Capítulo XXV – Keynes se retratou?

0
Tempo estimado de leitura: 6 minutos

1. “O remédio clássico”

Há uma crença persistente entre muitos não-keynesianos de que Keynes negou as doutrinas expostas no “A Teoria Geral” no fim de sua vida. Essa crença é baseada em parte em relatos de conversas com amigos, mas a única evidência pública em que posso pensar é o artigo que apareceu na edição junho de 1946 do The Economic Journal chamado “O Balanço de Pagamentos nos Estados Unidos”.  Quinze de suas dezessete páginas se preocupam precisamente com o tema do título. Elas são um estudo amistoso ao balanço de pagamentos dos Estados Unidos e uma tentativa de prever o que ele se tornaria nos próximos cinco a dez anos. Não precisamos analisar nem os argumentos e nem as previsões dessas quinze páginas, que são ou irrelevantes, ou desatualizadas para nossos propósitos atuais. O que nos interessa são as duas últimas páginas. Eis o que Keynes declara:

“Vejo-me movido, não pela primeira vez, a relembrar os economistas contemporâneos de que os ensinamentos clássicos incorporam algumas verdades permanentes de grande importância, as quais atualmente somos suscetíveis a ignorar, pois as associamos com outras doutrinas, as quais não podemos agora aceitar sem muita qualificação. Há nessas questões profundas tendências subjacentes agindo, as chamadas forças naturais ou ainda a mão invisível, as quais operam para alcançar o equilíbrio. Se assim não fosse não poderíamos ter logrado tanto êxito como obtivemos em décadas passadas.”

Essa passagem mostra uma suspeita nascente de Keynes de que “A Teoria Geral” pode ter ido longe demais, mas ainda falha em mostrar um real entendimento dos “ensinamentos clássicos”. Pois, não há nada de misterioso ou oculto sobre as forças que operam em direção ao equilíbrio. Elas são simplesmente o resultado, em um sistema livre, dos esforços dos produtores em maximizar seus lucros e os esforços dos consumidores em maximizar sua satisfação.

A “mão invisível” de Adam Smith foi uma metáfora brilhante, mas adequadamente interpretada é apenas uma metáfora. Se um produtor individual é livre para maximizar seus lucros, mas legal e moralmente proibido de fazê-lo mediante coerção ou fraude, a única forma que resta é que ele tente atender os desejos e necessidades de seus consumidores melhor do que seus concorrentes por meio da oferta de bens melhores ou de iguais, mas a um preço menor. O resultado dessa competição livre entre produtores e liberdade de escolha entre consumidores é gerar uma tendência constante ao equilíbrio. O que se aplica aos preços, produção e consumo também se aplica ao salário, taxas de emprego, juros, poupança e investimento.

“Portanto, para que o remédio clássico funcione [Keynes continua], é essencial que as tarifas de importação e subsídios à exportação não devem perturbar progressivamente sua influência”

Essa declaração claramente parece com uma retratação de sua defesa às restrições mercantilistas, economia nacionalista e gerenciamento do “nível de preço doméstico” à custa do comércio externo.

Elogiando as “propostas sinceras e diligentes em prol dos Estados Unidos, claramente direcionadas para a criação de um sistema que permita que o remédio clássico funcione”, Keynes conclui:

“Isso mostra quanto de coisas modernas, equivocadas, amargas e tolas, circulam em nossos sistemas, que também estão misturadas incompativelmente, ao que parece, com venenos antigos que nós [os britânicos] deveríamos receber com ceticismo em nossa abordagem magnífica e objetiva”

Isso parece como uma rejeição quase violenta das doutrinas da “Teoria Geral”. Mas Keynes prossegue:

“Que eu não seja mal interpretado! Não suponho que o remédio clássico funcione sozinho ou que dependamos dele. Precisamos de auxílios mais rápidos e indolores, dos quais a variação cambial e controle geral de importações são os mais importantes. Contudo, a longo prazo essas medidas funcionarão melhor e necessitaremos menos delas caso o remédio clássico também esteja atuando. Se rejeitarmos totalmente o remédio de nossos sistemas podemos ir de recurso em recurso sem jamais chegarmos a um estado adequado novamente. A grande virtude das propostas de Bretton Woods e Washington analisadas em conjunto é de que elas unem o uso recursos necessários em uma doutrina una e duradoura. Por essa razão que, ao discursar na Câmara dos Lordes, afirmei que ‘Essa é uma tentativa de utilizar o que aprendemos na análise e experiência modernas, não derrotando, mas implementando a sabedoria de Adam Smith’

Ninguém pode estar certo de nada nessa era de flutuação e mudança. Numa era em que nosso controle sobre a produção de satisfação material é a maior já alcançada, padrões de vida decadente e um escopo decrescente de opções e escolhas individuais são suficientes para indicar as contradições subjacentes em todos os departamentos de nossa economia”

2. Contradições subjacentes

Entretanto, a maior contradição subjacente revelada na passagem é a contida na mente de Keynes. Em 1946, bem como 1936, ele ainda tentava reconciliar o irreconciliável. Por “remédio clássico” ele só poderia estar querendo se referir ao “The System of Economic Freedom” de Lionel Robbins, no qual Robbins define como

“uma necessidade urgente de que entraves impeditivos e antissociais fossem removidos e que o potencial imenso de indivíduos livres e pioneiros fosse liberado”[1]

Mas, Keynes desejava tanto liberdade quanto controle. Ele almejava tanto livre comércio quanto “variação cambial” e “controle geral das importações”. Ou seja, desejava manipulação monetária, controle cambial, cotas de importação e proibições, que são a antítese do livre comércio e de uma economia livre. Ele abominava o “escopo decrescente de opções e escolhas individuais” ao mesmo tempo que continuava a defender todas as restrições, as opções e decisões individuais, falhando explicitamente em repudiar até mesmo seu esquema de controle governamental e socialização do investimento. Ele desejava “implementar a sabedoria de Adam Smith” e, ao mesmo tempo ignorá-la.

