Introdução: Direitos universais, aplicados localmente

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O mundo está agora, e sempre foi, politicamente descentralizado. Em nenhum momento da história toda a humanidade foi governada por um único regime político. Embora o Império Romano afirmasse ser universal, os romanos nunca conquistaram toda a Europa, muito menos todo o mundo habitado. O poder romano nunca se estendeu à Índia, China, África Subsaariana ou Américas. Em outras palavras, o poder político nunca foi exercido de um único lugar por um único estado.

Hoje, vemos a descentralização em ação na existência de mais de duzentos estados soberanos separados no mundo. Quase todos eles desfrutam de uma quantidade considerável de poder político sobre seus próprios cidadãos: impondo impostos, regulando a vida cotidiana e exercendo poderes de polícia. Muitos desses estados têm poder militar suficiente para competir com outros estados e exercer verdadeira independência de fato, mesmo na esfera internacional.

Em outras palavras, o poder político no mundo está espalhado por dezenas de regimes políticos independentes e centros de poder nacionais, a maioria dos quais zelosamente protege seus próprios poderes e prerrogativas de outros regimes – e de adversários internos ao poder de cada estado.

A descentralização não para por aí. Comumente, os próprios estados são internamente politicamente descentralizados, mais obviamente em estados que empregam uma estrutura política federal, como a Suíça ou os Estados Unidos. Historicamente, também encontramos enorme variação nesses arranjos. O Sacro Império Romano-Germânico, por exemplo, continha mais de 1.800 subdivisões quase soberanas dentro de suas fronteiras durante o século XVIII. Na Áustria-Hungria, no século XIX, o poder político foi dividido entre vários grupos étnicos, religiosos e linguísticos internos. A República Holandesa do século XVII foi uma confederação de sete províncias autônomas. Foi também o estado mais próspero de seu tempo.

Nesses casos de descentralização interna, o poder político é dividido entre inúmeras jurisdições e unidades subnacionais. Algumas dessas subunidades gozam de um alto grau de autonomia. Algumas não. Mas, nesses casos, os poderes políticos nunca são inteiramente reservados apenas a um único centro de poder nacional.

Assim, descobrimos que a norma nos assuntos humanos e na história humana é um sistema político globalmente descentralizado. É a norma porque a maioria das pessoas reconhece em um nível instintivo que é impraticável – e provavelmente impossível – moldar uma única política e regime global que possa dirigir todas as instituições políticas a partir de um único centro político. A história sugere que isso não pode ser feito sem provocar uma série interminável de rebeliões tentando implementar mais autonomia local. Se toda a Ásia fosse governada a partir de Tóquio, por exemplo, esse regime seria incessantemente consumido pelos desafios de impor a vontade do regime a uma população cultural e linguisticamente diversa espalhada por milhões de quilômetros quadrados. Assim, ao longo da história humana, o número e o tamanho dos estados no mundo mudam frequentemente ajustando-se à capacidade dos interesses locais de alcançar autonomia em relação aos centros de poder e, muitas vezes, refletir diferenças culturais de lugar para lugar. Esta realidade não desapareceu no nosso tempo e, em muitos aspectos, até se acelerou. De fato, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o número de estados independentes no mundo quase triplicou.[1]

Secessão como tipo de descentralização

Essa divisão das sociedades humanas em uma série de entidades políticas e países independentes é um tipo de descentralização, e a secessão é uma ferramenta fundamental nesse processo.

Às vezes, os estados ficam maiores por meio de processos de construção do estado. Mas às vezes acontece o contrário. Quando os estados são divididos em um número maior de estados relativamente menores, isso é realizado por meio da secessão – o ato através do qual uma parte de um estado se separa para criar um novo estado. É fácil encontrar exemplos. Quando os revolucionários americanos romperam com sucesso com o Império Britânico no século XVIII, novos estados foram criados, e as fronteiras do império foram profundamente alteradas. A República Holandesa foi formada após sua secessão do Império Espanhol.

Da mesma forma, à medida que as potências coloniais europeias abandonaram – ou foram forçadas a abandonar – seus impérios nos séculos XIX e XX, novos estados independentes foram criados. As fronteiras mudaram e os mapas foram redesenhados.

