Para sobreviver e progredir, o ser humano precisa de aprender a pensar, para ter ideias e acumular conhecimento. As ideias, por sua vez, podem ser falsas e verdadeiras. Enquanto as verdadeiras conduzem ao progresso social, as falsas conduzem ao declínio e fracasso. Nessa senda, o papel do estudioso deve ser o da descoberta de ideias verdadeiras, pois, o progresso humano é o resultado da descoberta da verdade e da proliferação de ideias verdadeiras.
A isso acresce-se que, para se estar permanentemente no caminho da descoberta da verdade e da sua proliferação, cada geração deve descobrir com o novo conhecimento e compreender novamente o conhecimento acumulado, evitando que volte a cometer erros do passado. Por isso, saber pensar, descobrir e compreender o conhecimento acumulado exigem métodos adequados de estudo. Um método inadequado ou inapropriado para o estudo de determinado fenómeno produz resultados igualmente inadequados, com consequências catastróficas para a sociedade.
Por muito tempo, o positivismo metodológico tem sido o método mais utilizado para explicar todos os fenómenos, quer sejam naturais quer sociais. Acreditando na unicidade da ciência, as premissas do método positivo baseadas na ideia de que o conhecimento concernente à realidade ou conhecimento empírico deve ser verificável ou, pelo menos, falseável pela experiência, e que não existe nenhum conhecimento a priori da natureza nem da realidade social ou do conhecimento humano e, ainda, que a estrutura das explicações científicas é a mesma independentemente do objecto em estudo, tem dominado a metodologia das ciências.[1] Uma vez adoptado esse credo, os seus defensores passaram a acreditar que, da mesma forma que se tem o domínio sobre os fenómenos das ciências naturais, o homem precisa de, também, controlar, determinar e medir o propósito das ideias de outros homens e assim alcançar o mesmo êxito das ciências naturais nas ciências humanas. Assim, sempre que o método não apresentar os resultados previstos, a desculpa será sempre a de que houve alguma falha natural (como, por exemplo, a falta de controlo de algumas variáveis) ou que é preciso moldar o comportamento humano para alcançar-se o resultado previsto. Portanto, que é possível falsear por experimentos o pensamento humano.
Deu-se, assim, a partir dessa crença, o relativismo em ciências sociais e também o esvaziamento da economia enquanto ciência capaz de predizer fenómenos económicos para o progresso social. Uma vez a ciência económica transformada no ramo do saber inútil, que não consegue dar informações objectivas sobre a realidade social e, ainda, sendo possível falsear e experimentar por engenharias sociais os fenómenos sociais, foi fácil para os poderosos usarem-na como uma arma na busca de seu próprio objectivo de aumentarem o seu controlo sobre os outros homens e de se enriquecerem à custa destes. Com isso, o método positivo passou a granjear todo tipo de apoio e as escolas passaram a ser subsidiadas pelo estado, gerando a economia positiva, direito positivo e a história positiva. À economia positiva coube o papel de defender as intervenções no sistema económico, através da tributação, regulação de preços, políticas de salários mínimos, falsificação monetária e das taxas de juros, invertendo completamente a sua lógica de uma ciência de conhecimento a prior e com princípios universais eternos. No lugar da economia, foi colocado um conjunto de jargões, e muitos conceitos foram completamente invertidos. O que é natural passou a ser visto como antissocial, e as intervenções e regulações passaram a ser vistas como necessárias e economicamente válidas. Ao direito coube o papel de legitimar o poder, com o slogan de que a força é e faz o direito. Deu-se assim a dogmatização do direito e o afastamento completo dos direitos naturais. As leis foram substituídas pela legislação e o direito passou a ser uma questão de vontade dos políticos. A história positiva passou a ensinar-nos que a verdadeira história é a que é contada pelo estado e que os fenómenos históricos devem ser vistos do ponto de vista dos vencedores. Que os hábitos, costumes e a cultura são válidos na medida em que são certificados pelos que detêm o poder ou que a única forma viável de transmissão de conhecimento é a escrita, cunhando culturas agrafas (sem escrita) como atrasadas.