O que podemos dizer então de sua “retratação”? A grande dificuldade em Keynes é distinguir suas retratações de suas contradições. Suas contradições consistiam em visões incompatíveis que ele mantinha simultaneamente. Suas retratações consistiam em visões incompatíveis que ele reconhecia como tal e assim as defendia apenas uma após a outra.

Vimos no capítulo XXIII que ele oscilava entre livre comércio e hiper protecionismo (quase ao nível autárquico). Em seu artigo de 1946 ele parecia desejar por um pouco de ambos. No seu Treatise on Money ele forneceu definições de poupança e investimento que claramente contrariavam A Teoria Geral, posteriormente as aceitando tacitamente mesmo assim, pois elas eram essenciais aos seus argumentos. Em The Economic Consequences of the Peace, em 1919, ele escreveu uma das mais eloquentes advertências contra a inflação que se tem notícia[2], apenas para defender a inflação em A Teoria Geral como recurso padrão para curar todo o desemprego, ou até mesmo como um modo de vida permanente. E na própria Teoria Geral (talvez a ideia central de que um corte nos salários nominais não pode curar o desemprego e provavelmente o aumentariam) ele brada uma frase como essa:

“Quando entramos num período de enfraquecimento da demanda efetiva, uma súbita grande redução nos salários nominais a um nível tão baixo, o qual ninguém acredite que possa ser mantido indefinidamente, seria o evento mais favorável para o fortalecimento da demanda efetiva” (p.265)[3]

Portanto, o artigo de 1946 no Economic Journal pode ser encarado como apenas mais uma contradição. É verdade que Keynes declara algumas afirmações condescendentes em favor do “remédio clássico”, mas ele já havia concedido, como vimos, muitos outros elogios condescendentes ao sistema clássico até mesmo na Teoria Geral.

Ainda assim. Há aquela frase no artigo do Economic Journal sobre “coisas modernas, equivocadas, amargas e tolas”.  A que mais ela pode se referir além da própria teoria Keynesiana como interpretada pelos seus mais zelosos discípulos?

Estaria Keynes no último ano de sua vida ao menos a beira da retratação? No começo desse capítulo me referi a supostas conversas com amigos e outros economistas. Citarei uma:

“Em minha conversa com Keynes, poucos meses antes de sua morte, estava claro que ele havia se distanciado de sua ‘eutanásia do rentista’. Ele se queixava que políticas de crédito fácil estavam sendo levadas longe demais, tanto na Inglaterra como aqui, e enfatizava os juros como um elemento de renda bem como sua importância na estrutura e funcionamento do capitalismo privado. Ele apreciou minha observação de que era hora de escrever um novo livro, pois as políticas de conceder crédito fácil de forma ostensiva estavam sendo pregadas em seu nome, respondendo que ele deveria estar sempre um passo à frente”[4]

A situação me lembra uma em Os Irmãos Karamazov, na qual Ivan Karamazov, que pregava um ateísmo e imoralismo puramente “filosóficos” – “tudo é permitido” – descobre, para seu horror, que seu meio-irmão Smerdyakov, acreditando na sua palavra, havia roubado e assassinado seu pai. “Fui apenas seu instrumento”, dizia Smerdyakov, “seu servo fiel, e foi seguindo suas palavras que o fiz. ‘Todas as coisas são lícitas’. Isso foi exatamente o que me ensinou. Pois, se não há um Deus eterno, não há tais coisas como virtude e nem necessidade para que existam”.

Keynes era um homem brilhante. Muito do que ele escreveu foi com ironia, pelo prazer do paradoxo, para épater le bourgeois [“para chocar a burguesia”], no espírito de Wilde, Shaw e o círculo de Bloomsbury. Talvez toda A Teoria Geral pretendia ser uma grande piada (de 400 páginas) e Keynes ficou chocado ao perceber que seus discípulos o levarão a sério.

Perspicácia e sátira são armas perigosas quando não usadas a serviço do bom senso.

___________________________________

Notas

[1] The Theory of Economic Policy in English Classical Political Economy, (Londres: Macmillan, 1952)

[2] Trata-se passagem frequentemente citada como: “É dito que Lenin declarou que a melhor forma de destruir o sistema capitalista era por meio da perversão da moeda”.

[3] É claro que essa frase se aproxima mais de uma análise correta que todo o resto da Teoria Geral, mas ela não pode ser aceita tal qual é escrita. Uma crença na manutenção indefinida de taxas salariais nominais baixas levaria também a uma recuperação das aquisições, produções e emprego. Tudo que é necessário para curar o desemprego, devido a salários nominais elevados, é um corte individual (não necessariamente geral ou uniforme) grande o suficiente para destruir a crença ou medo de que possa haver novos cortes.

[4] John H. Williams, American Economic Review, maio, 1948, p. 287-288.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui