Capítulo 31: Propriedade e Troca

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[Reproduzido de Por uma nova liberdade – O Manifesto Libertário (1973, 1978; Auburn, Alabama: Mises Institute, 2006), cap. 2.]

 

O AXIOMA DA NÃO-AGRESSÃO

O credo libertário está baseado num axioma central: o de que nenhum homem ou grupo de homens pode cometer uma agressão contra a pessoa ou a propriedade de qualquer outro. Ele pode ser chamado de “axioma da não-agressão”. “Agressão” é definida como o uso ou ameaça de violência física contra a pessoa ou propriedade de qualquer outro indivíduo. Agressão, portanto, é um sinônimo de invasão.

Se nenhum homem pode cometer uma agressão contra outro; se, em suma, todos têm o direito absoluto de estarem “livres” da agressão, então isto implica diretamente que o libertário se encontra firmemente ao lado daquelas que geralmente costumam se chamar “liberdades civis”: a liberdade de falar, publicar, se reunir, e se envolver em qualquer um dos chamados “crimes sem vítima”, como pornografia, desvios sexuais, e prostituição (que o libertário não vê como “crimes” em absoluto, uma vez que ele define “crime” como uma invasão violenta da pessoa ou propriedade de outro indivíduo). Além do mais, ele vê o alistamento militar compulsório como uma forma de escravidão em escala colossal. E uma vez que a guerra, especialmente as guerras modernas, provoca a matança em massa de civis, o libertário vê tais conflitos como assassinatos em massa e, portanto, totalmente ilegítimos.

Hoje em dia todas estas posições são consideradas “esquerdistas”, na balança ideológica contemporânea. Por outro lado, como o libertário também se opõe à invasão dos direitos da propriedade privada, isto também significa que ele se opõe com a mesma ênfase à interferência do governo nos direitos de propriedade ou na economia de livre mercado através de controles, regulamentações, subsídios ou proibições; pois se todo indivíduo tem o direito de possuir sua própria propriedade sem sofrer depredações agressivas, ele, portanto, também tem o direito de dar sua propriedade (legado ou herança) e de trocá-la pela propriedade de outros indivíduos (livre contrato e a economia de livre mercado) sem interferência. O libertário favorece o direito da propriedade privada sem restrições e da livre troca; um sistema, portanto, de “capitalismo de laissez-faire”.

Novamente, na terminologia corrente, a posição libertária a respeito de propriedade e economia seria chamada de “extrema direita”. O libertário, no entanto, não vê inconsistência alguma em ser “esquerdista” em algumas questões e “direitista” em outras. Pelo contrário, ele vê a sua própria posição como sendo virtualmente a única consistente, consistente com os interesses da liberdade de cada indivíduo, pois como pode o esquerdista se opor à violência da guerra e do alistamento militar compulsório mesmo apoiando a violência da taxação e do controle governamental? E como pode o direitista alardear sua devoção à propriedade privada e à livre iniciativa mesmo quando favorece a guerra, o alistamento compulsório e o banimento de atividades não-invasivas e práticas que ele julga imorais? E como pode o direitista ser a favor de um livre mercado mesmo quando não vê nada de errado nos enormes subsídios, distorções e ineficiências improdutivas que envolvem o complexo militar-industrial?

Ao mesmo tempo em que se opõe a toda e qualquer agressão, privada e coletiva, contra os direitos da pessoa, o libertário vê que ao longo da história e até os dias de hoje existiu um agressor central, dominante e preponderante sobre todos esses direitos: o estado. Diferentemente de todos os outros pensadores, sejam eles de esquerda, de direita ou entre ambos, o libertário se recusa a conceder ao estado a sanção moral para cometer atos que quase todos concordam que seriam imorais, ilegais e criminosos, se fossem cometidos por qualquer pessoa ou grupo na sociedade. O libertário, em suma, insiste em aplicar a lei moral geral a todos, e não permite isenções especiais a nenhuma pessoa ou grupo. Porém, se examinarmos o estado nu, por assim dizer, veremos que ele recebe permissão universal, e é até mesmo encorajado, a cometer todos os atos que até mesmo os não-libertários admitem ser crimes repreensíveis. O estado habitualmente comete assassinatos em massa, que ele chama de “guerra”, ou, por vezes, de “supressão da subversão”; o estado emprega a escravidão em suas forças militares, que ele chama de “alistamento militar obrigatório”; e ele vive e subsiste através da prática do roubo à força, que ele chama de “imposto”. O libertário insiste que o fato da maioria da população apoiar ou não estas práticas não têm nenhuma relação com sua natureza; que, a despeito da sanção popular, guerra é assassinato em massa, alistamento é escravidão, e imposto é roubo. O libertário, em suma, é quase que perfeitamente aquela criança da fábula, avisando insistentemente que o imperador está sem roupas.

