Hayek e o afastamento da praxeologia

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Os tempos de aceitação acrítica da aplicação de métodos das ciências naturais às ciências humanas aparentemente já se foram. Na era atual, costumamos lidar com o chamado “criptopositivismo”, que revisou certos pressupostos, mas ainda está preso ao ideal de ciência professado mais geométrico. Hans-Hermann Hoppe é um filósofo cujo esforço teórico prova que os erros do naturalismo e do empirismo só podem ser superados pela praxeologia baseada na argumentação a priori.

Os historiadores da filosofia muitas vezes notam a influência que Epicuro teve sobre Karl Marx. O título de sua tese de doutorado foi A diferença entre a filosofia demócrita e epicurista da natureza. O pai do comunismo estava especialmente interessado na teoria do clinamen, ou seja, uma indeterminação mínima no movimento dos átomos. Para Epicuro, essa teoria deveria servir de base para ajudá-lo a evitar o determinismo absoluto, enquanto para Marx servia de explicação para o papel excepcional desempenhado pelos líderes do proletariado. Clinamen era uma parte importante da estrutura geral do mundo e da sociedade. Mas ainda mais relevantes eram os átomos: elementos discretos e indiferenciados que formam indivíduos conhecidos por nós a partir da experiência sensorial.

Pode-se perguntar aqui: por que mencionamos Epicuro em um texto que supostamente trataria de Hayek? É porque Epicuro também desempenhou um papel importante na formação de sua teoria – indireta e diretamente. A epistemologia e a ontologia de Hayek baseiam-se diretamente em pressupostos filosóficos desenvolvidos pelo fundador do Jardim. As mais evidentes são: ética baseada em sentimentos e emoções[1], crítica da teleologia, negação do direito natural, atomismo materialista e evolucionismo biológico e social (ou teoria epistemológica da representação). Nem tudo, é claro, é idêntico em Epicuro e Hayek, mas os núcleos de suas respectivas teorias não são excessivamente diferentes.

Junto com Marx, os revivalistas contemporâneos mais importantes de Epicuro foram David Hume e Karl Popper[2] – os pensadores-chave para entender Hayek. Ambos se concentraram na teoria do conhecimento e examinaram como é possível que impulsos materiais não idênticos, causados por átomos que chegam até nós, produzam certas ideias fixas. A resposta de Hume foi que classificamos vários impulsos através do hábito.[3] As sequências de estruturas atômicas que se sucedem não têm nada a ver umas com as outras, e só as tratamos como relacionadas umas às outras por causa da convenção. Uma opinião semelhante foi defendida por Friedrich von Hayek:

Provavelmente, em nenhum caso a pesquisa experimental ainda conseguiu determinar com precisão a gama de diferentes fenômenos que tratamos sem hesitação como significando a mesma coisa para nós e para outras pessoas, mas agimos constantemente e com sucesso na suposição de que classificamos essas coisas da mesma maneira que outras pessoas.[4]

Embora o próprio Hayek tenha renunciado claramente às alegações de materialismo, de que outra forma trataremos suas numerosas excursões à teoria epicurista da representação? Se ele pensava que os humanos são essencialmente diferentes do mundo natural, por que ele disse que “nossa moral não são conclusões da razão”, mas apenas impulsos semelhantes aos dos animais?[5]

David Gordon indica que, tendo sido influenciado por Karl Popper, Hayek escolheu o falsificacionismo como seu método em vez da praxeologia antinaturalista.[6] O falsificacionismo, como teoria da explicação do mecanismo do conhecimento humano, é muito ingênuo, e é fácil contestar suas teses.[7] No entanto, seus pressupostos subjacentes são muito mais interessantes. O já mencionado esquema epicurista de minipartículas “atacando” nosso mecanismo cognitivo, leva os seguidores do esquema a acreditar que a experiência que reunimos até agora não pode nos garantir que encontraremos sempre os mesmos fenômenos. Assim, a visão subjacente de Popper e Hayek é que nosso conhecimento não se baseia em pré-requisitos racionais, mas apenas em uma regra convencionalmente aceita de classificação dos impulsos materiais. Murray Rothbard opôs-se veementemente a tais teorias:

     Agora surge a questão crucial: como obtivemos a verdade desse axioma [axioma da ação]? Nosso conhecimento é a priori ou empírico, “sintético” ou “analítico”? Em certo sentido, tais questões são uma perda de tempo, porque o fato mais importante é que o axioma é evidentemente verdadeiro, autoevidente em uma extensão muito maior e mais ampla do que os outros postulados. Pois este Axioma é verdadeiro para todos os seres humanos, em todos os lugares, em qualquer tempo, e não poderia sequer ser concebivelmente violado.[8]

Lamentavelmente, o axioma da ação na teoria de Hayek, que é crucial para a praxeologia, não pode ter qualquer status distinto porque, para ele, nosso conhecimento é apenas uma coincidência feliz constante e auto-confirmada. “Quem sabe”, Hayek parece pensar, “talvez um dia as partículas materiais comecem a nos afetar de uma maneira totalmente diferente, e deixem todo o nosso conhecimento em ruínas?” Ou talvez um dia alguns alienígenas venham e nos forcem a redefinir nossos hábitos de pensamento?[9] De acordo com tal teoria, nada é certo.[10]

Hayek distancia-se dos positivistas dos séculos XVIII e XIX agrupados em torno da École Polytechnique e reconhece alguns dos erros básicos da “naturalização” das ciências humanas. No entanto, é legítimo perguntar se o próprio Hayek conseguiu escapar disso. Hayek se apresenta como um teórico que acusa os outros de cometerem a falácia naturalista. Mas um exame mais profundo dos pressupostos subjacentes de sua teoria mostra claramente que ele nunca realmente escapou dela. Entre as provas para tal visão estão:

  • A crítica do dualismo mente-corpo no espírito de Ernst Mach.[11]
  • A teoria epicurista da ética irracional baseada em emoções causadas por impulsos materiais.
  • A teoria falsificacionista do conhecimento baseada na teoria epicurista da representação.

