Como já dissemos nas páginas anteriores, no período pré-colonial, os povos que habitavam os territórios que hoje compõem Angola viviam uma condição de paz. Esses povos viviam em pequenas comunidades formadas por pequenos reinos. As relações dentro dessas comunidades eram essencialmente baseadas nas trocas mútuas, e os pequenos conflitos que surgissem eram resolvidos pelos sobas no interesse das vítimas. Os sobas tinham o poder natural de estabelecer as regras de cooperação, baseadas na defesa da liberdade individual, a vida e a propriedade privada. Portanto, as sociedades pré-coloniais eram o exemplo daquilo a que poderíamos chamar de civilização.
E podemos muito bem fundamentar essa nossa asserção socorrendo-se da teoria para ilustrar o que estamos a defender. Como é sabido, o ser humano é um ser naturalmente social, já que é assim que apareceu nos eventos históricos. Ser social implica o estabelecimento entre os homens de relações de divisão de trabalho e combinação de esforços, que agregados, formam a sociedade. Como nos ensina Mises “os factos fundamentais que fizeram existir a cooperação, a sociedade e a civilização, e que transformaram o animal homem num ser humano, é o facto de que o trabalho efectuado valendo-se da divisão do trabalho é mais produtivo que o trabalho solitário, e o facto de que a razão humana é capaz de perceber esta verdade.”
Assim, no âmbito da cooperação, os homens estabelecem entre si um conjunto de relações, podendo essas ocorrerem na forma de relações cooperativas e relações interactivas. As relações cooperativas resultam de relações de trocas mútuas directas e indirectas e visam o melhoramento constante da condição humana. Esse tipo de relações geram a paz, já que são contratuais, isto é, feitas dentro de um conjunto de normas voluntariamente aceites. As relações interactivas são simples relações sem quaisquer propósitos, ou com propósitos não cooperativos, isto é, sem fins de troca mútua. É o típico relacionamento entre animais, ou uma simples interação entre homens sem fins cooperativos. Num Bar, Restaurante, por exemplo, há uma relação de cooperação entre um ou grupo de indivíduos e o dono do Bar e relações interactivas entre indivíduos que se encontram no seu interior. Faz-se importante destacar que algumas relações cooperativas podem se transformar em interactivas, mas nunca as últimas se transformam nas primeiras. Isso acontece quando, por exemplo, umas das partes contraentes descumpre um determinado contrato.
Então, segue-se que os conflitos só podem surgir dentro de relacionamentos interactivos, já que relações cooperativas pressupõem o reconhecimento e o respeito à propriedade privada. Propriedade privada significa a existência de bens controlados e exclusivamente disponíveis para uma determinada pessoa. Esses bens englobam o nosso próprio corpo, as coisas de que nos apropriamos sem que alguém os tenha apropriado antes de nós, coisas produzidas ou compradas por nós. Portanto, uma determinada coisa só se torna nossa propriedade, estabelecendo um vínculo intersubjectivo com ela, através da apropriação original, produção, troca ou compra. Todas as outras coisas obtidas fora das formas naturais de aquisição da propriedade privada geram conflitos entre os homens.
Como já dissemos, o relacionamento cooperativo baseado na apropriação original, produção e troca, gera a paz e melhora a condição humana, enquanto o relacionamento interactivo sem bases no cumprimento de normas gera conflitos. A paz passa então a ser a ausência de conflito, ou seja, uma condição em que, numa determinada comunidade, todos possuem os bens legitimamente adquiridos por meio da apropriação original, produção e compra. Essa condição é que forma a civilização humana. Assim, conflitos passam então a ser antónimos de paz, pois, surgem quando uma pessoa ou grupo de pessoas obtém coisas sem que as tenham ocupado primeiro, produzido ou trocado. Desse modo, os conflitos atentam contra a natureza social do homem, pelo que, urge a necessidade de evitá-los.
