Em época de inflação de preços é normal vermos diagnósticos dos mais diversos tipos sobre as suas causas. Do preço do chuchu, da energia e do petróleo à ganância dos “inescrupulosos empresários”, há sempre uma opinião para todos os gostos e colorações políticas.
Dentre os economistas brasileiros “de direita”, uma das versões preferidas (e que fez muito sucesso no passado) diz respeito aos salários: pressões por maiores salários aumentam os custos de produção, os quais consequentemente são repassados aos preços e, assim, temos inflação — ou, em uma versão alternativa, com maiores salários as pessoas gastam mais, elevando os preços (inflação). Diagnósticos nessa linha foram muito defendidos no passado por economistas como Mario Henrique Simonsen, e causaram verdadeiras catástrofes, como a famigerada “política salarial” do PAEG.
Não é impossível que “pressões por maiores salários” gerem (indiretamente) inflação de preços, mas o mecanismo não tem nada a ver com “repasse de preços” ou pessoas com o bolso “cheio” gastando mais. Além disso, geralmente o processo que desencadeia o que costumamos chamar de “pressões por maiores salários” é a própria inflação de preços, sendo esta mais uma causa do que uma consequência daquela (os trabalhadores perdem salário real com a inflação e correm atrás para repor).
Embora nossos ilustres economistas de direita e de esquerda nunca admitam — porque quase sempre estão, de uma forma ou de outra, “criando” o problema —, a inflação de preços tem uma única causa: excesso de oferta de moeda, isto é, há mais moeda disponível do que as pessoas desejam carregar nas suas carteiras (demanda por moeda).
Antes de continuar, é importante esclarecer um erro, infelizmente comum até entre economistas: a diferença entre “demanda por moeda” e “demanda por riqueza”. Apesar de parecer absurdo, alguns economistas do passado (e do presente também) chegaram a afirmar que descrever inflação como um excesso de oferta de moeda era ridículo porque a demanda por moeda era infinita. Quem não desejaria receber mais e mais moeda? O que o sujeito não percebeu é que o que é infinito é a demanda por riqueza, não por moeda. Se você recebesse R$1 milhão em papel-moeda você não guardaria esse R$1 milhão na sua carteira ou embaixo do colchão; você trocaria esses papeizinhos por uma infinidade de outras coisas. A sua demanda por moeda significa o quanto você quer de “moeda” (moeda mesmo, papel-moeda ou depósitos à vista) para guardar, para deixar na sua carteira ou no seu colchão, parados sob a forma de uma “reserva”, de um encaixe. As pessoas vão aceitar tanto dinheiro (moeda) quando você quiser dar a elas, porque essa moeda pode ser trocada por outros bens — ou seja, é riqueza —, mas elas não vão pegar esse mesmo dinheiro e ficar enchendo seus bolsos de papel.
É justamente pelo fato de as pessoas terem uma demanda por moeda “finita” — isto é, elas desejam que apenas uma porção da sua renda fique em formato de “moeda”—, que a inflação (e a deflação) de preços acaba surgindo. Se as pessoas estão com mais moeda do que aquela proporção que elas consideram ideal para carregar (o que os economistas costumam chamar de encaixe ou saldo “ótimo”), todo mundo procurará trocar moeda por outras coisas, elevando a razão de troca entre moeda e esses outros bens — você terá que dar mais moeda por um determinado bem.
Isso é o que comumente é chamado de “inflação”. Se, por outro lado, as pessoas estão com uma quantidade de moeda inferior àquela que consideram ideal, elas passam a vender bens em busca de mais moeda, o que gera um aumento do preço da moeda (deflação de preços).
Apenas alguns poucos economistas bem heterodoxos rejeitam completamente o que foi colocado acima — por exemplo, aqueles que nem sabem o que é demanda por moeda —, mas esses nem são tão problemáticos. O grande problema é que são poucos aqueles que aceitam que, para inflações de preço “consideráveis” (e não meros “ruídos” em índices de preços), o mecanismo descrito anteriormente seja a única causa.