Ao longo dos tempos, o imperador teve uma série de pseudorroupas que lhe foram fornecidas pela casta intelectual da nação. Em séculos passados, os intelectuais informavam o público que o estado ou seus governantes eram divinos, ou, pelo menos, estavam investidos da autoridade divina e, portanto, o que poderia parecer ao olho ingênuo e inculto como despotismo, assassinato em massa e roubo em grande escala era apenas o divino agindo de sua maneira misteriosa e benigna sobre o corpo político. Nas últimas décadas, à medida que a sanção divina começou a ficar um pouco puída, os “intelectuais da corte” do imperador começaram a tecer apologias cada vez mais sofisticadas, informando o público que o que o governo faz é para o “bem comum” e para o “bem-estar público”, que o processo de taxação-e-gastos funciona por meio do misterioso processo do “multiplicador” para manter a economia equilibrada, e que, de qualquer maneira, uma vasta gama de “serviços” governamentais não poderia ser executada apenas por cidadãos agindo voluntariamente, no mercado ou na sociedade. Tudo isto é negado pelo libertário; ele vê estas diversas apologias como meios fraudulentos de obter o apoio do público ao governo do estado, e insiste que quaisquer serviços que o governo possa de fato realizar poderiam ser fornecidos de maneira muito mais eficiente e muito mais moral pela iniciativa privada e cooperativa.

O libertário considera, portanto, uma de suas tarefas educacionais primordiais espalhar a desmistificação e dessantificação do estado entre seus súditos desafortunados. Sua tarefa é demonstrar repetidamente, e a fundo, que não apenas o imperador, mas até mesmo o estado “democrático” está sem roupas; que todos os governos subsistem através do domínio explorador sobre o público; e que este domínio é o inverso da necessidade objetiva. Ele luta para mostrar que a própria existência dos impostos e do estado instaura, obrigatoriamente, uma divisão de classes entre os governantes exploradores e os governados explorados. Ele procura mostrar que a tarefa dos intelectuais da corte que constantemente apoiaram o estado sempre foi a de tecer mistificações para induzir o público a aceitar o governo do estado, e que estes intelectuais obtêm, em troca, uma parcela do poder e da pilhagem extraída pelos governantes de seus súditos iludidos.

Pegue-se, por exemplo, a instituição do imposto, que os estatistas alegam ser, de certa forma, realmente “voluntária”. Qualquer um que realmente acredita na natureza “voluntária” dos impostos está convidado a se recusar a pagar seus impostos e ver o que acontecerá a ele. Se analisarmos a taxação, descobriremos que, entre todas as pessoas e instituições da sociedade, apenas o governo obtém seus rendimentos através da violência coercitiva. O restante da sociedade obtém sua renda ou por meio de doações voluntárias (associações, instituições de caridade, clubes de xadrez) ou por meio da venda de mercadorias ou serviços adquiridos voluntariamente por consumidores. Se qualquer um além do governo começasse a “taxar”, seria evidentemente acusado de coerção e de um banditismo levemente disfarçado. No entanto, os adornos místicos da “soberania” encobriram de tal maneira o processo que apenas os libertários estão preparados para chamar o imposto do que ele é: roubo, legalizado e organizado, em grande escala.

 

DIREITOS DE PROPRIEDADE

Se o axioma central do credo libertário é a não-agressão contra a pessoa e a propriedade de qualquer indivíduo, como é que se chegou a este axioma? Qual é seu fundamento ou sua base? Neste ponto os libertários, tanto do passado quanto do presente, diferem consideravelmente. Resumidamente, existem três tipos amplos de fundação para o axioma libertário, que correspondem a três tipos de filosofia ética: o ponto de vista emotivista, o utilitário, e o dos direitos naturais. Os emotivistas afirmam que tomam a liberdade ou a não-agressão como sua premissa unicamente por motivos subjetivos, emocionais. Embora sua própria emoção intensa possa parecer uma base válida para sua própria filosofia política, ela dificilmente serve para convencer qualquer outra pessoa. Na medida em que se colocam, basicamente, fora do terreno do discurso racional, os emotivistas acabam por garantir o insucesso da doutrina que tanto estimam.