O mesmo aconteceu quando a União Soviética entrou em colapso no final do século XX.

Assim, embora o poder político no mundo já esteja descentralizado em certa medida, ele ainda poderia ser descentralizado em uma extensão muito maior. A questão de uma maior descentralização do poder político continua a ser um tema muito atual e uma questão permanente.

Em 2016, por exemplo, a maioria dos eleitores britânicos optou por deixar a União Europeia em favor da manutenção de um estado britânico totalmente independente e separado. Ou seja, os eleitores britânicos optaram por inverter a centralização política que vinha crescendo na Comissão Europeia, em Bruxelas. Dois anos antes, em 2014, os eleitores escoceses foram às urnas para votar sim ou não nesta pergunta: “A Escócia deve ser um país independente?” Na época, a maioria dos eleitores escoceses votou “não” à proposta de separação. No entanto, o assunto não está resolvido e a questão da independência escocesa continua a ser debatida tanto na Escócia como em todo o Reino Unido. Os separatistas catalães na Espanha também continuam pressionando por uma separação de Madri.

Centralização política e a questão dos direitos humanos

Dada a natureza ubíqua da descentralização e da secessão ao longo da história, estamos diante de uma questão importante: qual é o tamanho ideal de um estado e quanto do poder de um estado deve residir no governo central? É bom quando um estado é dividido em províncias e regiões autônomas menores? Os estados devem ser divididos em estados menores independentes?

Para responder a essas perguntas, devemos primeiro perguntar por qual padrão podemos julgar regimes e instituições políticas como “bons” ou “ruins”.

Para aqueles de nós adeptos da ideologia conhecida como liberalismo – também conhecido como liberalismo “clássico” ou libertarianismo – a preservação e proteção dos direitos humanos universais é de excepcional importância e serve como um padrão central pelo qual julgar um regime. No centro desses direitos – também conhecidos como “direitos naturais” – estão liberdades básicas, como a liberdade de propriedade privada, a liberdade de expressão e a liberdade de praticar a própria religião. Apenas um pouco menos importante na avaliação de um regime é a questão de garantir um nível de vida crescente e preservar as condições para o florescimento humano.

Por que a descentralização é uma coisa boa?

O objetivo deste livro é ilustrar de várias maneiras que a descentralização é uma coisa boa e geralmente é benéfica para a preservação dos direitos humanos e da prosperidade econômica. Além disso, é minha posição que não estamos nem perto de termos descentralização suficiente. Com demasiada frequência, os formuladores de políticas públicas aceitam que há pelo menos alguns benefícios na descentralização ou os seus cognatos, como a “subsidiariedade” e o “federalismo”. No entanto, em inúmeros casos, o respeito declarado aos princípios da descentralização equivale a pouco mais do que um aceno simbólico em favor do localismo. Em última análise, as instituições estatais centralizadas, nesses casos, acabam ficando com a maior parte do poder político.[2]

Isso não quer dizer que outros fatores além do grau de centralização do poder não sejam importantes para questões de direitos humanos e direitos naturais. Por exemplo, ideologia e tradição desempenham papéis importantes. Uma população ideológica e tradicionalmente inclinada para a proteção dos direitos universais tem maior probabilidade de viver sob regimes que respeitem esses direitos. Isso é verdade independentemente do tamanho. Tudo o mais constante, no entanto, descobriremos que mais descentralização política leva a instituições políticas mais responsivas e menos abusivas.

Os benefícios da descentralização política podem ser encontrados principalmente em três áreas.

Primeiro: estados menores permitem mais opções e mais oportunidades de saída

O primeiro benefício da descentralização é que estados menores e estados descentralizados permitem que os residentes façam mais escolhas sobre o tipo de regime em que desejam viver, a fim de melhor atender às suas necessidades e proteger seus direitos.

Nos Estados Unidos, por exemplo, empresas e cidadãos privados mudam de um estado para outro para evitar impostos, regulamentações ou mudar a natureza do governo sob o qual vivem.

Isso ocorre também no nível internacional, como pode ser visto no fenômeno dos trabalhadores migrantes, refugiados, solicitantes de asilo e empresas, todos buscando melhorar suas situações.