Recorde-se que todo e qualquer conflito envolve sempre duas partes com interesses diametralmente opostos, sendo uma parte composta pela vítima e outra pela parte agressiva. Assim, enquanto a acção do agressor é sempre a de invasão à propriedade alheia, gerando conflito, a acção da vítima é sempre defensiva, podendo ser de resignação ou de guerra. Desse modo, a guerra é sempre uma agressão defensiva, pois, visa repor a coisa roubada ou agressão sofrida, enquanto a invasão é sempre uma agressão ofensiva, porque inicia o uso da força contra a propriedade alheia. A guerra é, nesse sentido, um instrumento da vítima, enquanto a invasão é do agressor. É nisso que consiste a santidade e a justeza da guerra.
Identificadas as partes de um conflito, segue-se então as formas de sua resolução. Ora, estando o homem munido de ferramentas teórico-filosóficas, a solução de qualquer conflito passa então em estabelecer as regras de aquisição da propriedade privada. Nesse diapasão, em caso de conflito, a coisa objecto de disputa deve ser devolvida a quem possuir o título de propriedade, na ausência deste, ao possuidor actual. Nos casos em que haja uma transmissão cronológica de títulos de propriedades, deve fazer-se o rastreio histórico desses títulos para identificarem-se os verdadeiros e legítimos proprietários. Mais uma vez, na incapacidade desse rastreio, o título deve pertencer ao possuidor actual. O processo segue a mesma lógica quando a agressão for infringida sobre o nosso próprio corpo. No caso, deve-se repor ou compensar a agressão sofrida, estabelecendo-se critérios de proporcionalidade. Esse processo de arbitragem de conflitos envolve um mecanismo de argumentação constante para se apurar vítimas e agressores e assim se manter a sociedade. Portanto, a sociedade harmónica e pacífica, não é um processo sem conflitos, mas sim um processo complexo de relações cooperativas e também interactivas, (muitas vezes conflitantes), mas que persiste graças ao desejo ou ao esforço humano para mantê-la. Portanto, a sociedade existe na medida em que ela consegue reprimir aqueles que muitas vezes a querem perverter, ou corromper as suas regras.
É basicamente assim que funcionavam as sociedades pré-coloniais de Angola. Conflitantes em muitas ocasiões, mas elas mantinham a ordem social através dos mecanismos de repressão da invasão ou da agressão perpetrada por membros antissociais da comunidade. As relações eram todas privadas e a autoridade política daquele contexto servia unicamente para defender as vítimas da invasão dos criminosos.
Só que, ao longo da história, invasores criaram seus próprios grupos e moldaram suas próprias “sociedades”. Esses invasores passaram a semear violência não apenas contra pessoas indefesas, mas também entre outros grupos invasores. É nesse contexto que os conflitos actuais devem ser analisados. Sendo que os Estados são grupos de invasores estabelecidos em todo mundo, então os conflitos que surgem actualmente são essencialmente perpetrados pelo Estado contra indivíduos indefesos, ou ainda, entre grupos estatais rivais. Pode-se então dizer que actualmente os conflitos que mais ocorrem são entre invasões estatais e também entre invasores estatais e indivíduos dominados ou governados. Devido ao forte poder bélico dos estados, os conflitos violentos só ocorrem entre grupos estatais rivais, optando os indivíduos governados à resignação ou resistência passiva. Entre os conflitos estatais temos os exemplos dos conflitos entre a República Democrática do Congo e o Ruanda, entre a Rússia e Ucrânia, Israel e Palestina, o imperialismo ocidental e asiático contra outros governos vassalos, e ainda entre grupos estatais em ascensão ou em formação, tais como, os conflitos entre o estado angolano e o movimento da FLEC, em Cabinda, entre o Estado do Congo e o M23 e outros grupos rebeldes e, ainda, entre o Estado moçambicano e o grupo “rebelde” em Cabo Delgado. Portanto, nesses lugares existe uma onda de violência aberta entre grupos rivais de invasores que lutam na conquista de mais territórios e contribuintes, para sistematizar e legitimar a violência e aumentar o esbulho.