Para ilustrar esse ponto, peguemos o que aconteceu na década de 1970 e começo da década de 1980 nos EUA (e de certa forma no resto do mundo): esse período — década de 1970 principalmente — foi marcado por uma elevada inflação de preços, e não demorou muito para acharem um culpado: os xeiques árabes que elevaram o preço do petróleo consideravelmente. O argumento era o seguinte: praticamente toda a indústria é dependente do petróleo; logo, maiores custos, maiores preços (inflação). A explicação em nenhum momento abordou a política monetária do governo.
Por que o aumento do petróleo por si só não poderia causar inflação? Imaginemos que não existisse moeda e todos os preços fossem na base do “bem X/bem y” (uma maçã por uma laranja, duas laranjas ou duas maçãs por uma melancia etc.). Se o preço do petróleo subiu, menos bens que usam petróleo serão produzidos, elevando a razão de troca (bens sem petróleo/bens com petróleo). Ou seja, o preço dos produtos que usam petróleo aumenta porque teríamos de dar mais bens que não usam petróleo em troca. Por outro lado, isso significa que houve uma “deflação” dos preços daqueles bens que não usam petróleo — você precisa de menos bens “petrolíferos” para obter um bem que não usa petróleo. Não há aumento do “nível de preços” simplesmente porque não há nada parecido com isso sem a existência de moeda. Não existe inflação sem moeda.
Sendo menos abstrato, imagine que a quantidade de moeda na economia está fixa, a demanda por moeda absoluta não se alterou e as pessoas só conseguem comprar bens através de moeda (um mundo bem parecido com o nosso). Se o preço dos bens dependentes de petróleo sobe, você terá de usar mais moeda para comprá-los, e para isso terá que diminuir a quantidade de moeda direcionada para a compra de outros bens (uma vez que sua demanda por moeda é a mesma, pois você não a diminuiu). Logo, o preço dos bens dependentes de petróleo subirá, mas o preço dos bens não dependentes (que você deixou de comprar) cairá.
Obviamente, vendo a partir de um dado índice de preços bastante amplo — e considerando esse índice um medidor para a inflação de preços —, nada garante que os movimentos contrários dos preços serão iguais, de modo que as subidas e as descidas se zerem (entretanto, o valor – preço vezes quantidade – sim será igual e zerará na variação). Porém, dado que existem inúmeros bens e consumidores com uma infinidade de preferências, não há razão para se esperar que o índice final seja consistentemente “alterado” para cima ou para baixo — por isso a minha citação anterior de “inflações consideráveis” versus “ruídos” em índices de preços.
Só se houvesse mais moeda ou alterações na demanda por moeda seria possível um movimento consistente em uma determinada direção do índice de preços, pois, com um aumento na quantidade de moeda, não seria necessário diminuir a demanda de determinados bens para aumentar a de outros. E são exatamente essas alterações na demanda por moeda que normalmente ocorrem quando temos choques como o do petróleo. Choques deste tipo, como já foi dito, aumentam os custos e causam a diminuição da produção de um bem (a curva de custos das firmas é deslocada “para cima”), diminuindo a renda das pessoas.
Se as pessoas desejarem manter a proporção entre moeda/renda, uma menor renda implicará uma menor demanda por moeda. Se a oferta de moeda não for enxugada pelo governo (ou o emissor em questão), haverá um excesso de dinheiro e, consequentemente, inflação. Esse é o mecanismo correto que faz com que os ditos choques “de oferta” (como o do petróleo) gerem (indiretamente) inflações de preço. Indiretamente porque, o que gerou mesmo a inflação de preços foi o excesso de oferta de moeda.
Se, mesmo com o choque, as pessoas tivessem mantido sua demanda por moeda em valores absolutos — ou seja, mantido o valor dos seus saldos e não a proporção da renda que queriam como moeda —, não teríamos tido inflação de preço alguma. A oferta de moeda disponível, que era a exata quantidade de moeda que as pessoas queriam manter como encaixes, continuaria sendo o equilíbrio (já que a demanda não mudou).