Regiões fisicamente menores permitem uma realocação mais fácil e mais escolha. Por exemplo, se os Estados Unidos fossem compostos por apenas dois ou três estados-membros, os residentes teriam muito menos opções de governos sob os quais viver. Do jeito que está, os moradores têm dezenas de opções, pelo menos em termos de áreas políticas que não são dominadas pelo governo federal.

Da mesma forma, se a Europa ou a América do Sul fossem compostas por apenas um ou dois estados soberanos, os residentes precisariam viajar muito mais longe para escapar dos regimes sob os quais vivem. Eles também teriam menos opções em geral.

Um grande número de entidades políticas independentes para escolher também tende a incentivar a competição entre os estados. Em seu ensaio “O que queremos dizer com descentralização”, Lew Rockwell observa:

    Sob a descentralização, as jurisdições devem competir por residentes e capital, o que fornece algum incentivo para maiores graus de liberdade, até porque o despotismo local não é popular nem produtivo. Se os déspotas insistirem em governar de qualquer maneira, as pessoas e o capital encontrarão uma maneira de sair.[3]

Estados menores são menos capazes de monopolizar e controlar o movimento, a produção e as atividades dos residentes quando uma série de outras opções acenam do outro lado da fronteira.

Podemos colocar isso de outra forma: no setor privado, uma indústria com um grande número de empresas oferece mais opções, e as próprias empresas individuais possuem menos poder de monopólio. O mesmo ocorre no “mercado” dos estados. Mais estados significa mais variedade, mais escolha e menos poder de monopólio desfrutado por um único estado.

Dois: proteger os direitos das minorias quando a democracia falha

Durante séculos, os reformadores políticos buscaram meios de moldar as instituições políticas de maneiras destinadas a proteger grupos minoritários de serem dominados pela maioria.

Mesmo em instituições políticas não democráticas, os grupos majoritários tendem a exercer muito mais poder do que os grupos minoritários. Isso pode ser ampliado em regimes democráticos, onde as eleições muitas vezes só servem para solidificar políticas favorecidas pela maioria. Muitas estratégias têm sido empregadas para resolver esse problema. Exemplos incluem um judiciário independente e uma variedade de “freios e contrapesos” projetados para permitir que grupos minoritários tenham a chance de moldar a política.

Esses esforços muitas vezes podem falhar se um grupo minoritário não for capaz de ganhar influência em, pelo menos, algumas instituições políticas importantes. Quando isso acontece, os grupos minoritários podem se encontrar como parte de uma minoria permanente e isso significa que o grupo minoritário fica fora do poder indefinidamente.

Quando isso acontece, as únicas soluções que podem ser encontradas estão em atos fora do âmbito do ativismo político-institucional. Tais atos incluem boicotes, resistência passiva e rebelião armada. Isso, é claro, pode levar a uma guerra civil, e é por isso que a secessão e a descentralização devem disponíveis como um meio de fornecer aos grupos minoritários uma chance de autodeterminação e autogoverno.

Três: limitar o poder dos estados agressivos

Um terceiro benefício da descentralização e da secessão é que elas tendem a limitar o poder dos regimes e dos estados em geral. Quando os regimes tentam aumentar seu próprio poder por meio de conquistas, confiscos de propriedades ou outros ultrajes, seu potencial de dano é limitado pelo tamanho e escopo do próprio estado.

Segundo Rockwell, “a tirania ao nível local minimiza os danos na mesma medida em que a macrotirania os maximiza”. Ou seja, “se Hitler tivesse governado apenas Berlim, [e] Stalin apenas Moscou”, a história do mundo poderia ter sido consideravelmente menos sangrenta.[4] Os grandes estados são playgrounds para déspotas e ditadores, enquanto os pequenos estados oferecem muito menos oportunidades para políticos ambiciosos espalharem seu caos para além de suas comunidades locais.

Em geral, os estados pequenos e descentralizados são menos propensos a abusar de seu poder, destruir suas economias e desrespeitar os direitos humanos básicos. Estados grandes e centralizados, por outro lado, são mais facilmente capazes de abusar de seus residentes e negar seus direitos, levando também a economias mais disfuncionais e oportunidades econômicas diminuídas.