Como já dissemos acima, nesse tipo de conflitos violentos não existem guerras, porque nenhum dos lados luta pela paz ou para reaver alguma propriedade roubada. O que ocorre é uma luta entre invasores, luta essa para cuja cessação imediata devem todos os cidadãos por um mundo livre apelar. Já os conflitos entre o Estado e os seus cidadãos conquistados ou domados, são os mais comuns, porque ocorrem diariamente por cada acção dos agentes públicos e por cada lei estabelecida pelo poder estatal. Estamos a falar de cada acção dos fiscais, das notas de cobrança emitidas por instituições de tributação, de toda regulação, intervencionismo e proteccionismo públicos. Os casos de conflitos violentos ou ondas de violência abertas entre o Estado e os cidadãos que resistam à invasão, temos como exemplos mais flagrantes a guerra contra o colonialismo, a violência perpetrada entre o Estado angolano contra membros da igreja adventista “A Luz do Mundo” ocorrida no monte Sumi, no município da Caála, na província do Huambo, e, mais recentemente, entre o Estado angolano contra os cidadãos indefesos da Vila de Cafunfo na província da Lunda Norte. Nesses casos, houve, sim, conflitos entre invasores e vítimas que, por sua vez, procuraram revidar.
Para fazermos um enquadramento histórico, em Angola, antes da independência, havia uma guerra a ser empreendida contra o invasor português. Grupos de pessoas ou de forma individual, os angolanos foram reagindo a invasão perpetrada pelos portugueses, tendo gerado uma onda de violência contra cidadãos autóctones indefesos. Desde então, nunca mais experimentamos a paz, e o nosso processo histórico tem sido de sistematização e legitimação da invasão e roubo, gerando uma condição de conflito permanente e de violência. Ao contrário da crença comum, nos dias de hoje não mais existe paz em nenhuma sociedade ou País. Hoje supõe-se que há paz quando os cidadãos não resistem às depredações, extorsões ou invasões do estado, ou que os conflitos só acontecem nos casos de “revoluções”, em que as pessoas resistem ao monopólio da força do Estado, o que não corresponde à verdade. Como nos alerta Rothbard, “Tanto o caso calmo de um estado sem resistência e o caso de revolução declarada podem ser chamados de “violência vertical”: violência do estado contra seu povo”.[1]
Feita a análise teórica, torna-se importante fazer-se um enquadramento histórico que nos permita uma compreensão melhor do nosso passado, para se uma perspectivar um futuro político melhor.
Este é mais um desses dias em que, por meio da manipulação semântica, o estado, através das suas agências, coloca venda nos olhos dos cidadãos para lhes impingir que essa data representa o símbolo da liberdade ou da libertação nacional. Historicamente, o 11 de Novembro simboliza a continuidade da exploração estatal e concomitantemente a legitimação de determinados grupos hegemónicos (partidos políticos) para explorarem e escravizarem o povo angolano. O 11 de Novembro simboliza também a declaração formal da guerra entre os partidos políticos e estes contra o povo angolano, tudo isso feito com o objectivo de controlar todo território angolano, ampliando-se assim o número de escravos – contribuintes, na terminologia actual – para aumentar as receitas dessas hordas (partidos políticos).
Dependendo da localização geográfica, o povo angolano foi domado, recrutado, rusgado, doutrinado, nos esforços da guerra dessas hordas, cujo objectivo era o controlo total das fronteiras nacionais para sistematizar e legalizar a exploração social. O 11 de Novembro simboliza, também, a união forçada de vários povos, etnias e reinos que compõem Angola e sua submissão ao povo, etnia ou reino vencedor da guerra e, consequentemente, a imposição de uma única cultura, matando culturas de povos vencidos, nomeadamente no campo da língua, música, política, economia, história, família, herança, solidariedade, hábitos alimentares, costumes, tradições, etc. O 11 de Novembro simboliza a mudança de explorador branco para explorador preto. Pela primeira vez na história dos nossos reinos, grupos de homens pretos desconhecidos, sem alguma legitimidade, mérito ou reconhecimento social, se autointitularam representantes legítimos e ameaçaram com o poder das armas qualquer homem ou reino que se opusesse às suas leis.