Assim, o estado passou a ser sinónimo da verdade e toda a história humana, com todo o seu conhecimento, foi construída a partir dessa premissa. A análise das ciências sociais passou a esconder os problemas reais e, consequentemente, a impedir as pessoas de encontrarem, a tempo, a política adequada para resolvê-los.
O mote para o Opelao 2021 enquadra-se bem dentro daquilo em que as ciências sociais se transformaram nos dias de hoje. O tema em abordagem “Assimetrias Regionais – Desafios e Propostas de Soluções, no Âmbito da Descentralização do Poder”, analisado ao pormenor, levanta algumas crenças falaciosas bem difundidas pelas ciências positivas, tendo-se tornado em mitos ou dogmas entre os intelectuais dos nossos dias. A abordagem das “assimetrias regionais” levanta o mito da desigualdade ou das assimetrias regionais como indicadores da pobreza, enquanto a “descentralização do poder” procura disseminar a ideia falaciosa de que as soluções económicas passam necessariamente no âmbito da intervenção estatal na esfera dos fenómenos económicos, sendo, por isso, as autarquias um mecanismo para a promoção da paz e da prosperidade social.
Por isso, é nosso propósito nesse trabalho procurar elucidar e desmistificar os conceitos de “assimetrias regionais” e “descentralização do poder”, dentro da teoria económica, para, em seguida, apresentar a organização política e económica adequada para a promoção da ordem social entre vários povos que habitam o território angolano e assim determinarmos o fundamento e o alcance dessas instituições políticas e económicas. Pretendemos, com essa sistematização, uma análise puramente económica, isenta de juízos de valor e que traga meios adequados para fins éticos. Partindo da constatação do economista Thomas Sowell, segundo a qual, em muitas ocasiões, os vários problemas de hoje são resultado das soluções de ontem, é nosso propósito, neste texto, expor os fenómenos económicos sem maquilhagens baseadas em ideias falsas e assim colocarmos a nossa pedra na construção de uma sociedade angolana rumo ao progresso social.
Segue-se então uma análise minuciosa desses mitos no âmbito da teoria económica.
3.1- O MITO DAS ASSIMETRIAS REGIONAIS COMO SINÓNIMO DE POBREZA
Geralmente, o conceito de desigualdade é usado para distinguir diferenças de padrão de vida entre cidadãos que vivem numa mesma circunscrição geográfica pequena, como cidade e município, e assimetrias regionais como critério de diferenciação da condição material entre diversas regiões dentro do mesmo País ou entre países diferentes na mesma região. Como foi abordado no nosso artigo “A pobreza: causas e implicações”, a desigualdade ocorre porque os indivíduos possuem diferentes habilidades e talentos; cada um de nós é único e nunca será copiado, nunca será reproduzido…Enquanto uns preferem passar o maior tempo das suas vidas produzindo, comercializando bens e serviços, ou filosofando, outros preferem dedicar-se a actividades de lazer, bebendo álcool, etc. Os mais engajados no processo produtivo tendem a acumular mais riquezas do que outros que possuem preferências diferentes. É a escala de prioridades ou de preferências de cada indivíduo agindo livremente que os torna desiguais. Não se podem esperar os mesmos resultados para dois indivíduos com preferências diferentes. A desigualdade é natural entre os homens, pois, é gerada pelos indivíduos agindo livremente. Ela é produto da liberdade. Dois indivíduos ricos podem ser desiguais, assim como podem ser dois homens pobres.”
Portanto, a desigualdade entre os homens para além de ser natural é também um factor da divisão de trabalho, na medida em que permite que homens com diferentes habilidades cooperem ou troquem entre si os frutos do seu trabalho. Desse ponto de vista, não existe ligação directa no mercado livre entre a desigualdade e a pobreza, a não ser que determinado grupo de pessoas decidam voluntariamente não produzir para a sua própria sobrevivência.