O objetivo final de toda essa secessão e descentralização é – para usar uma expressão empregada pelo economista libertário Murray Rothbard – “a aplicação local dos direitos universais”. Como explica Rockwell, esses dois conceitos – universalismo e localismo – estão frequentemente em tensão. Mas, ele conclui:

      Se você renunciar a um dos dois princípios [isto é, direitos universais e controle local], arrisca abdicar da liberdade. Ambos são importantes. Nenhum dos dois deve prevalecer sobre o outro. Um governo local que viola direitos é intolerável. Um governo central que governa em nome de direitos universais é igualmente intolerável.[5]

Os estados tendem a perseguir certos objetivos, independentemente do tamanho. Os regimes querem proteger suas próprias prerrogativas e garantir o poder de permanência do próprio estado. Assim, tanto os estados grandes quanto os pequenos estão dispostos a abusar de seus poderes em busca desses objetivos – se puderem se safar. Estados pequenos e descentralizados, no entanto, enfrentam mais limitações quando se trata de expandir o poder e limitar as liberdades dos contribuintes e residentes. São essas limitações de fato ao poder político que levam aos benefícios da descentralização que discutirei ao longo do livro.

 

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Notas

[1] Alberto Alesina e Enrico Spolaore, “O que está acontecendo com o número e o tamanho das nações?” E-International Relations, 9 de novembro de 2015, https://www.e-ir.info/2015/11/09/whats-happening-to-the-number-and-size-of-nations/.

[2] Subsidiariedade é um termo frequentemente usado em contextos católicos e europeus que é amplamente sinônimo em seu uso de “controle local”, “federalismo” ou “soberania local” no contexto americano. No entanto, não usarei o termo extensivamente aqui, porque o próprio termo é impreciso e seu significado é contestado entre os estudiosos que estudam a subsidiariedade. Ou seja, não é mais preciso do que termos semelhantes como “descentralização” ou “localismo”. As prescrições políticas para um sistema político que respeite os princípios da subsidiariedade podem variar muito, porque uma definição de subsidiariedade comumente aceita é simplesmente a de que os poderes devem ser atribuídos ao indivíduo ou instituição que melhor ou mais adequadamente os exerça. Isso às vezes é interpretado para favorecer dar mais poder a níveis mais baixos de hierarquia governamental, mas não em muitos casos. As normas para determinar o que constitui o melhor ou mais adequado exercício desse poder são bastante maleáveis e mesmo aqueles que afirmam desejar a subsidiariedade muitas vezes apoiam uma maior centralização do poder, porque a autoridade central é, em muitos casos, considerada a instituição “apropriada” ou “melhor” para exercer o poder em questão. Outros padrões usados para determinar se a subsidiariedade deve favorecer o controle local ou o controle central incluem eficiência econômica e justiça, mas os oponentes da descentralização precisam apenas insistir que o governo central pode entregar mais eficiência ou resultados mais justos. Assim, defender a subsidiariedade (ou descentralização) de forma ampla não avança necessariamente a posição de que mais descentralização é melhor. O objetivo deste livro, ao contrário, é ilustrar o porquê uma maior descentralização é desejável – uma posição que não decorre necessariamente do favorecimento da subsidiariedade ou da descentralização em termos gerais. Para mais sobre por que a subsidiariedade é considerada “vaga” e “escorregadia”, ver Markus Jachtenfuchs e Nico Krisch, “Subsidiariedade na Governança Global”, Law and Contemporary Problems 79, n. 2 (2016): 5; Andreas Føllesdal, “Concepções concorrentes de subsidiariedade”, Nomos 55 (2014): 214-30; Michelle Evans, “The Principles of Subsidiarity as a Social and Political Principle in Catholic Social Teaching”, Solidarity: The Journal of Catholic Social Thought and Secular Ethics 3, nº 1 (novembro de 2013): 45-46.

[3] Llewellyn H. Rockwell, Jr., “What We Mean by Decentralization”, Mises Daily, 21 de julho de 2005, p. https://mises.org/library/what-we-mean-decentralization.

[4] Ibidem.

[5] Ibidem.

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