Anarcocapitalismo e nacionalismo

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Houve um tempo em que a nação gozava de boa publicidade na mídia liberal e libertária. Era vista como uma força de progresso que servia para criar sentimentos e valores comuns entre as pessoas, superando antigas distinções de status ou sangue. John Stuart Mill, por exemplo, as viu como um pré-requisito para a construção de uma sociedade liberal. Todos os cidadãos seriam iguais e governados pelas mesmas leis e constituições. Nos círculos libertários, autores como Rothbard, em seu famoso ensaio sobre as nações por consenso, destaca o papel que a nação pode desempenhar na construção de uma sociedade sem Estado. O ser humano não é um átomo que opera em uma espécie de vácuo social, mas opera inserido em alguma sociedade particular. Mesmo os famosos cosmopolitas, que sempre nos são apresentados como modelos do que deveria ser uma sociedade genuinamente liberal, também estão inseridos em sua própria sociedade internacional, que raramente abandonam, aliás, para se misturar com mortais comuns que vivem em uma nação mais “normal”.

Uma pessoa, mesmo em uma sociedade sem Estado, terá características nacionais e provavelmente se identificará, mesmo que tacitamente, com uma delas. Ela falará uma língua, terá uma religião ou, se não a tiver, o fará de alguma forma particular (o ateísmo não é entendido da mesma forma em diferentes culturas). Terá certos costumes culinários ou gastronômicos e certamente está inserida em alguma história nacional pela memória de seus ancestrais (que devem ter feito parte de uma). Ainda na ausência de uma forma de dominação política, é muito provável que o nosso futuro ancap continue a ser identificado com alguma comunidade de um tribunal nacional.

No entanto, desde a eclosão das duas grandes guerras mundiais, o nacionalismo perdeu muito de seu halo modernizador, especialmente em ambientes liberais. Popper (que nem mesmo era um liberal, mas um social-democrata), por exemplo, tem sido um dos principais devedores dos mitos nacionalistas na mídia liberal, seguido por uma infinidade de autores que buscam eliminar todos os tipos de lealdade nacional. O nacionalismo seria uma espécie de retorno à tribo e aos valores mais típicos dos homens da caverna do que das sociedades civilizadas. Isso iria despertar as paixões humanas mais baixas e ignóbeis e os praticantes dessa fé perderiam no processo tudo o que lhes restou de seres racionais.

Eles podem ilustrar uma patologia social potencial, mas não nos oferecem uma alternativa para nossa necessidade de autoidentificação. Sua proposta costuma ser um vago individualismo em que uma espécie de ser humano atomizado, sem famílias, nações ou religiões fortes, buscará seu melhor interesse de forma “racional”. Certamente, isso parece mais uma receita para garantir o domínio dos Estados sobre os seres humanos desprovidos de laços de coesão do que uma proposta de ordem social livre. Robert Nisbet em um clássico absoluto do liberalismo conservador, Community and Power, insiste muito neste aspecto ao explicar como a comunidade, entendida de forma ampla, pode substituir muitas das funções prestadas pelo Estado, mas sendo necessário para isso a existência de um mínimo de coesão social e confiança. A comunidade nacional pode então tornar-se uma espécie de cimento social que contribui para a redução dos custos de informação e permite a substituição de funções agora asseguradas pelo Estado por entidades da sociedade civil que não têm necessariamente de utilizar mecanismos coercitivos para a sua prestação.

Nos últimos anos, assistimos ao surgimento de inúmeros estudos que reforçam o papel da nação como potencial gerador de resistência às ações dos estados. Yoram Hazony, por exemplo, em seu livro, escrito a partir de postulados conservadores, sobre as virtudes do nacionalismo lembra que este é um dos principais obstáculos à ideia de governo mundial, que se aplicado poderia se tornar um dos principais inimigos de muitas das liberdades de que hoje gozamos e que significariam o fim da fértil anarquia interestatal à qual, com seus pesares, tanto devemos a liberdade. Este é um livro que tem gerado grande polêmica nos meios liberais, mas que abre um terreno fértil para o debate sobre a questão nacional, até hoje dominada por perspectivas críticas e cosmopolitas.