Relativamente ao conceito de assimetrias regionais, ele é usado para fundamentar a ideia da pobreza relativa, isto é, rotular diferentes condições materiais de determinadas circunscrições geográficas dentro do mesmo País, ou entre países da mesma região, como pobreza, com a nítida intenção de pugnar por uma igualdade de padrão de vida entre as regiões analisadas. É um conceito bastante popular nos manuais mainstream e entre políticos, pois, tem sido a base e o sustentáculo das políticas públicas. Com o conceito de assimetrias regionais não se procura analisar as causas da pobreza substancial ou absoluta, tampouco identificar os factores que promovem a prosperidade social. Busca-se, por meio dele, artifícios políticos para uma suposta igualdade social, usando políticas redistributivas e colocando o estado como única entidade com vocação para se alcançar tal desiderato.
Acontece, porém, que assim como os indivíduos possuem diferentes habilidades e talentos, uns mais engajados no processo produtivo, enquanto outros priorizam mais o lazer, os territórios geográficos também possuem diferentes formas e climas. Enquanto alguns possuem territórios com solos arenosos, outros possuem solos argilosos e orgânicos. Outros ainda diferenciam-se consoante tenham clima equatorial, tropical, subtropical, desértico, temperado, mediterrâneo, semiárido, continental árido, frio, montanhoso e polar. A pressão atmosférica, correntes marítimas, circulação de massas de ar, latitude, altitude, precipitação pluviométrica e inclinação solar são também factores diferenciadores entre vários factores geográficos. Da mesma forma que indivíduos diferentes se tornam socialmente diferentes, assim também será entre as regiões. Indivíduos que vivem em determinada área tendem a desenvolver actividades económicas consoante a sua zona de fixação. Indivíduos que vivem no litoral tendem a especializar-se em actividades piscatórias ou a uma agricultura baseada e adaptada ao seu clima. A região centro e sul de Angola, por exemplo, tem como base agrícola o cultivo de milho, enquanto a parte mais a sul cultiva com maior frequência o massango, um cereal adaptado tendo em conta o período curto das chuvas nessas zonas. A província do Cunene, sendo a mais seca do sul, possui a maior criação de gado bovino. Todas essas actividades económicas dependem das diferenças existentes entre vários territórios, que, por sua vez, irão marcar a especialização económica e, concomitantemente, a divisão de trabalho. Como reconheceu Ludwig Von Mises:
A divisão do trabalho é o resultado da reacção consciente do homem à multiplicidade de condições naturais. Por outro lado, é em si mesmo um factor que acentua essas diferenças. Atribui às diversas regiões geográficas funções específicas no complexo do processo de produção. Faz de algumas áreas zonas urbanas, de outras, zona rural; localiza os vários ramos da indústria, mineração e agricultura em locais diferentes. Mais importante ainda é o fato de que a divisão do trabalho intensifica a desigualdade inata dos homens. O treinamento e a prática de tarefas específicas ajustam melhor os indivíduos às exigências de suas atividades; os homens desenvolvem algumas de suas faculdades inatas e tolhem o desenvolvimento de outras. Surgem às vocações, as pessoas se tornam especialistas.
Portanto, as diferenças entre regiões, para além de serem também naturais, são igualmente promotoras da divisão de trabalho e determinam a condição material de cada região. O desenvolvimento económico tanto pode ser alcançado por regiões iguais como por regiões diferentes. Recorde-se ainda que, onde quer que haja um agrupamento humano, é porque existe condição humana de sobrevivência e o maior ou menor grau de padrão de vida depende não somente dos recursos naturais ali existentes, mas também de muitos outros factores. É isso que explica o facto de que países pobres em recursos naturais como o Japão, Holanda, Israel, Alemanha, tenham um padrão de vida melhor do que Congo, Angola, Arábia Saudita, cheios de recursos naturais.