O 11 de Novembro simboliza, ainda, a divisão do povo angolano entre duas partes opostas e conflitantes e ainda o desenvolvimento de uma cultura política parasitária. Fruto disso, deixamos de aprender a viver através da produção de bens ou serviços e passamos a viver da política ou do modo de vida parasitário, isto é, a viver dos impostos e de exploração das riquezas possuídas por outros povos produtores ou apropriadores. Por meio do 11 de Novembro, surgiram instituições antissociais estranhas à nossa organização política e social tradicional, nomeadamente a ditadura, a democracia, o estado, a legislação, a constituição, os partidos políticos, o papel moeda, etc. Com o 11 de Novembro, perdeu-se a chance de retorno às fronteiras naturais, as identidades culturais de cada povo e a preservação das suas propriedades.
Em suma, o 11 de Novembro não simboliza o dia da liberdade ou libertação nacional, pelo contrário: simboliza a “legalização” do Estado e suas hordas, para a perpetuação da violência e exploração dos cidadãos indefesos situados no esbulho chamado Angola.
Celebrado o Acordo de Alvor, seguiu-se um processo de legitimação e consolidação do poder hegemónico do estado angolano. Esse processo de consolidação e legitimação do poder do Estado, historicamente gerou um conflito armado de 27 anos, que só terminou no dia 4 de Abril de 2002, com a morte em combate de Jonas Savimbi, ex-líder da UNITA.
Desde então, o dia 4 de Abril tornou-se num marco histórico no nosso País, que passou a ser consagrado como dia da paz, simbolizando o “Acordo de Paz” entre os então desavindos movimentos de libertação nacional, nomeadamente a UNITA e o MPLA. Como resultado desse acordo, o 4 de Abril passou a ser o marco histórico mais importante da nossa história recente e a paz como legado igualmente histórico mais valioso da geração que conduziu a luta da Independência Nacional. Consequentemente, foi atribuído o título honroso de arquitecto da paz, ao então Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, como reconhecimento do seu envolvimento para a conquista ou celebração de tal “acordo de paz”, de um conflito armado que durou 27 anos. Fruto desse reconhecimento, o antigo Presidente foi indigitado para mediar conflitos na África Austral, principalmente no Congo Democrático. Mais recentemente, o Presidente João Lourenço foi designado pela União Africana como mediador do conflito que opõe a República Democrática do Congo e o Ruanda, tendo para o efeito apresentado uma proposta de paz em função do cessar-fogo que se regista naquela região. Nas vésperas da reunião entre esses países, o Presidente João Lourenço disse que “As questões relativas à paz e segurança da nossa região continuam a estar no centro das nossas atenções e fazem parte das grandes prioridades da agenda da SADC, no âmbito da qual empreendemos um esforço colectivo para mantermos o clima de tranquilidade que, de um modo geral, prevalece na África Austral, embora se mantenha ainda o conflito no Leste da RDC, que constitui um desafio ao qual temos vindo a fazer face, com perspectivas animadoras”.
Essa narrativa histórica de resolução de conflitos é bastante comum no mundo moderno. O mundo tem sido palco de vários conflitos e, em decorrência dessa realidade, várias figuras têm-se destacado na resolução dos conflitos. Até mesmo um prémio de paz foi estabelecido para homenagear figuras que se destacam na busca da paz. Faz-se então necessário mais uma vez um enquadramento histórico da celebração do 4 de Abril, para uma compreensão adequada da nossa história.
Bem, como já tivemos a chance de explicar, um conflito só ocorre na situação em que duas pessoas ou partes reivindicam simultaneamente a donidade sobre um bem e que a guerra é justificável e santa na medida em que é um instrumento que visa recuperar a coisa roubada ou recompor a agressão sofrida e assim realizar a justiça. Também já vimos que a resolução de todo conflito requer o estabelecimento de regras de propriedade privada para se saber ou identificar o verdadeiro dono da coisa em disputa e, nalguns casos, rastrear historicamente a donidade do bem para se aferir sobre a legitimidade dos seus titulares. É um processo argumentativo muito árduo, até convencer as partes. Disso decorre que nenhum conflito se resolve com o uso da força das armas, sendo que todo conflito só conhece solução por intermédio do uso das palavras.