Outros autores como Bernard Yack ou Yael Tamir também deram interessantes contribuições ao debate sobre o nacionalismo, tentando conciliá-lo com o liberalismo. A primeira coisa que dizem é que o nacionalismo, como qualquer outra ideia, não tem que responder pelo uso que dele fazem aqueles que afirmam agir em seu nome. É verdade que crimes foram cometidos em nome da nação e todo tipo de aberrações e limitações à liberdade foram justificadas, mas infelizmente isso é algo muito comum em muitas ideologias ou religiões.

Em nome do Cristianismo, do liberalismo (que o diga aos carlistas) ou do socialismo, todos os tipos de abusos também foram cometidos e na minha opinião isso não tem que desqualificar as próprias ideias, que devem ser discutidas como ideias, não sobre os que fingem falar em nome dela ou construir uma nova sociedade sob seus princípios. Nesse sentido, o nacionalismo não é mais mortal ou prejudicial do que qualquer uma delas. É verdade que grandes guerras foram travadas em seu nome ou que foram realizadas limpezas étnicas, mas parece que essa é a única maneira que pode ser entendida, e outras expressões dela são esquecidas. Se prestarmos atenção a Michael Billig, em seu nacionalismo banal, o nacionalismo se expressa com muito mais frequência na forma de competições esportivas (futebol mundial, Olimpíadas) ou competições musicais do tipo Eurovisão do que na forma de guerras sangrentas e massacres. Isso pode até ser bem-humorado e desmistificador e pode até ser visto como um elemento que leva a uma emulação saudável. O nacionalismo violento não deixaria de ser uma patologia da ideia, não a ideia em si, mas infelizmente na linguagem comum em nossos ambientes essa parece ser a tendência usual.

Também na esfera econômica, quando nos referimos ao chamado nacionalismo econômico, essa parece ser a linguagem usual. É verdade que o nacionalismo ou a defesa de um suposto interesse nacional tem sido utilizado para justificar a implementação de medidas econômicas protecionistas como tarifas ou cotas de importação. Também tem sido usado para proteger ou subsidiar certas empresas ou setores considerados “estratégicos” para a nação ou para promover “campeões nacionais” nesses setores. Mas a nação ou o nacionalismo são apenas uma justificativa para tais medidas, que bem poderiam ter sido realizadas em nome da classe trabalhadora, do progresso, do bem do reino ou da salvação das almas. A nação ou nacionalismo operam nesse ambiente como desculpa para justificar o uso da coerção estatal na defesa de certos interesses. Com a mesma lógica e com muito mais razão, poderíamos defender o livre comércio ou as políticas desregulamentadoras ou mesmo a abolição do próprio Estado para o bem da nação, uma vez que ela de fato se beneficiaria com tais medidas. O erro vem da identificação entre Estado e nação (diferença que às vezes reconheço não é fácil de estabelecer dada a confusão dos dois conceitos). De forma que se confundem os interesses de um e de outro.

Esta identificação sempre foi muito procurada pelos detentores do poder estatal, de modo que os interesses dessa classe dominante sejam assumidos como os próprios interesses dos habitantes da nação. Assim, quando se subsidia uma empresa amiga ou se coloca uma tarifa que protege alguém próximo do poder, pode-se afirmar que tal medida responde ao interesse nacional, quando na realidade prejudica a maioria e beneficia apenas alguns. Mas o sentimento nacional não tem nada a ver com esses truques, ao contrário, é vítima da confusão resultante e de um uso espúrio dele.