O economista David Ricardo, ao analisar as consequências da divisão do trabalho e os efeitos do comércio entre duas regiões desigualmente dotadas pela natureza, deduziu a lei das vantagens comparativas. Seu objectivo era investigar pressupondo que os produtos, mas não os trabalhadores e os bens de produção acumulados (bens de capital), pudessem livremente circular de uma região para outra. Segundo essa lei, é mais vantajosa para a região mais bem-dotada concentrar seus esforços na produção de bens em que sua superioridade seja maior e deixar para a região menos bem-dotada a produção de outros bens onde a superioridade da primeira seja menor. Desse modo, a divisão do trabalho aumenta a produtividade do trabalho entre as duas regiões, colocando todas elas no rumo da prosperidade social. Essa lei mostra, ainda, como o processo da divisão de trabalho acaba por beneficiar todas as regiões que mantêm comércio, mesmo que uma delas tenha mais recursos naturais que a outra.
Edward Conrad, autor do livro O lado bom da desigualdade, diz-nos que quando a desigualdade aumenta, a diferença de padrão de vida entre ricos e pobres diminui não só dentro do mesmo País, mas também entre países diferentes. Como ele próprio conta,
Apenas pense em Henry Ford, no falecido Steve Jobs, no criador da Amazon, Jeff Bezos e no empreendedor da informática Michael Dell. Cada um destes se tornou extraordinariamente rico não por prejudicar os pobres e a classe média, mas sim por saber transformar luxos que até então eram usufruídos apenas pelos ricos — o automóvel, um smartphone (que, na prática, é um supercomputador), um Shopping Center mundial que vende produtos baratos a um clique, e o computador portátil — em bens corriqueiros acessíveis a todos.
E, graças à globalização, os inventos desses empreendedores não ficaram restringidos às suas fronteiras, mas se espalharam por todo o mundo. Ao popularizarem seus inventos, esses três empreendedores se tornaram extremamente ricos. Bem mais ricos que o resto de nós, meros mortais. Nesse caso houve um aumento da desigualdade, mas esse aumento da desigualdade não apenas não foi maléfico, como, na verdade, representou uma redução na diferença de estilo de vida entre pobres e ricos. Quando essa desigualdade aumentou, a diferença de padrão de vida entre ricos e pobres diminuiu.
Na verdade, a divisão de trabalho é um mecanismo que não só equaliza o padrão de vida entre regiões diferentes como também é o mais eficaz instrumento de mercado para a redistribuição da renda. Em 2004, um outro economista, William Nordhaus, num estudo feito sobre a desigualdade na Universidade de Yale, já mostrava que
“apenas uma pequena fracção dos retornos derivados dos avanços tecnológicos entre 1948 e 2001 foi capturada pelos produtores, o que indica que a maior parte desses benefícios foi transferida aos consumidores. Ele estimou ainda que os empreendedores inovadores capturaram somente 2,2% do valor total que suas invenções criaram para a sociedade.., ou seja, o valor que eles criaram para a sociedade com suas invenções é quase 40 vezes maior do que eles próprios embolsaram.”
Como se pode ver, o mercado é a melhor política de redistribuição, portanto, o verdadeiro socialismo. E sobre isso quero contar a minha própria constatação. Em 2019, necessitando de carne de porco para um estabelecimento hoteleiro que possuía, desloquei-me para a famosa praça das batatas, situada no troço que liga o Município do Lubango ao da Chibia. Depois que adquiri o animal, dois jovens ofereceram-se para abater e prepará-lo para estar em condições de consumo. Pelo serviço, eles cobraram-me 2000 Kzs. No entanto, notei que, para os dois jovens cumprirem com o contrato, precisaram subcontratar duas outras senhoras que possuíam uma panela colocada numa fogueira para aquecimento da água e, por esses serviços, eles pagaram 1000Kzs. As duas senhoras, donas da fogueira, por sua vez contrataram outras duas que tinham a função de fornecê-las água para “cozer” o porco e uma outra senhora que fornecia a lenha utilizada para a fogueira. Pagaram pelo serviço cerca de 500 kzs. Por sua vez, as duas senhoras que tinham a função de fornecer água, contaram-me também que, do rendimento que recebiam, teriam de reparti-lo pelo dono da cacimba de onde eles retiravam o precioso líquido. Em suma, os 2 000 kzs destinados para preparar o porco não serviram unicamente para os primeiros contratantes. Seguiram uma cadeia de matadores – as donas da fogueira – as Fornecedoras da água – Fornecedor da lenha – Dono da cacimba. Cada agente dessa cadeia beneficiou dos 2000 kzs, repartido ou, usando o termo predilecto dos socialistas, redistribuído entre eles. Foi um contrato em que eu saí satisfeito porque tinha a carne pronta para comercializá-la e eles por se beneficiarem monetariamente do contrato. Se acrescentarmos a satisfação aos meus clientes e ganhos que também obtive após a comercialização dessa carne, podíamos alargar a cadeia de agentes que se beneficiaram desse único contrato. Podemos ainda falar das externalidades que esse contrato pode causar, nomeadamente estimular a criação de mais animais para a venda futura e, também, um conjunto de produtos ou serviços que completam a transacção, como o fornecimento da batata, tomate, cenoura couves, etc.