Também como já dissemos, o conflito armado entre a UNITA e o MPLA é um conflito interestatal porque se enquadrava na disputa de grupos hegemónicos por monopólio do uso de força sobre o território de Angola e seus cidadãos. No caso, não houve guerra porque não estava em causa a disputa para a reposição de qualquer bem roubado, mas estávamos perante um conflito entre grupos estatais rivais que lutavam um contra o outro pela hegemonia e para sistematização da depredação social. Portanto, não estava em causa a busca da paz, ou resolução do conflito, mas sim uma disputa para um grupo se impor sobre o outro e assim depredar à vontade. Assim, o 4 de Abril simboliza o fim da disputa pelo poder colonial entre os movimentos independentistas e a consagração do MPLA como dono desse poder. O 4 de Abril simboliza também a consolidação e a legitimação do poder do estado sobre todo território nacional. Sabendo-se que, em última instância, os movimentos independentistas são apêndices ou vassalos das potências imperialistas, então, com o 4 de Abril a colonização e a escravidão voltam nas colónias, agora como formas de organização social legítimas e conflitar passou a ser o modo de vido de todos os cidadãos.
Vale lembrar que as instituições do estado não podem, pela sua própria natureza, constituirem-se como meios de resolução de conflitos. Aliás, os estados chamam de paz a estabilidade ou a resignação dos cidadãos ou grupos rivais à sua violência. Por isso é que quando se propõem a resolver um conflito geralmente fazem-no aumentando o seu contingente ou poderio militar, esmagando os seus adversários, ou então, colocando, nos casos de conflito externo, uma força militar externa que apoia o grupo mais poderoso para neutralizar o rival menos poderoso. Uma vez consolidado e legitimado o poder estatal, a violência passou a ser o modo de vida e definitivamente o projecto colonial de ocupação e exploração de Angola passou a ser operacionalizado.
O nome Angola não tem qualquer significado histórico concreto ou real. Surgiu da nomenclatura real do reino do N’dongo, um ponto estratégico da penetração portuguesa para todo o vasto território angolano. Primeiro no reino do Congo, depois no N’dongo, os portugueses pouco a pouco foram conquistando o território nacional. Durante o longo processo da consolidação colonial, os portugueses, partindo do Congo, foram aos poucos ampliando os territórios conquistados até se tornarem na actual configuração geográfica. Desse modo, Angola não é uma unidade política ou cultural relevante, representando apenas o limite da conquista dos portugueses. Angola simboliza a escravização e a subjugação dos povos autóctones e consequentemente a violação flagrante das suas fronteiras naturais. Angola simboliza a perda de toda identidade cultural ou um povo sem memória histórica. Não existe qualquer feição ou ligação espiritual de Angola e o povo que ali habita. Na verdade, nem mesmo os nomes como “província”, “município” e “comuna” têm algum significado real. São nomes fictícios criados pelos conquistadores e exploradores portugueses e mais tarde legitimados pelos movimentos das independências com o fim de traçar limites geográficos que permitiram controlar, subjugar, doutrinar, embrutecer e tributar os autóctones. Foi a partir do nome Angola que os portugueses criaram a instituição estado e legitimaram a colonização e o tráfico de escravos. Mais tarde, foi com o mesmo nome que, por meio dos movimentos de luta contra o colonialismo, se deu a socialização ou legitimação da instituição do Estado.
As únicas circunscrições geográficas historicamente reais ou concretas dos angolanos são as Ombalas. As Ombalas formam a identidade cultural de cada povo que formam Angola de hoje. É o único lugar com um governo e instituição judicial aceites de forma livre e espontânea pelos nossos ancestrais, possuindo um governo totalmente social e moral, cuja principal função é a de velar pela segurança e liberdade dos indivíduos que ali vivem. Não há qualquer evidência de existência da instituição estado nas Ombalas.