Mas poucos defenderam o nacionalismo como a força motriz por trás da modernidade e do capitalismo como a professora Liah Greenfeld. Isso em seus livros Nacionalismo: cinco caminhos para a modernidade ou em seu livro The spirit of capitalism: Nationalism and economic growth defende o papel que este historicamente desempenhou não apenas ao fazer esforços para construir o novo sistema econômico, mas também para moldar os diferentes estilos que ele adotou de acordo com diferentes culturas. A nação cria capitalismo e isso com o desenvolvimento de infraestruturas e o desenvolvimento das relações comerciais ajuda a unir a nação.

Lembremos que o capitalismo deriva em grande parte de valores culturais anteriores, que eram encontrados mais em algumas nações específicas, como Inglaterra ou Flandres, e que se não fosse por sua preservação como um traço cultural ou nacional próprio, muito provavelmente nunca teria desenvolvido o sistema capitalista da maneira que o fez. Mas o capitalismo também contribuiu para gerar uma consciência nacional. O desenvolvimento da imprensa de massa, a criação primeiro da ferrovia e depois de portos e rodovias (cuidado, muitas vezes criadas pelos próprios capitalistas sem a participação do Estado) contribuem para manter e enriquecer a consciência nacional. As novas tecnologias da informação, as técnicas mais baratas de registro de imagens e sons ou a capacidade tecnológica de fabricar e conservar instrumentos musicais ou todo tipo de utensílios do passado têm permitido conservar a memória das nações, mesmo aquelas sem estado.

Este último merece menção especial. Os processos de homogeneização dos estados modernos encontraram resistências em realidades nacionais distintas da nação hegemônica no estado. Essas realidades diminuem a expansão do estado, pois permitem uma fuga parcial dos mecanismos de “leitura” (usando o conceito cunhado por James Scott) que os estados têm sobre suas populações. Se não compartilham a língua, têm diferentes formas de agrupamento ou mesmo têm pesos ou medidas diferentes, os estados terão dificuldade em fazer seu trabalho e, portanto, buscam de todo modo eliminar essas diferenças. Mas, ao mesmo tempo, essas diferenças nacionais reduzem a capacidade do estado e o impedem de implantar sua capacidade total. Em qualquer caso, elas distraem suas energias e limitam seu poder. Algo que todos os que se opõem à extensão do poder do Estado deveriam celebrar, sejam eles anarquistas, minarquistas ou liberais.

 

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5 COMENTÁRIOS

  1. Nacionalismo quando diminui o tamanho do estado é excelente… Sul é meu país (não sou da região sul), separatismo da Catalunha… Nacionalismo quando evita de um local ser anexado por um estado maior também é excelente, por exemplo se Hong Kong ou Taiwan crescer o nacionalismo como resistência a China é uma forma de se defender… Agora existem muitos nacionalistas que confundem as coisas e se aproximam muito de uma noção de amor ao estado…

    A mesma análise pode ser feita a religião, muitos religiosos foram referência na resistência a pandemia, muitas pessoas que se convertem para alguma religião acabam se tornando pessoas pacíficas e trabalhadoras….

    Na minha opinião pessoal, não existe nada melhor que ler e melhorar sua ética através da lógica… reconhecer seus erros e melhorar como pessoa… Mas não é porque algo funciona para mim que funciona para os outros… sei lá… Se sentimentos nacionalistas ou religião fazem pessoas se aproximar de ideais libertários eu não tenho nada contra apesar de não ser a forma que eu entendo a questão

    • O autor do artigo é espanhol, deve conhecer a fundo a história do seu país…
      Provavelmente ele deve conhecer os abusos que esses vagabundos liberais cometeram nas guerras civis destes com os conservadores no século 19.
      Mas nem é preciso se surpreender muito, pois esses liberais continuam sendo o principal inimigo da liberdade humana até hoje.
      #liberalnemégente

      • Ahh sim,entendi,valeu.Realmente isso está acontecendo,aliás o liberalismo tá desgastado.Velhos tempos que eu era um liberal,ainda bem que fui para o lado Amarelo da força ou seja Libertário.

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