Em suma, as assimetrias regiões são, sim, um factor da divisão de trabalho, porque permitem a cooperação entre regiões diferentes e são também um mecanismo de criação de prosperidade social, ao permitirem a redistribuição de rendimentos não só entre indivíduos que vivem no mesmo país, mas também entre indivíduos de diferentes regiões ou países. A internet, as redes sociais, os tablets, computadores, são criações de determinadas pessoas localizadas em determinada região, mas que acabam por criar trabalho, facilitar serviços e a produção em todo mundo. Assim, as assimetrias regionais devem ser vistas apenas como diferentes condições materiais, ou diferentes formas dos homens se ajustarem à natureza. As diferenças entre diferentes regiões ou países não podem ser consideradas como indicadores de pobreza, mas sim como riquezas em suas diversas formas. Não se pode analisar a pobreza utilizando critérios de avaliação de outras civilizações. Cada civilização tem a sua própria forma de riqueza e de adaptação às condições naturais. Uma sociedade com menos condições materiais não é necessariamente pobre. Daí termos conceituado a pobreza como “a condição de um indivíduo ou família, que em determinado tempo e lugar não tem acesso a bens materiais e imateriais disponíveis à maioria e que melhoram a sua qualidade de vida.”
Portanto, a inversão semântica é usada para criar espantalho na mente das pessoas.
Bem, até aqui abordamos as implicações sociais das assimetrias e das desigualdades naturais. Vimos que, derivando da própria natureza, elas são um factor da divisão de trabalho e consequentemente do progresso social. Vale ressaltar também que uma sociedade livre, por sinal desigual e assimétrica, não forma classes sociais específicas e permanentes. Numa cooperação social baseada na divisão de trabalho, o sucesso económico emana sempre do mérito individual. Assim, pela diferenciação física e intelectual entre membros da mesma família, o sucesso económico pode ser alcançado por indivíduos distintos de famílias diferentes. Quer isso dizer que, numa sociedade livre, é difícil, senão mesmo impossível, encontrar uma família inteira bem sucedida economicamente. Isso implica que pessoas ricas ou bem sucedidas economicamente não formam uma classe especifica e permanente numa sociedade livre. Neste sentido, portanto, numa sociedade livre, desigual e assimétrica, ao mesmo tempo em que se eleva o padrão de vida dos membros da sua comunidade, equaliza-se também o padrão de vida, formando uma sociedade sem classes.
Entretanto, a par das desigualdades ou das assimetrias naturais, existem também desigualdades ou assimetrias induzidas ou artificiais, geralmente criadas pela acção do estado. As desigualdades ou assimetrias induzidas ocorrem pela intervenção do estado na escolha individual e na alocação arbitrária de recursos financeiros e materiais para as diferentes regiões. A intervenção nas escolhas individuais impõe um comportamento diferente daquele almejado pelo próprio indivíduo, inibindo-o na busca das soluções para os fins desejados, coarctando, deste modo, a possibilidade de os indivíduos alocarem a sua inteligência e recursos de forma inventiva, com o fim de melhorem o seu padrão de vida. Isso ocorre, por exemplo, com a proibição pelo estado da prática de uma certa actividade comercial, de uma profissão, pelo proteccionismo ou pelo controlo de preços. Com o estado decidindo sobre a vida económica de todos os indivíduos, gera-se uma sociedade em que o sucesso económico depende da concessão política de privilégios, formando assim uma sociedade de classes permanentes e maleáveis de acordo com a vontade do(s) poderoso(s) da vez. A sociedade passa a ser composta por duas classes, sendo uma a privilegiada, isto é, a classe dominante, e a outra, a explorada ou a classe dos sem privilégios.