Explicado tudo isso, podemos voltar às tais “pressões por maiores salários” e perceber que elas, economicamente, são uma espécie de “choque de oferta” como a alta do petróleo. Começando do começo, imagine que, por alguma razão, os trabalhadores passem a preferir relativamente mais lazer a trabalho — ou seja, o custo de oportunidade de trabalhar aumenta. Isso significa que a oferta de trabalho diminuirá, o que provocará um aumento de salários e uma menor produção. Em geral, essa comunidade de trabalhadores propensos ao lazer terá menos bens para trocar. Tudo exatamente igual ao que ocorreu quando tivemos o choque do petróleo. Um dado fator de produção fica mais caro, diminui a produção, “empobrecendo” as pessoas.
Em um mundo sem moeda, onde os preços são razões de troca entre diferentes bens (sem um denominador comum), se todos os bens utilizassem trabalho, sem a possibilidade de substituí-lo em nenhum grau, nada ocorreria com essas razões de troca. O resultado seria apenas menos bens à disposição para serem trocados. Porém, uma laranja continuaria sendo trocada por uma maçã, já que nada atingiu o mercado de laranjas de maneira mais relativamente intensa do que o mercado de maçãs. Se existissem bens “intensivos em mão de obra” e “intensivos em capital”, os primeiros ficariam mais caros e os últimos mais baratos, ou seja, não teríamos nada semelhante a um aumento “generalizado de preços”. Sem moeda, esse aumento generalizado é impossível.
Tal aumento, apesar de possível, também não ocorreria em um mundo com moeda caso não houvesse alteração na demanda absoluta por moeda e caso a oferta monetária permanecesse constante. Como explicado anteriormente, se o preço de uma série de bens subiu, você tem de direcionar mais moeda para a compra desses bens. Ao fazer isso, você reduz a quantidade de moeda direcionada para a compra de outros bens. Assim, o preço dos bens que receberam mais moeda irá subir (ou permanece alto), ao passo que o preço dos bens que os consumidores deixaram de comprar (tiraram moeda) irá cair. É o mesmo mecanismo descrito anteriormente, quando falei do choque do petróleo.
Obviamente, se a demanda por moeda permanecer constante como proporção da renda (e não seu nível absoluto), uma menor renda (provocada pelo choque na oferta de trabalho) implicará uma menor demanda por moeda e consequentemente — dado que a oferta de moeda está constante — teremos inflação. Esse é o mecanismo que faria com que um aumento dos salários (gerado por uma restrição da oferta de trabalho) provocasse inflação.
Em resumo, nenhum “choque de oferta” por si só tem o poder de gerar inflação de preços. Inflação de preços é simplesmente uma queda no preço (poder de compra) da moeda, e isso só ocorrerá quando a oferta desse bem (moeda) for maior que a sua demanda. Se os tais choques de oferta não mexerem nessa relação monetária, não teremos inflação.
Somos bombardeados diariamente por economistas (geralmente do governo) dizendo o contrário simplesmente porque, na maioria das vezes, a culpa pela inflação é da emissão excessiva de moeda realizada pelo próprio governo (e não por alterações na demanda por moeda). Assumir que o governo está produzindo a inflação implicaria, além do tradicional atestado de incompetência, uma série de reformas econômicas que muito poucos governantes estão dispostos a acatar (corte de gastos, por exemplo).
Portanto, é muito mais fácil botar a culpa no chuchu, nos salários “altos demais” e nos xeiques árabes que controlam o petróleo do que assumir a própria culpa pelo problema. Para piorar, botar a culpa em outro quase sempre vem acompanhado de uma permissão para agir contra esse culpado — ou seja, aumenta a área de poder e intervenção do próprio governo.
Quem não se lembra, ou nunca ouviu falar, de coisas como “fiscais” para controlar preços, tabelamento de preços, fiscais prendendo bois nas fazendas alegando que a alta do preço da carne era culpa dos criadores e por aí vai?