Os utilitários declaram, a partir de seu estudo das consequências da liberdade quando justaposta a sistemas alternativos, que a liberdade levará com mais segurança às metas aprovadas: harmonia, paz, prosperidade, etc. Evidentemente ninguém discute que as consequências relativas devam ser estudadas ao se avaliar os méritos ou deméritos de seus respectivos credos, contudo existem diversos problemas em confinarmos a uma ética utilitária. Um dos motivos é o de que o utilitarismo presume que podemos pesar as alternativas, e decidir a respeito de políticas, com base em suas consequências boas ou más. Mas se é legítimo aplicar julgamentos de valor às consequências de X, por que não seria igualmente legítimo aplicar estes julgamentos ao próprio X? Não haverá algo inerente ao próprio ato que possa ser considerado bom ou mau?

Outro problema com o utilitário é que ele dificilmente adotará algum princípio como um padrão de medida absoluto ou consistente a ser utilizado nas diversas situações concretas do mundo real. Ele apenas utilizará um princípio, na melhor das hipóteses, como uma aspiração ou diretriz vaga, uma tendência que ele pode optar por ignorar a qualquer momento. Este foi o principal defeito dos Radicais ingleses do século XIX, que haviam adotado o ponto de vista laissez-faire dos liberais do século XVIII, mas que optaram por um utilitarismo supostamente “científico” no lugar do conceito supostamente “místico” dos direitos naturais como fundamento para a sua filosofia. Desta maneira, os liberais do laissez-faire do século XIX passaram a usar o laissez-faire como uma tendência vaga, e não como um padrão de medida imaculado, comprometendo desta forma, de maneira crescente e fatal, o credo libertário. Dizer que não se pode “confiar” num utilitarista para manter o princípio libertário em cada uma de suas aplicações específicas pode soar duro, mas é uma maneira justa de apresentar o caso. Um célebre exemplo contemporâneo é o professor Milton Friedman, um economista adepto do mercado livre que, como os economistas clássicos que o antecederam, se apega à liberdade contra a intervenção do estado como uma tendência geral, porém, na prática, permite uma miríade de exceções danosas, exceções que servem para corromper quase que totalmente o princípio, especialmente nos campos dos assuntos policiais e militares, educação, impostos, bem-estar social, “efeitos de vizinhança”, leis antitruste, e o dinheiro e sistema bancário.

Consideremos um exemplo cabal: suponhamos uma sociedade que considera fervorosamente que todos os ruivos são agentes do demônio e, portanto, devem ser executados sempre que forem encontrados. Presumamos então que existe apenas um número pequeno de ruivos em qualquer geração – poucos demais para serem significantes, estatisticamente. O libertário-utilitarista poderia muito bem argumentar: “embora o assassinato de ruivos seja, quando examinado isoladamente, deplorável, as execuções são pouco numerosas; a imensa maioria do público, enquanto não-ruivos, obtém uma enorme satisfação psíquica da execução pública dos ruivos. O custo social é desprezível, e o benefício social e psíquico para o resto da sociedade é grande; logo, a execução dos ruivos é correta e apropriada para a sociedade.” O libertário dos direitos naturais, como está esmagadoramente preocupado com a justiça do ato, reagirá com horror, e se oporá de maneira firme e inequívoca contra as execuções, sendo elas assassinatos totalmente injustificados e uma agressão cometida contra pessoas que a princípio não são agressivas. A consequência da interrupção destes assassinatos – privar a maior parte da sociedade de um grande prazer psíquico – não influenciaria em absoluto este libertário, o libertário “absolutista”. Dedicado à justiça e à consistência lógica, o libertário dos direitos naturais admite tranquilamente que é “doutrinário”, que é, em suma, um seguidor impassível de suas próprias doutrinas.

Voltemo-nos então à base de direitos naturais para o credo libertário, uma base que, de uma forma ou outra, foi adotada pela maioria dos libertários, no passado ou no presente. Os “direitos naturais” são a pedra fundamental de uma filosofia política que, por sua vez, está incrustada numa estrutura política superior, a da “lei natural”. A teoria da lei natural se apoia na constatação de que vivemos num mundo composto por mais de uma – na realidade, um número imenso – de entidades, e que cada entidade tem propriedades distintas e específicas, uma “natureza” distinta, que pode ser investigada pela razão do homem, por suas percepções sensoriais e por suas faculdades mentais. O cobre tem uma natureza distinta e se comporta de uma maneira distinta, e o mesmo ocorre com o ferro, o sal etc. A espécie humana, da mesma maneira, tem uma natureza específica, da mesma maneira que o mundo que a cerca e as maneiras como eles interagem. Resumindo de maneira excessiva: a atividade de cada entidade inorgânica e orgânica é determinada por sua própria natureza e pela natureza de outras entidades com a qual ela entra em contato. Mais especificamente, enquanto o comportamento das plantas e de pelo menos os animais mais inferiores é determinado por sua natureza biológica, ou talvez pelos seus “instintos”, a natureza do homem é tal que cada indivíduo deve, ao agir, escolher seus próprios fins e utilizar-se de seus próprios meios para atingi-los. Como não possui instintos automáticos, cada homem deve aprender sobre si mesmo e sobre o mundo, utilizar sua mente para escolher valores, aprender sobre causa e consequência, e agir de uma maneira intencional para se manter e levar sua vida adiante. Como os homens podem pensar, sentir, avaliar e agir apenas como indivíduos, torna-se vitalmente necessário para a sobrevivência e a prosperidade de cada homem que ele tenha a liberdade de aprender, escolher e desenvolver suas faculdades, e aja a partir de seu conhecimento e seus valores. Este é o caminho necessário da natureza humana; interferir com este processo e danificá-lo através do uso da violência vai profundamente contra o que é necessário, na própria natureza humana, para a sua vida e prosperidade. A interferência violenta no aprendizado e nas escolhas de um homem é, portanto, profundamente “anti-humana”; ela viola a lei natural das necessidades do homem.

Os individualistas sempre foram acusados por seus inimigos de serem “atomísticos” – de postularem que cada indivíduo vive numa espécie de vácuo, pensando e escolhendo sem relações com qualquer outra pessoa na sociedade. Esta, no entanto, é uma falácia autoritária; poucos individualistas foram “atomistas”, se é que algum já o foi. Pelo contrário, é evidente que os indivíduos sempre aprendem uns com os outros, cooperam e interagem uns com os outros, e que isto, também, é necessário para a sobrevivência do homem. O ponto, no entanto, é que cada indivíduo é responsável pela escolha final de quais influências ele adotará e rejeitará, ou de qual ele adotará inicialmente e rejeitará posteriormente. O libertário vê com bons olhos o processo de cooperação e intercâmbio voluntário entre indivíduos que agem livremente; o que ele abomina é o uso de violência para danificar esta cooperação voluntária e forçar alguém a escolher e agir de uma maneira diferente do que dita a sua própria mente.

O método mais viável de se elaborar uma declaração de direitos naturais da posição libertária é dividi-la em partes, começando com o axioma básico do “direito à autopropriedade”. O direito à autopropriedade assegura o direito absoluto de cada homem, devido a ele (ou ela) ser um ser humano, de ter a “propriedade” de seu próprio corpo; isto é, controlar este corpo livre de qualquer interferência coercitiva. Uma vez que cada indivíduo deve pensar, aprender, dar valor e escolher os seus fins e meios de um modo que lhe permita sobreviver e florescer, o direito à autopropriedade dá ao homem o direito de executar estas atividades vitais sem ser impedido ou restringido pelo assédio coercitivo.

Consideremos, também, as consequências de se negar a todos os homens o direito de ter a propriedade de sua própria pessoa. Existem então apenas duas alternativas; ou (1) uma certa categoria de pessoas, A, tem o direito de ter a propriedade sobre outra classe, B; ou (2) todos têm o direito de possuir sua própria fração de propriedade sobre todos os outros indivíduos. A primeira alternativa implica que enquanto a Classe A merece o direito de ser humana, a Classe B é, na realidade, sub-humana e, como tal, não merece estes direitos. Porém, como eles de fato são seres humanos, a primeira alternativa se contradiz ao negar direitos humanos a um conjunto de humanos. Além do mais, como veremos, permitir que a Classe A tenha posse sobre a Classe B significa que a primeira tem a permissão de explorá-la, e, portanto, viver de maneira parasítica, à custa da segunda. Este próprio parasitismo, no entanto, viola as necessidades econômicas básicas da vida: produção e trocas.

A segunda alternativa, o que poderíamos chamar de “comunalismo participativo” ou “comunismo”, sustenta que todos os homens deveriam ter o direito de possuir a propriedade de uma parcela igual de todos os outros. Se existem dois bilhões de pessoas no mundo, então todos têm o direito de ter um bilionésimo de cada uma dessas outras pessoas. Em primeiro lugar, podemos afirmar que este ideal se sustenta sobre um disparate; afirma que cada homem tem o direito de ter propriedade sobre parte de todos os outros, e, no entanto, ele não tem o direito de ter propriedade sobre si mesmo. Em segundo lugar, podemos visualizar a viabilidade de um mundo como este: um mundo em que nenhum homem está livre para tomar qualquer atitude sem conseguir antes a aprovação ou, na realidade, ser assim ordenado por todos os outros membros da sociedade. Deveria ser claro que neste tipo de mundo “comunista”, ninguém seria capaz de fazer nada, e a raça humana pereceria rapidamente. Porém, se um mundo de zero autopropriedade e um mundo de cem por cento da propriedade dos outros significaria a morte da raça humana, então quaisquer passos rumo a estas direções também contradizem a lei natural sobre o que é melhor para o homem e sua vida na Terra.

Finalmente, o mundo comunista participativo não pode ser colocado em prática; pois é fisicamente impossível para todos manter o controle contínuo sobre todos os outros, e exercitar, assim, sua fração igualitária de propriedade parcial sobre todos os outros homens. Na prática, portanto, o conceito de propriedade universal e igualitária sobre os outros é utópica e impossível, e a supervisão e o decorrente controle e propriedade sobre os outros recairia necessariamente sobre um grupo especializado de pessoas, que acabaria por se tornar uma classe dominante. Assim, na prática, qualquer tentativa de governo comunista automaticamente se torna um governo de classes, e nos remeteria à primeira alternativa.

O libertário rejeita, portanto, estas alternativas, e conclui ao adotar como seu axioma primário o direito universal à autopropriedade, um direito possuído por todos pelo simples motivo de ser um ser humano. Uma tarefa mais difícil é a de se chegar a um acordo a respeito da propriedade sobre objetos não-humanos, sobre as coisas desta Terra. É comparativamente fácil reconhecer, na prática, quando alguém está cometendo uma agressão contra o direito de propriedade de outra pessoa: se A agride B, ele está violando o direito de propriedade B sobre seu próprio corpo. Porém, com objetos não-humanos o problema se torna mais complexo. Se, por exemplo, vemos X pegando um relógio que é de propriedade de Y, não podemos presumir automaticamente que X está cometendo uma agressão contra o direito de propriedade de Y sobre o relógio; pois não poderia X ser o proprietário “verdadeiro”, original, do relógio, e que estaria apenas retomando a posse de sua propriedade legítima? Para se chegar a uma decisão, precisamos de uma teoria de justiça sobre a propriedade, uma teoria que nos diga se X, Y ou qualquer outra pessoa é o proprietário legítimo.

Alguns libertários tentaram resolver o problema presumindo que quem quer que o governo existente determine possuir o título de propriedade deverá ser considerado o proprietário legítimo dessa propriedade. Até agora, não investigamos profundamente a respeito da natureza do governo, porém, a anomalia aqui deveria ser suficientemente clara; seria seguramente estranho encontrar um grupo de pessoas eternamente desconfiadas de virtualmente todas e quaisquer funções do governo repentinamente deixar a cabo do governo definir e aplicar o precioso conceito de propriedade, base e fundamento de toda a ordem social. São especificamente os utilitaristas do laissez-faire que acreditam ser mais plausível dar início ao novo mundo libertário confirmando todos os títulos de propriedade já existentes; isto é, direitos e títulos de propriedade tais como decretados pelo próprio governo que é condenado como um agressor crônico.

Ilustremos com um exemplo hipotético. Suponhamos que a agitação e a pressão libertária tenham chegado a tal ponto que o governo e seus diversos ramos estejam prontos para abdicar. Porém, eles engendram um astucioso ardil: pouco antes do governo do estado de Nova York abdicar, ele aprova uma lei que torna toda a área territorial de Nova York propriedade privada da família Rockefeller. Os legisladores de Massachusetts fazem o mesmo com a família Kennedy. E assim por diante, em todos os estados. O governo poderia então abdicar e decretar a abolição dos impostos e das legislações coercitivas, no entanto, os libertários vitoriosos agora se deparariam com um dilema: deveriam reconhecer os novos títulos de propriedade como propriedades privadas legítimas? Os utilitaristas, que não possuem nenhuma teoria de justiça a respeito de direitos de propriedade o fariam, se se mantivessem consistentes com sua aceitação do direito do governo de conceder os títulos de propriedade, e teriam de aceitar uma nova ordem social na qual, 50 novos sátrapas coletariam impostos na forma de um “aluguel” imposto de maneira unilateral. O ponto é que apenas os libertários de direitos naturais, apenas aqueles libertários que realmente têm uma teoria de justiça a respeito de títulos de propriedade que não depende de decretos governamentais, estariam numa posição que lhes permitiria desdenhar das pretensões destes novos governantes de considerar o território do país como sua propriedade privada, e de rejeitar como inválidas tais pretensões. Como o grande liberal do século XIX, lorde Acton, via claramente, a lei natural fornece a única base segura para uma crítica contínua das leis e decretos governamentais.[1] Qual, especificamente, é a posição dos direitos naturais a respeitos dos títulos de propriedade é a questão para a qual agora nos voltamos.

Estabelecemos o direito de cada indivíduo à autopropriedade, a um direito de propriedade sobre seu próprio corpo e pessoa. Contudo, as pessoas não são espectros flutuantes; não são entidades autossubsistentes; podem apenas sobreviver e florescer ao confrontar o mundo que as cerca. Precisam, por exemplo, estar em locais físicos; do mesmo modo, precisam, para poder sobreviver e se sustentar, transformar os recursos que lhes são dados pela natureza em “bens de consumo”, em objetos que lhes sejam mais apropriados para o uso e consumo. A comida deve ser cultivada e consumida; minerais devem ser extraídos do solo e então transformados em capital e outros bens de consumo mais úteis, e assim por diante. O homem, em outras palavras, não deve apenas ser proprietário de sua própria pessoa, mas também de objetos materiais que possa controlar e utilizar. Como, então, devem ser alocados os títulos de propriedade destes objetos?

Tomemos, como nosso primeiro exemplo, um escultor que fez uma obra de arte a partir da argila e de outros materiais; e abdiquemos, por ora, da questão dos direitos de propriedade originais a respeito da argila e das ferramentas do escultor. A questão então se torna: quem é o proprietário da obra de arte à medida que ela surge a partir da confecção do escultor? Ela é, na realidade, a “criação” do escultor, não no sentido de que ele criou a matéria, mas no sentido de que ele transformou a matéria fornecida pela natureza – a argila – em outra forma, ditada por suas próprias ideias e moldadas por suas próprias mãos e energia. Seguramente seria difícil encontrar uma pessoa que, depois de ver o caso ser apresentado desta maneira, afirmaria que o escultor não tem o direito de propriedade sobre seu próprio produto. Seguramente, se todo homem tem o direito de ter a propriedade sobre seu próprio corpo, e se ele deve lidar com os objetos materiais do mundo para sobreviver, então o escultor tem o direito de possuir o produto que ele fez, através de sua própria energia e esforço, uma genuína extensão de sua própria personalidade. Ele colocou o selo de sua própria pessoa sobre o material cru, ao “misturar seu trabalho” com a argila, nas palavras do grande teórico da propriedade, John Locke. E o produto transformado por sua própria energia se tornou a manifestação material das ideias e da visão do escultor. John Locke apresentou assim o caso:

. . . cada um guarda a propriedade de sua própria pessoa; sobre esta ninguém possui nenhum direito exceto ela. Podemos dizer que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua. Sempre que ele tira um objeto do estado em que a natureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua propriedade. Ao remover este objeto do estado comum em que a natureza o colocou, através do seu trabalho adiciona-lhe algo que excluiu o direito comum dos outros homens. Sendo este trabalho uma propriedade inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o direito ao que o trabalho lhe acrescentou.[2]

Como no caso da propriedade dos corpos das pessoas, temos aqui três alternativas lógicas: (1) ou o transformador, ou “criador”, tem o direito de propriedade sobre sua criação; ou (2) outro homem ou grupo de homens têm o direito sobre esta criação, ou seja, têm o direito de se apropriar dela à força sem o consentimento do escultor; ou (3) todos os indivíduos do mundo têm uma parcela igual de propriedade sobre aquela escultura—a solução “comunal”. Novamente, colocando de uma maneira grosseira, existem poucos que não reconheceriam a injustiça monstruosa de se confiscar a propriedade do escultor, seja por uma ou mais pessoas, ou em nome do mundo como um todo. Com que direito o fazem? Com que direito se apropriam para si próprios do produto da mente e energia do criador? Neste caso claro, o direito do criador de possuir aquilo ao qual ele misturou sua pessoa e seu trabalho seria geralmente reconhecido. (Mais uma vez, como no caso da propriedade comunal de pessoas, a solução comunal do mundo acabaria sendo, na prática, reduzida a uma oligarquia de alguns poucos se apropriando da obra do criador em nome da propriedade “pública mundial”.)

O ponto principal, no entanto, é que o caso do escultor não é diferente, qualitativamente, de todos os casos de “produção”. O homem ou os homens que extraíram a argila do solo e a venderam ao escultor podem não ser tão “criativos” quanto o escultor, mas também são “produtores”, eles também misturaram suas ideias e seu know-how tecnológico com o solo dado pela natureza para aparecer com um produto útil. Eles também são “produtores”, e também misturaram seu trabalho com materiais naturais para transformar estes materiais em bens e serviços mais úteis. Estas pessoas também têm o direito à propriedade de seus produtos. Quando, então, se inicia o processo?

Se todo homem tem a propriedade sobre sua própria pessoa, e, portanto, sobre seu próprio trabalho, e se, por consequência, ele possui toda propriedade que ele tenha “criado” ou coletado de um “estado natural” até então desprovido de uso ou propriedade, então como responder à última grande questão: o direito de possuir ou controlar a própria terra? Em suma, se o coletor tem o direito de possuir as bolotas ou bagas que coletou, ou o fazendeiro tem o direito de possuir sua safra de trigo ou pêssegos, quem tem o direito de possuir a terra na qual estas coisas cresceram? É neste ponto que Henry George e seus seguidores, que até então estavam junto com os libertários, abandonaram a pista e passaram a negar o direito do indivíduo de possuir o próprio pedaço de terra, o solo no qual estas atividades foram realizadas. Os georgistas afirmavam que, embora todo homem possa possuir os bens que ele produz ou cria, uma vez que a Natureza ou Deus criaram a própria terra, nenhum indivíduo tem o direito de assumir para si a propriedade daquela própria terra. Ainda assim, se a terra tem de ser utilizada de uma maneira minimamente eficiente, ela deve ser possuída ou controlada por alguém ou algum grupo, e novamente nos deparamos com nossas três alternativas: ou a terra pertence a quem primeiro a utilizou, o homem que primeiro lhe tornou produtiva; ou ela pertence a um grupo de outros indivíduos; ou ela pertence ao mundo como um todo, e cada indivíduo possui uma parte fracionária de todo acre de terra. A opção de George pela última solução dificilmente soluciona seu problema moral: se a própria terra pertence a Deus ou à Natureza, então por que seria mais moral que cada acre de terra no mundo pertencesse ao mundo como um todo do que conceder a propriedade individual? Novamente, na prática, é obviamente impossível que cada pessoa no mundo exerça de maneira efetiva a propriedade de sua parcela de quatro bilionésimos (se a população do mundo for de, digamos, quatro bilhões) de cada pedaço da superfície da terra. Na prática, obviamente, uma pequena oligarquia acabaria por controlar e deter essa propriedade, e não o mundo como um todo.

Além, no entanto, destas dificuldades encontradas na posição georgista, a justificativa dos direitos naturais para a propriedade da terra é a mesma justificativa que a propriedade original de qualquer outra propriedade, pois, como vimos, nenhum produtor realmente “cria” a matéria; ele pega a matéria que foi fornecida pela natureza e a transforma, através da energia de seu trabalho, de acordo com suas ideias e sua visão. Porém, é exatamente isto que o pioneiro—o “apropriador original”[3]— faz quando ele passa uma terra que até então não era utilizada para sua própria propriedade privada. Assim como o homem que forja o aço a partir do minério de ferro o faz através de seu know-how e com sua energia, e assim como o homem que extrai o ferro do solo, o proprietário faz o mesmo quando roça, cerca, cultiva ou constrói sobre a terra. O apropriador original da terra, da mesma forma, transformou o caráter do solo fornecido pela natureza através de seu trabalho e de sua personalidade. O apropriador original da terra é dono de sua propriedade de maneira tão legítima quanto o escultor ou o fabricante; ele é tão “produtor” quanto os outros.

Além disso, se a terra original é dada pela natureza – ou por Deus – então igualmente o são os talentos, a saúde e a beleza das pessoas. E assim como estes atributos são dados a determinados indivíduos e não à “sociedade”, então o mesmo se dá com os recursos naturais e com a terra. Todos estes recursos são dados a indivíduos, e não à “sociedade”, uma abstração que não existe de fato. Não há uma entidade existente chamada “sociedade”; existem apenas indivíduos que interagem entre si. Afirmar que a “sociedade” deveria ter a propriedade de terra ou de qualquer outra propriedade em comum, portanto, significaria que um grupo de oligarcas—na prática, burocratas do governo—deveria deter a posse dessa propriedade, e à custa da expropriação do criador ou do proprietário de terras que trouxe, originalmente, este produto à existência.

Além do mais, ninguém pode produzir qualquer coisa sem a cooperação da terra original, nem que apenas como espaço físico para fazê-lo. Homem algum pode produzir ou criar algo unicamente através de seu trabalho; ele precisa da cooperação da terra e de outras matérias-primas naturais.

O homem vem ao mundo com apenas ele próprio e o mundo ao seu redor—a terra e os recursos naturais que lhe são dados pela natureza. Ele pega estes recursos e os transforma, através de seu trabalho, sua mente e sua energia, em bens que são mais úteis para o homem. Se um indivíduo, portanto, não pode possuir a terra original, ele tampouco poderá, no sentido pleno, possuir qualquer um dos frutos de seu trabalho. O fazendeiro não poderá ter a propriedade do trigo que colher se ele não puder ter a posse da terra na qual aquele trigo cresceu. Agora que seu trabalho foi misturado de maneira inextricável com a terra, ele não pode ser privado de um sem ser privado do outro.

Além do mais, se um produtor não tiver direito aos frutos de seu trabalho, quem deverá ter? É difícil perceber por que um bebê recém-nascido paquistanês deveria ter uma reivindicação moral por uma parcela fracionária de direito sobre uma terra no Iowa que alguém transformou num trigal—e vice-versa, evidentemente, no caso de um bebê do Iowa e uma fazenda no Paquistão. A terra, em seu estado original, não tem uso nem proprietário. Os georgistas e outros comunalistas da terra podem alegar que, na verdade, toda a população mundial a “possui”, porém, se ninguém ainda a usou, ninguém a possui e controla de fato. O pioneiro, o apropriador original da terra, aquele que primeiro a usou e transformou, é quem primeiro deu àquela coisa simples e sem valor um uso social e produtivo. É difícil de ver a moralidade em privá-lo da propriedade em nome de pessoas que nunca chegaram a uma milha de distância daquela terra, e podem nem mesmo saber da existência da propriedade sobre a qual elas supostamente têm direito.

A questão moral, de direitos naturais, abordada aqui fica ainda mais clara se considerarmos o caso dos animais. Os animais são “terra econômica”, uma vez que são recursos originais dados pela natureza. Alguém, no entanto, negaria o direito de posse de um cavalo ao homem que primeiro o encontrou e domesticou—como isto é diferente das bolotas e bagas geralmente reconhecidas como sendo de quem as colheu? Na terra, da mesma maneira, algum apropriador foi responsável por pegar aquela terra “não-domesticada”, “selvagem”, e a “domou”, dando-lhe um uso produtivo. Misturar o seu trabalho com a extensão de terra lhe deveria dar um direito de posse tão claro quanto no caso dos animais. Como Locke declarou: “A superfície da terra que um homem trabalha, planta, melhora, cultiva e da qual pode utilizar os produtos, pode ser considerada sua propriedade. Por meio de seu trabalho, ele a limita e a separa do bem comum.”[4]

 

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Notas

[1] Ver Gertrude Himmelfarb, Lord Acton: A Study in Conscience and Politics (Chicago: Phoenix Books, 1962), p. 294–305. Comparar também com John Wild, Plato’s Modern Enemies and the Theory of Natural Law (Chicago: University of Chicago Press, 1953), p. 176.

[2] John Locke, Segundo Tratado Sobre o Governo Civil e Outros Escritos; tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa (Petrópolis, RJ: Vozes, 1994), p. 98.

[3] No original, “homesteader“, proprietário que, no período da expansão americana para o Oeste, recebia concessões de terra do governo (geralmente de 160 acres) para nela viver e cultivar. (N.T.)

[4] Locke, Segundo Tratado Sobre o Governo Civil e Outros Escritos, p. 100-101.

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