Essa referida alocação política de recursos ocorre também com a distribuição arbitrária de recursos por região, fazendo com que determinadas regiões sejam mais privilegiadas do que outras. Esses tipos de assimetrias induzidas não apenas criam retrocesso económico e social, como também acentuam as assimetrias entre diferentes regiões dentro do mesmo País. As desigualdades ou assimetrias induzidas são as que caracterizam as sociedades modernas, fazendo com que não haja circulação de classes, o que, em última instância, torna permanente o status dessas classes.
Portanto, o sistema actual de classes só ocorre por responsabilidade e/ou atribuição política de privilégios.
3.2- O MITO DO ESTADO COMO INSTITUIÇÃO ECONÓMICA
Como é sabido, o estado tem sua origem na conquista e mantém-se por meio da exploração. Franz Oppenheimer definia o Estado, quanto à sua origem, como sendo “uma instituição imposta sobre um grupo vencido por um grupo conquistador, com o único fim de sistematizar a dominação dos conquistados e salvaguardar-se contra a insurreição de dentro e ataques de fora.” Por isso, qualquer que seja a actividade exercida pelo estado, terá sempre como fim último a redistribuição. O estado, retira coercivamente os rendimentos dos conquistados (na terminologia antiga) ou dos cidadãos (no actual vocabulário), para distribuir entre si e seus grupos de interesse. Para atingir seus fins, o estado precisa de se auto-legitimar, o que ele faz através da monopolização das actividades ou instituições sociais criadas pelos homens de forma espontânea e voluntária. Uma dessas actividades monopolizadas é a educação. Uma vez monopolizados os serviços educacionais, o estado então obtém uma opinião favorável do público e torna todas as suas actividades legítimas. O processo de legitimação estatal deve também ocorrer com a manipulação semântica, para que à luz do público, a exploração se torne liberdade, os impostos se tornem contribuições voluntárias e símbolos de sociedades civilizadas, e a democracia como um sistema em que todos mandam. Em suma, com a manipulação semântica, populariza-se a ideia de que sem o estado não existiria sociedade, porque nem lei, nem segurança existiriam e que, por isso, os pobres pereceriam porque não haveria instituições de caridade para ampará-los.
Foi preciso o estudo das ciências sociais, especificamente a economia, para refutar completamente essa crença falaciosa.
Segundo o economista americano Lew Rockwell, a rejeição a esse pensamento começou com os cristãos e foi feita em duas perspectivas. “No antigo mundo dos faraós e imperadores romanos, os direitos de uma pessoa eram definidos e ditados pelo estado e era visto como a expressão orgânica das vontades da comunidade, incorporadas na sua classe de líderes. Os monarcas, imperadores e senhores feudais, ditavam o destino de todos os indivíduos. Essa visão foi sendo rejeitada pelo ideário cristão que afirmava que “o estado não era o senhor da alma do indivíduo — a qual possui valor infinito —, e não podia se pretender o dono da consciência de todos.” “Mais tarde, coube aos escolásticos espanhóis e portugueses da escola de Salamanca a constatação de que o funcionamento normal e a evolução da sociedade dependiam das acções espontâneas dos indivíduos agindo em total liberdade, e não sob a orientação de um governo. Esses escolásticos, juntamente com João Calvino, eram inicialmente a favor da usura, embora defendessem sua aplicação excepcional aos pobres. Mais tarde ainda, os escolásticos, continuando com as suas observações aos fenómenos económicos, notaram que “o preço justo era qualquer preço que tivesse sido estabelecido pela “avaliação comum” do livre mercado.” A partir daí, foi ficando claro para esses estudiosos que a responsabilidade de ministrar ensinamentos sobre a usura, isto é, taxas de juros e preços no geral, deve ser precisamente da responsabilidade ou consciência individual e não da igreja ou do estado. Foi dessa constatação que nasceu a ciência económica.