O sistema de justiça é totalmente privado e todos são iguais perante a lei. Não existe uma assembleia de homens para fazer leis, como é em Angola. As leis são interpretadas com base na filosofia dos direitos naturais. Cada caso é julgado de forma particular. Não existe legislação, as leis não são escritas e também existem muitos juízes concorrentes entre si. O Juiz é apenas árbitro e as decisões são tomadas na base do interesse das partes. Por norma, as sentenças servem para reparar danos causados à propriedade de outrem. O sistema de justiça é compensatório e não restaurativo como o de Angola. Enquanto Angola é um “estado democrático e de direito”, uma Ombala é uma nação liberal. O sistema de solidariedade social é totalmente privado, onde cada um contribui de forma livre e de acordo com o que pode. O soba é eleito entre os membros da linhagem de sobados. Trabalha directamente com o povo e todas as decisões são tomadas com o consentimento de todos. As terras são totalmente privadas. A liberdade contratual é respeitada.
Portanto, no meu próprio caso, se há uma terra que considero minha, essa é Ombala de Katonga. A Ombala de Katonga é também o único governo legítimo para mim, pois, foi aceite de forma livre e espontânea para garantir a segurança e a liberdade dos seus cidadãos. Não sou de Chicomba, da Huíla e nem tão pouco de Angola. Aliás, partindo do pressuposto de que Angola é uma palavra criada pelo estado e se nos ativermos à definição de Oppenheimer, que define o Estado, no tocante à sua origem, como uma “instituição imposta sobre um grupo vencido por um grupo conquistador, com o único fim de sistematizar a dominação dos conquistados e se salvaguardar contra insurreição de dentro e ataques de fora”, então facilmente podemos chegar à conclusão de que ser angolano é ser escravo, dominado ou governado.
A problemática de Cabinda remete-nos ao mote das fronteiras naturais. As fronteiras que os países africanos possuem são fronteiras artificiais que serviam aos colonos na sua missão de explorar, colonizar, escravizar e dominar. Ao manterem essas fronteiras, os governos africanos seguem a mesma lógica de explorar, dominar, subjugar os outros povos. No caso de Angola, o poder de domínio e exploração está a ser exercido pelos povos de Luanda. Para se evitar esses conflitos e gerar paz em África e em Angola em particular, é preciso fazer-se a reconstituição histórica, rastreando as fronteiras naturais que existiam antes da colonização e os seus centros de poderes. Angola, para todos povos fora de Luanda, significa exploração e colonização. Desse modo, opor-se à independência de Cabinda coloca-nos no lugar de defensores da escravatura e colonização. Defensores do assassinato de povos pacíficos que tudo o que querem é viver a condição que Deus ou natureza propiciou para eles. Na verdade, a própria designação “Cabinda” é em si símbolo de colonização também. A independência tem de ser feita no plano mais micro. É preciso destruir as fronteiras coloniais, começando pelas comunas, municípios e províncias. As únicas fronteiras legítimas, consentidas e pacíficas são as que se encontram delineadas por meio de Ombalas, reinos e os seus governos. As Ombalas são os únicos Organismos administrativos e políticos válidos e legítimos para Cabinda e Angola no geral. Significa que, para a independência efectiva de Cabinda e auto determinação dos vários povos que compõem esse território, é preciso decompor Cabinda em vários reinos que existiam antes da invasão colonial e consagrar esses reinos ou Ombalas como únicas instituições administrativas e políticas válidas e legítimas. O processo seguiria o mesmo ritmo para todas outras províncias. Na Huíla, por exemplo, fazer desaparecer as unidades administrativas e políticas Huíla, nomes de municípios e comunas, e dar lugar aos nomes de várias Ombalas que existem nessa região enquanto unidades independentes. Mais especificamente, o nome Chicomba desaparece e dá lugar às várias Ombalas que existem nesse actual município, sendo os sobas as autoridades supremas dessas divisões administrativas e políticas. Só com a descentralização radical por meio da reconstituição histórica das instituições administrativas e políticas pré-coloniais, haverá autodeterminação dos povos africanos e angolanos, que, por sua vez, gerará paz nesses territórios. Portanto, a luta pela independência de Cabinda é tão legítima quanto foi a luta contra o colonialismo. Só que, para se evitar os mesmos erros cometidos pelos independentistas das colónias ocidentais, é preciso que essa luta por independência de Cabinda seja feita no nível mais micro possível, que são as Ombalas.