Para Hayek, duas posições radicais eram as maiores ameaças à ciência: de um lado, o abuso da razão, de outro, professar apenas a física como ciência humana. A tarefa mais importante para sua teoria era, portanto, apontar erros cometidos pelas duas ideologias. Os racionalistas, segundo ele, querem descrever tudo com teorias que antropomorfizam o mundo inteiro, e os positivistas – típicos das ciências humanas – ignoram completamente o processo de interpretação. O meio dourado foi tomado pelo próprio Hayek, claro, que recriminou a todos por erros ingênuos.

Lamentavelmente, tal perspectiva é totalmente equivocada. Por exemplo, a ética racionalista desenvolvida por Murray Rothbard e Hans-Hermann Hoppe não é um abuso da razão, mas apenas uma explicação do modo de pensar e da própria realidade. Em outras palavras, a ética argumentativa não é um abuso da razão; ela só mostra que somos obrigados a pensar da forma que ela sugere. Diante disso, surge um questionamento: onde devemos classificar a ética argumentativa segundo Hayek?

O erro de Hayek também consiste em identificar o erro naturalista na filosofia com seus exemplos mais evidentes (Saint-Simon, d’Holbach). Ele não percebeu que sua teoria se baseia em suposições semelhantes àquelas que ele tantas vezes criticou. Ele adotou uma teoria que consistia em uma forma mais fraca de naturalismo que, por seu esquema ontológico-epistemológico epicurista, o ajudou a camuflar sua face real. Mas como uma camuflagem pode ajudar se o cerne de sua filosofia era um monismo materialista do universo? Não é à toa, então, que Friedrich von Hayek, assim como Karl Marx, tenha migrado para posições social-democratas.[12]

No final, voltemos novamente à praxeologia. Apesar de ser discípulo de Mises e, mais tarde, seu colaborador, Hayek não podia conhecer toda a forma da teoria de Mises, a praxeologia. Mises escreveu Ação Humana na época em que Hayek se mudou para sua própria posição. Mas a praxeologia era implicitamente inerente à teoria dos pais fundadores da economia austríaca; a continuação dos ensinamentos da escola austríaca com base no positivismo foi realmente uma tentativa fracassada.

 

 

 

 

Artigo original aqui

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Notas

[1] A ética epicurista foi revivida por David Hume, que formou uma base para a rejeição moderna da ética racional, ver M. Rothbard, A ética da liberdade(New York : New York University Press, 1982), p. 14-15.

[2] Popper apresenta sua teoria do falsificacionismo e do conhecimento evolucionário principalmente em: Objective Knowledge: An Evolutionary Approach (Londres: Clarendon Press, 1972).

[3] D. Hume, An Enquiry Concerning Human Understanding (Oxford: Oxford University Press, 2000).

[4] F.A. von Hayek, A Contrarrevolução da Ciência (Londres: The Free Press of Glencoe, 1955), p. 47.

[5] Este é um lema para O Caminho da Servidão de Hayek (Nova York: Routledge, 2005).

[6] D. Gordon, As origens filosóficas da economia austríaca (Auburn, Al: Ludwig von Mises Institute, 1996), p. 10.

[7] Ver uma refutação abrangente da falsificação em: H-H. Hoppe, A Economia e a Ética da Propriedade Privada (Auburn, Al, Ludwig von Mises Institute, 2006).

[8] Rothbard, Em Defesa do Racionalismo Extremo em: A Lógica da Ação Um (Cheltenham: Edward Elgar Pub. 1997), s. 105-106.

[9] Ver um exame dessa possibilidade em: F.A. von Hayek, The Counterrevolution…, op. cit., s. 79.

[10] Hans-Hermann Hoppe descreve o resultado do ultrasubjetivismo hayekiano da seguinte maneira: Em distinto contraste, Hayek – e enganado por ele em diferentes graus também Israel Kirzner e Ludwig Lachmann – vê a economia como uma espécie de ciência do conhecimento humano. Assim, as categorias e teorias de Hayek referem-se a fenômenos puramente subjetivos e são invariavelmente evasivas ou mesmo ilusórias. Ele não está preocupado em agir com as coisas, mas em conhecimento e ignorância, na divisão, dispersão e difusão do conhecimento, no estado de alerta, na descoberta, no aprendizado e na coordenação e divergência de planos e expectativas. O mundo externo (físico) e os eventos reais (materiais) desapareceram quase completamente de sua visão. As categorias de Hayek referem-se a estados mentais de coisas e relacionamentos, completamente desprendidos e compatíveis com qualquer estado físico real de coisas e eventos. H-H. Hoppe, A Ética…, op. cit. pág. 260.

[11] F.A. von Hayek, A Essência de Hayek (Stanford, Ca: Hoover Inst., 1984), p. 236.

[12] Uma entrevista de Mateusz Machaj com Hans-Hermann Hoppe fornece uma explicação abundante para essa descrição de Hayek: www.hanshoppe.com/wp-content/uploads/publications/hoppe_polish-interview.pdf.

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