feitas e ações são executadas. Ela sabe que todo ser racional empreende ações, sejam elas tolas, sejam elas sábias, e que toda ação pressupõe os mesmos elementos, a saber: valor, propósito, tempo, custo, causalidade, incerteza, escassez etc.

Por isso a praxeologia é uma ciência a priori, ou seja, que não depende da experiência. Antes, a experiência é que depende dela para ser corretamente interpretada. Assim, quando eu vejo alguém agindo, isso pressupõe que eu já sei o que é uma ação. Se eu não soubesse o que é uma ação, eu jamais enxergaria seres agindo, mas apenas corpos se movimentando aleatoriamente. Quando eu vejo pela manhã meu vizinho saindo de casa, eu sei que ele tem algum objetivo, o qual representa a concretização de algum valor, e que ele se utilizará dos meios disponíveis para realizá-lo. Caso eu não fosse eu mesmo um agente e não me guiasse pelo exato mesmo mecanismo interno, baseado em valor, meios e fins, eu jamais enxergaria um indivíduo agindo, mas, novamente, apenas um corpo humano empreendendo movimentos aleatórios no espaço, sem nenhum sentido cognoscível para mim.

Porém, antes de Mises ter genialmente sistematizado esse conhecimento, de modo que agora ele nos pareça tão claro e evidente, outros indivíduos já faziam considerações semelhantes, partindo do pressuposto de que o objeto da Economia era justamente a ação e as escolhas individuais, e não relações objetivas matematizáveis.

Murray Rothbard destaca aquelas que seriam as principais figuras do que ele chama de “tradição praxeológica”[3], a começar pelo economista francês do início do século XIX Jean-Baptiste Say.

Say, na introdução de seu Um Tratado de Economia Política, lamenta o fato de que as pessoas são muito inclinadas a supor que só existem verdades absolutas no reino das matemáticas. Ele insiste em que existem “fatos gerais” nos quais as “ciências morais” se fundamentam. Tais fatos seriam incontestáveis e obtidos a partir de observações universais. Seriam, então, verdadeiros “princípios fundamentais” deduzidos da observação. A partir desses princípios fundamentais, rigorosas deduções seriam feitas e a economia política teria, então, uma base “inamovível”.[4]

Say também aponta que as leis da ciência econômica são estritamente qualitativas e que aplicar à Economia o método matemático resultaria numa simplificação exagerada dos seus princípios e deturparia a análise da ação humana.

Por fim, é igualmente da opinião de Say que a consideração de qualquer evento histórico sob o ponto de vista econômico não deve utilizar métodos matemáticos para explicá-los inteiramente, mas seus elementos contingentes devem ser levados em conta utilizando-se a capacidade de entendimento, que Mises denominou Verstehen. Verstehen é o método que os seres humanos usam para compreender intuitivamente as relações que há entre os acontecimentos dentro da esfera humana. É através da Verstehen, por exemplo, que se pode compreender o que levou aquele indivíduo a gastar todo o seu dinheiro em uma peça de roupa. Tal método, porém, não pertence estritamente ao escopo da ciência praxeológica, embora seja inerente à atividade humana.

Say nos legou importantes observações acerca da questão metodológica em Economia, mas os primeiros economistas a dedicarem, de maneira consciente e específica, atenção ao problema metodológico foram os economistas britânicos de meados do século XIX John E. Cairnes, Nassau W. Senior e John Stuart Mill. Desses três, Rothbard acredita que John Cairnes e Nassau Senior podem ser considerados como protopraxeologistas.[5]

Cairnes concorda com John Stuart Mill em que experimentos controlados são impossíveis no campo das ciências sociais, contudo acrescenta que estas possuem uma enorme vantagem em relação às ciências físicas: enquanto nas ciências físicas os princípios devem ser apreendidos de dados extraídos do mundo externo, nas ciências sociais os princípios já se encontram presentes na nossa própria consciência. Não se pode ter, por exemplo, uma experiência direta, em primeira pessoa, que demonstre a validade das leis da gravitação e do movimento.[6]

Em contraste, diz Cairnes: “O economista já começa com um conhecimento das causas primeiras. Ele se encontra, já no início da sua empreitada, na posição que o físico somente atinge após eras de laboriosa pesquisa”.[7] Em vez de necessitar de processos indutivos para descobrir as causas por trás dos fenômenos econômicos, basta que o economista olhe para si mesmo e perceba que, em todo empreendido, o indivíduo parte de um desejo, em busca de um propósito, e sabe que tomará o caminho mais curto de que tiver conhecimento para atingir o fim almejado. Dessa forma, ao passo que o físico procede por experimentos de laboratório, o economista procede por experimentos mentais (também chamados de Gedankenexperiment).[8]

Cairnes também rejeita a utilização de métodos matemáticos na Economia. “É evidente”, ele diz, “que a disposição das pessoas em sacrificar um tipo de gratificação por outro – sacrificar vaidade por conforto, ou a decência pela fome – não é suscetível de precisa mensuração”.[9] Para ele a ciência econômica trataria de estados mentais, os quais não são passíveis de serem expressos em formas quantitativas exatas.