No contexto político, os conflitos só surgem quando uma pessoa, grupo ou poder se apossa de forma indevida da propriedade alheia. Portanto, só há conflito em qualquer tempo e lugar quando duas pessoas ou partes lutam para o uso ou para a donidade de um bem ou serviço.
No contexto actual marcado pela existência de governos estatais no mundo todo, que exercem monopólio da violência, só podem existir duas formas de conflitos:
1- conflitos estatais verticais: aqueles exercidos por um estado contra o seu próprio povo (tributação, expropriação, controlo, doutrinação, etc.); e
2- conflitos interestatais: aqueles que ocorrem entre estados (imperialismo, guerra directa, guerra interna contra grupos separatistas, etc.).
Quando falamos dos conflitos em África, estamos a referir-nos aos conflitos horizontais ou interestatais, que ocorrem entre estados ou grupos separatistas. Então, a magnitude dos problemas ou conflitos em África decorre essencialmente da existência de governos estatais internos e imperiais num contexto de países multiétnicos. Os governos imperais ocidentais e asiáticos fazem com que a exploração sobre um povo se intensifique. Portanto, o governo imperiado ou dominado não tem poderes próprios ou identidade própria, funcionando ao vento dos interesses de estados externos ou imperialistas. Ao acomodar interesses externos num País, haverá uma espécie de dupla exploração ou dupla violência, isto é, uma exploração gizada pelo governo imperial e outra do próprio governo local domado ou imperiado. No caso de Angola, os principais impérios mundiais convivem no nosso solo de forma simultânea. O professor Murray Rothbard chamava esse sistema de feudalismo moderno.
Portanto, governos centrais em África são sempre monoétnicos, o que significa que todo governo em África representa sempre uma etnia ou grupo étnico a explorar, dominar e a expropriar terras ou propriedades de outras etnias dentro do mesmo País. O grupo étnico hegemónico explora, em conluio com governos externos, outras etnias para seu próprio benefício. O grupo étnico governante luta a todo custo para descobrir todas as riquezas existentes no País e então ocupa esses territórios identificados e, sem uma contrapartida de povos locais, explora de forma desenfreada todos os recursos naturais existentes, para além de tributá-los pesadamente. O grupo étnico dominante percebe que precisa de intensificar a dominação mesmo antes de perder o domínio, para assim beneficiar-se desse sistema por mais tempo. Geralmente, os grupos étnicos dominantes ou exploradores em África são os das capitais.
É a centralização política e o mecanismo de governos monoétnicos que geram os conflitos em África. Enquanto não se acabar com o imperialismo ou neocolonialismo e retornar a governos anteriores à colonização ou se implementar uma descentralização radical, a África nunca conhecerá a paz. A exploração étnica, para além de muito visível, ela é muito mais pesada e intensa no contexto das democracias. Como nos alerta Rothbard, “A tragédia da África moderna é que as potências imperiais não simplesmente se retiraram e permitiram que a formação tribal natural retomasse sua ocupação original do continente. Em vez disso, os regimes centralizadores coercitivos dessas chamadas “nações” foram entregues aos intelectuais marxistas sem raízes locais educados nas capitais imperiais, que logo se tornaram uma classe burocrática parasita, taxando e oprimindo o campesinato pacífico que constitui a maior parte dos produtores reais em África.”[2]
De facto, a par do imperialismo, os problemas de África decorrem dos próprios africanos, mais concretamente da sua classe política e da sua massa intelectual. A classe política africana é completamente ignorante sobre a cultura local. É composta por assimilados que, embora fora dos benefícios da colonização, essa classe ansiava por esses benefícios. Embora lutasse contra a colonização o que essa classe almejava era substituir o colono. No campo político, eles copiam tudo da Europa, desde seus sistemas políticos até as suas instituições políticas.