Com o tempo, foi ficando claro para as gerações vindouras a lição de que o governo é desnecessário e que só a liberdade individual harmoniza a sociedade e permite que ela progrida. Foi a partir da disseminação desse ideário do liberalismo, mais tarde bem fundamentado pela revolução marginalista de Menger, Jevons e Walras, que nasceram revoluções sociais depondo tiranos e estabelecendo o livre comércio, resultando em crescimento económico sem precedente e tornando as sociedades mais ricas, pacíficas e livres.” Seguiu-se à revolução marginalista um conjunto de leis e princípios, como a lei da oferta e procura, da preferência intertemporal, a lei de Say, dos rendimentos decrescentes, das vantagens comparativas, todas elas explicando o funcionamento, coesão e o progresso da sociedade, sem qualquer necessidade do estado.
3.3 – O MITO DAS AUTARQUIAS LOCAIS COMO SOLUÇÃO DOS PROBLEMAS ECONÓMICOS
Se atendermos à sua etimologia, o conceito autarquia deriva do latim que significa autonomia ou independência. Invertido que foi o conceito, passou a ter o significado de delegação ou descentralização de poderes. Importa realçar que no contexto angolano, as autarquias não surgiram de uma necessidade concreta ou específica. Elas não representam uma demanda social do nosso contexto, sendo produto da cópia a papel químico da organização política portuguesa e do seu ordenamento jurídico.
Enquadradas dentro da descentralização administrativa, as autarquias surgiram nos ordenamentos das repúblicas europeias no contexto das monarquias absolutas, cuja adopção foi favorecida pela necessidade da unificação nacional dos países europeus, formando condições para o desenvolvimento da descentralização, tanto política como administrativa. A descentralização política realiza-se mediante a introdução do ordenamento regional, enquanto a administrativa apoia-se na valorização das entidades locais já existentes, mediante uma efectiva obra de descentralização interna do aparelho do Estado.
Desse modo, por envolverem a expansão territorial do poder de tributação e regulamentação da propriedade, as autarquias não são um mecanismo para a promoção do crescimento económico. Pelo contrário, o crescimento económico é alcançado pela extensão da divisão interpessoal e inter-regional do trabalho e da participação no mercado. Como diz Hans-Hermann Hoppe, “Em princípio, ao tributar e regulamentar (expropriar) proprietários de propriedades privadas e ganhadores de renda no mercado, todos os governos são contraproducentes. Eles reduzem a participação no mercado e a formação de riqueza económica.”
Fica assim fácil perceber que não existe ligação directa entre a implementação das autarquias locais com a promoção do crescimento e desenvolvimento económicos. Com a implementação das autarquias locais, mais funcionários públicos serão necessários e também mais cargos políticos serão criados. As autarquias locais também irão demandar por mais serviços sociais estatais, o que na prática irá requerer a ampliação da arrecadação. Então, mais legislação será necessária para regular e tributar os apropriadores originais, produtores e permutadores voluntários. Assim, mais riqueza será consumida pelo estado, promovendo mais poder estatal e menos divisão do trabalho.
Importa ainda realçar que, enquanto mecanismo de descentralização administrativa, as autarquias locais não possuem qualquer poder decisório. Elas são apenas um instrumento de execução da despesa e consumo de riqueza. Não têm qualquer poder político para influenciar alguma decisão política. De recordar que, para terem poder político, elas teriam de ter o poder de tributar e de legislar. Desprovidas desse poder, elas são apenas demandantes da maior tributação e regulação da propriedade privada, promovendo desse modo maior consumo da riqueza produzida e consequentemente semeando a pobreza social. Com a implementação das autarquias locais, o poder político decisório continuará centralizado e, assim, aqueles que detêm o poder político continuarão a se beneficiar mais da fatia arrecadada do que outros. Quer dizer que as autarquias locais não são um mecanismo de equalizar as assimetrias regionais, na medida em que elas não possuem qualquer poder decisório e ainda pelo facto de não serem um mecanismo de integração económica por meio da divisão interpessoal e inter-regional do trabalho.