Nassau Senior, que teria sido, segundo Rothbard, o praxeologista mais importante da época, pensava no mesmo sentido. Antes dele, economistas clássicos como John Stuart Mill teriam proposto que a Economia era uma ciência meramente hipotética e aproximada, e que o homem agiria apenas em direção ao aumento da sua riqueza material. Nassau Senior, porém, ampliou esse escopo acrescentando a busca por riqueza imaterial e satisfação, o que para Rothbard é um princípio apodítico e verdadeiro, baseado na natureza teleológica da ação humana.[10]

Assim como Cairnes, Nassau Senior também distingue as ciências físicas da Economia e outras “ciências mentais” levando em conta que aquelas tiram suas conclusões a partir de observações e hipóteses, ao passo que estas delineiam suas premissas fundamentalmente a partir da consciência.[11]

Rothbard finaliza a sua exposição acerca da tradição praxeológica rememorando um interessante, porém negligenciado, debate metodológico que se deu entre Vilfredo Pareto e o filósofo Benedetto Croce, no começo do século XX, o qual, segundo Rothbard, tinha uma “altamente desenvolvida posição praxeológica”.[12]

Croce inicia o debate censurando Pareto por ter escrito que a teoria econômica seria uma espécie de mecânica. Isso estaria errado porque, em mecânica, um fato é um mero fato, impassível de julgamento. Já em Economia os fatos podem ser avaliados moralmente, conforme juízos de aprovação ou desaprovação. Isso acontece porque o objeto de estudo da Economia não são coisas físicas, mas as ações dos homens, as quais derivam de escolhas conscientes. Croce, com uma mentalidade claramente praxeologista, afirma que não se devem estudar os resultados das ações, e sim as ações mesmas.[13]

Em sua resposta, Pareto reitera a similaridade entre Economia e Física e diz: “Vejo que você emprega o termo valor. Eu não uso mais esse termo, porque não sei o que ele significaria para outras pessoas”.[14] Esse seria um termo vago e complexo. A Economia lidaria com relações entre quantidades de coisas, portanto com relações objetivas, e não relações entre conceitos mentais. Dizer que a Economia deveria lidar com as próprias ações seria uma antiga falácia científica. “A ciência antiga”, disse Pareto, “queria proceder a partir da origem dos fatos. A ciência moderna parte dos fatos e procede em direção à origem, a um ritmo extremamente lento”.[15]

Benedetto Croce treplica dizendo que a posição de Pareto, circunscrevendo a Economia a quantidades mensuráveis, é arbitrária, pois o que fazer então com aquelas situações econômicas onde não se pode aplicar nenhuma mensuração? Pareto é que estaria sendo metafísico, enquanto Croce seria o verdadeiro empirista. “Seu postulado metafísico implícito”, argumenta Croce, “é este: que os fatos da atividade do homem são da mesma natureza dos fatos físicos; que tanto em um caso como no outro nós só podemos observar regularidade e daí deduzir consequências, sem jamais penetrar na natureza íntima dos fatos. Como você defenderia esse seu postulado a não ser por um monismo metafísico?” E Croce continua: “Eu me atenho à experiência. Ela me mostra a distinção fundamental entre externo e interno, entre físico e mental, entre mecânica e teleologia, entre passividade e atividade.” Quanto ao conceito de valor, Croce afirma que tal conceito é percebido diretamente na nossa consciência.[16]

Pareto, no entanto, finca pé em sua posição e ambos permanecem em desacordo, tal como ainda acontece hoje entre aprioristas e empiristas nas disputas entre escolas econômicas.

Através desses relatos pode-se observar que a tese segundo a qual o objeto central da Economia é a ação humana não surgiu originalmente de Ludwig von Mises, possuindo na verdade adeptos mais antigos. Foi Mises, entretanto, que sistematizou tal conhecimento e o transformou no método oficial da Escola Austríaca.

 

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Notas

[1] Rothbard, “Praxeology as the Method of the Social Sciences”, em Economic Controversies.

[2] Ludwig von Mises, Ação Humana: Um Tratado de Economia, p. 35.

[3] Rothbard, idem.

[4] Idem.

[5] Idem, pp. 45-46.

[6] Idem, p. 46.

[7] Idem, p. 46.

[8] Idem, p. 36.

[9] Idem, p. 47.

[10] Idem, p. 47.

[11] Idem, p. 48.

[12] Idem, p. 51.

[13] Idem, p. 51.

[14] Idem, p. 52.

[15] Idem, p. 52.

[16] Idem, pp. 52-53.

 

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