Já os intelectuais africanos são uma corja doutrinada por meio da educação, para odiar a própria África e sua cultura. Eles partem da ideia do que chamo «mito do agnosticismo africano». Para os intelectuais africanos, a África, principalmente a pré-colonial, não possuía qualquer conhecimento em qualquer área do saber e então supõem que para compreender a África precisam de fazer uso exclusivo do conhecimento produzido pelas colónias ou outras civilizações fora de África. Assim, para a corja intelectual, no campo político não precisamos de olhar para nossa própria história e procurarmos nossos próprios modelos políticos ou organização política, bastando que adoptemos os sistemas políticos ocidentais, como a democracia, por exemplo. E dizem de boca cheia que não existe uma outra forma de organização política melhor do que a democracia. Esse mito estende-se ao Direito, à Sociologia e a outras áreas do saber.
No Direito, por exemplo, a corja intelectual defende que não existe direito fora do estado e que o justo e injusto só pode ser determinado por essa instituição, ou ainda, que a sociedade é resultante de um contrato social metafórico. Mesmo no campo filosófico, eles acreditam que a terra, por exemplo, é propriedade colectiva, porque foram doutrinados com essa mentira e não se dão o mínimo trabalho de constatar como culturalmente são estabelecidos os títulos de terras nas suas localidades. Os historiadores, outra corja pesadamente doutrinada, nunca estudam história própria. Geralmente, estudam uma história de poder ou de hegemonia. Para os historiadores, as grandes sociedades são aquelas que são hegemónicas, guerreiras ou formadas por reinos dominadores. A etnografia é fortemente ignorada.
Então, a destruição da África está na sua classe política, profundamente doutrinada e sem cultura local e ainda da sua massa intelectual, profundamente aculturada, que não tem seus Quimbos de origem e profundamente doutrinada ao conhecimento socialista.
A África não precisa de uma unidade formal tampouco de uma língua comum. Não existe uma identidade africana tampouco uma angolana. Aliás, a África é apenas uma divisão geográfica sem qualquer fundamento cultural ou político. Não existem afinidades culturais entre países africanos que possam fundamentar a construção de uma só África. Essa ausência de afinidade ocorre até entre os vários povos ou nações que compõem os países africanos. A unidade africana ou de várias nações que compõem os países africanos só se justifica por meio de uma cooperação baseada na divisão de trabalho ou trocas livres e nunca por afinidades culturais. O cidadão egípcio, zambiano ou sul africano nada tem de semelhante com o ovimbundo de Angola, da mesma forma com o português ou francês. Portanto, não é mais vantajoso para o angolano cooperar com um congolês em relação ao francês ou português. O critério de uma cooperação são as relações de trocas mútuas, independentemente da origem geográfica dos cooperantes.
Por outro lado, há também aqueles que defendem que os africanos deveriam falar uma única língua africana ou ocidental para facilitar o mecanismo da unidade e da cooperação social. Nada mais falso do que isso. As diversas línguas, para além de instrumentos de comunicação e argumentação, são também formas de expressão cultural. Abolir línguas significa abolir culturas, o que deixa a humanidade mais empobrecida. Além do mais, a cooperação social não depende da unidade ou unicidade linguística. Povos com línguas diferentes podem facilmente e vantajosamente cooperar, desde que exista factores que propiciem a troca entre os vários povos. Portanto, o ideal de uma Angola única (angolanidade) ou uma África homogénea é totalmente falacioso, porque atenta contra a natureza e diversidade humana. Para uma África próspera e pacífica é preciso respeitar e estimular a diversidade cultural e uma unidade na diversidade baseada na divisão de trabalho. É preciso que cada povo preserve sua própria cultura, modos de vida e governos próprios para que cada povo possa encontrar seu próprio caminho para sua auto-realização.
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Notas
[1] Murray N. Rothbard, Igualitarismo como uma Revolta contra a Natureza & Outros – São Paulo: Instituto Hoppe, 2021.
[2] Ibid.