Pode sim ser estabelecida alguma relação indirecta entre o desenvolvimento económico e a descentralização política. Se as autarquias locais fossem dotadas de autonomia e houvesse uma mudança de controlo sobre a riqueza nacionalizada de um governo central maior para um governo regional menor, haveria sim alguma ligação directa para uma maior integração económica. Embora essa integração económica dependa das políticas de cada entidade autárquica ou independente, a descentralização política por si só já tem um impacto positivo imediato na produção, pois, como diz Hans-Hermann Hoppe, uma das suas razões mais importantes é tipicamente a crença por parte dos separatistas de que eles e seu território estão sendo explorados por outros. Continuando, Hoppe conta que a secessão sempre envolve maiores oportunidades de migração inter-regional, e um governo separatista é imediatamente confrontado com o espectro da emigração. Para evitar a perda de seus súditos mais produtivos, está sob crescente pressão para adoptar políticas domésticas comparativamente liberais, permitindo mais propriedade privada e impondo uma carga tributária e regulatória mais baixa do que a dos seus vizinhos.
Outra vantagem da descentralização política apontada por Hoppe é que, quanto menor o país, maior será a pressão para optar pelo livre comércio em vez do proteccionismo, o que também promove maior divisão interpessoal e inter-regional da divisão de trabalho. A secessão também aumenta a diversidade cultural ao permitir que localidades autárquicas valorizem mais a sua própria cultura, o que não ocorre num ambiente de centralização em que muitas culturas são subjugadas.
Portanto, enquadradas no âmbito da descentralização administrativa, as autarquias locais são um instrumento de consumo de riqueza gerada pelo mercado, o que não permite relacioná-las como mecanismo de criação de riqueza social. No âmbito da descentralização política, pode-se sim estabelecer alguma relação indirecta entre o crescimento económico e as autarquias locais, pois, agentes estatais independentes e pequenos tendem a tributar menos, têm maior sensibilidade em adoptar o comércio livre e também tendem a produzir mais, pelo facto de não existir a ideia de exploração racial, clássica ou étnica. Por isso, ao contrário do que muitos pensam, a separação e a formação de estados pequenos promovem mais liberdade e consequentemente mais prosperidade económica e social do que estados gigantes e altamente centralizados.
Se é bem verdade que a secessão fornece mais viabilidade económica e produz paz social, resta-nos saber como deve a descentralização política ser adoptada tendo em conta cada contexto? Numa realidade como é a do nosso País, marcado por um conjunto de etnias unidas à força por fronteiras artificiais, feitas por colonizadores, onde podemos encontrar comunas, municípios e províncias habitadas por dezenas de grupos etnolinguísticos, sendo estes muitas vezes com muitas diferenças culturais, como poderemos adoptar um modelo político ideal para termos uma ordem social justa e próspera? Como tornar viável a democracia numa província como é o Cunene, que tem vários grupos étnicos como os Kwanhamas, Humbis, que muito diferem culturalmente? Como tornar pacífica a democracia dentro do grupo étnico dos ambós ou ovambo, composto por doze tribos nomeadamente, Donga, Cuâmbi, Gandjela, Cualuthi, Balântu, Calucatsi, Eunda, Dombondola, Cuamátui ou Ombadya, Cuanhama, Evale, e Cafima, com algumas diferenças culturais, cada grupo tendo sua própria Ombala com fronteiras bem demarcadas?
O município de Chicomba possui três grupos etnolinguísticos, sendo os Humbis, Umbundos e os Tchokues. Sendo naturalmente que um grupo seja predominante, haverá maior probabilidade do grupo maioritário ganhar constantemente eleições autárquicas. Isso não geraria conflitos étnicos dentro desse Município?
Encontrar um modelo político ajustável à realidade de cada circunscrição geográfica é o grande desafio da nossa sociedade.
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Notas
[1] Hans-Hermann Hoppe, A Economia e a Ética da Propriedade Privada – São Paulo: Instituto Rothbard, 2021.