Isso é legal?

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Sobre leis, autoridades e superstições

Durante o confinamento pessoal que a minha saúde debilitada me impôs, fiquei tão deprimido que mal conseguia ler algo mais complexo do que uma receita de bolo. Foi quando descobri o que chamo de “o fundo do poço da Internet”: páginas cujo principal negócio é reproduzir histórias idiotas do Reddit, intercalando-as com textos fúteis que mais ou menos parafraseiam a história original para que haja algum conteúdo “original” para protegê-los de acusações de violação de direitos autorais.

Dois tipos de histórias são frequentemente republicados no fundo do poço da Internet: problemas familiares e problemas no local de trabalho. O tipo de coisa que na ficção ou nas notícias regulares (mesmo que a maioria das notícias hoje em dia seja ficcional) não forneceria mais do que um pano de fundo. Grande alimento para sociólogos tomistas deprimidos, temporariamente incapazes de enfrentar estudos organizados sobre o que, no final das contas, é o mesmo assunto. Os poucos neurônios ainda vivos em meu cérebro, é claro, muitas vezes desencadeavam uma conexão e me informavam que isto ou aquilo era um bom exemplo de algo sobre o qual alguém escreveu em termos teóricos, mas esse não era o ponto. Eu só precisava vivenciar indiretamente todas aquelas pequenas coisas enquanto estava deitado e tentava encontrar uma posição que doesse menos.

Ora, a função social e psicológica da boa ficção é precisamente essa; permite que as pessoas vivam o que de outra forma não viveriam e, assim, aprendam sobre o mundo exterior sem arriscar a vida ou a integridade física. Mas a boa ficção tem bons enredos, suspense, desenvolvimento de personagens e outras coisas que exigem um cérebro funcional para serem apreciadas, enquanto a tolice dos contos do Reddit reaquecidos no microondas é de “leitura fácil”, no mesmo sentido em que a música de elevador é chamada de “audição fácil”.

De qualquer forma, meus poucos neurônios restantes às vezes continuavam puxando quando alguma história era um exemplo bom demais para ser deixado passar. É por isso que decidi tentar escrever algo esta manhã, depois de acordar me sentindo melhor do que a média recente. As publicações desencadeadoras, perdidas para sempre na vastidão da história do meu navegador, são duas. Uma era uma postagem angustiada de um inglês prestes a se casar, e a outra uma reclamação de um canadense, se minha memória não falha (como acontece regularmente), sobre um mal-entendido comum na Internet. Vamos começar com este último, por ser mais curto:

O bom Cannuck mencionou que frequentemente recebia comentários em suas publicações perguntando se era legal fazer algo sobre o qual havia escrito. Ele diria que sim, e para ele era óbvio que em uma história que começasse com “Aqui em Ontário”, ou algo parecido, o comentarista estaria perguntando sobre a legislação canadense local. Mas, na maioria das vezes, seria um americano quem presumiria que a lei americana era válida no Canadá, e até que o mal-entendido fosse resolvido, ocorreria uma longa e absurda troca de comentários.

Agora, a história do inglês é muito mais interessante, na medida em que esse tipo de ruído de fundo para a vida real pode ser interessante. Ele estava prestes a se casar com uma garota muçulmana indiana, e um mal-entendido intercultural o chocou tanto que ele perguntou às pessoas no Reddit se deveria terminar com ela. A parte mais triste é que ele não tinha entendido que se tratava de um caso clássico de mal-entendido cultural. Ele considerava os valores da sua cultura naturais e não conseguia compreender que valores culturais radicalmente diferentes influenciavam a visão da sua noiva sobre a mesma situação.

Como o cara contou, sua noiva queria um casamento indiano grande e pomposo, e ele aceitou. No entanto, um amigo seu que também se casou com uma mulher muçulmana indiana numa cerimônia civil simples disse-lhe que por mais que a sua noiva quisesse um casamento mais tradicional, não o poderia ter realizado porque ele não era muçulmano. Como o futuro noivo também não era muçulmano, ele não conseguia entender como iria realizar a mesma cerimônia tradicional exagerada que foi negada ao seu amigo. O drama começou quando ele perguntou à noiva como funcionava.

A jovem riu e disse que não era grande coisa: ele só precisava dizer algumas palavras mágicas (a Shahada: “Eu testemunho que não há divindade além de Alá, e testemunho que Maomé é o Mensageiro de Deus”) diante de alguma autoridade muçulmana imediatamente antes da cerimônia, e ele teria se tornado muçulmano o suficiente para se casar com ela em uma cerimônia tradicional. Não é grande coisa, ela disse; ele não precisava seguir em frente e viver como muçulmano, não havia aulas de catecismo ou algo parecido. Ele só precisava deixar escapar essa bobagem uma vez, e pronto: eles poderiam se casar da maneira tradicional (para ela).

Dizer que o pobre inglês ficou chocado seria um eufemismo muito britânico. Ele ficou abismado. Devastado. Ele não queria se tornar muçulmano! Sua noiva, por outro lado, não conseguia entender qual era o problema. Afinal, ele era ateu de qualquer maneira e, claro, continuaria ateu. Ele não estaria abjurando nenhuma (outra) fé. Era apenas um ritual vazio, uma parte burocrática do processo de casamento. Ele não conseguia entender como ela estava encarando isso tão levianamente, e ela não conseguia entender por que ele estava transformando um pequeno morro em uma montanha.

O cerne desse mal-entendido cultural é muito simples: o inglês pertence a uma cultura totalmente moderna (poderia também dizer-se que sua cultura é a cultura moderna, uma vez que a modernidade procura substituir todas as outras culturas) e, portanto, adere a superstições que praticamente em qualquer outra cultura do mundo seria vista como estranha e tola. E é aqui que, finalmente!, se encontram os posts que desencadearam estas divagações. A principal superstição da Modernidade pode ser resumida no âmbito absurdamente amplo em que a questão “É legal?” faz sentido para os modernos.

Em qualquer cultura regular, esta questão tem um alcance muito limitado e só fará sentido dentro de algum tipo de esforço burocrático. Por  exemplo, os contadores se preocupam se as coisas são legais, mas as pessoas comuns nunca ouvirão ou farão essa pergunta em suas vidas. Seu equivalente fora da Modernidade seria algo semelhante a “Posso fazer isso?”; o fato de ambas as questões parecerem significar a mesma coisa na cultura moderna está na raiz de muitos mal-entendidos culturais, como no processo de casamento do inglês.

A raiz das superstições modernas que estão no cerne do problema são:

  • A crença na organização de cima para baixo da sociedade, isto é, a presunção de que o governo e as suas leis (especialmente a Constituição do Estado) de alguma forma criam (“constituem”, estabelecem) a sociedade e a moralidade social;
  • A crença na imparcialidade e impessoalidade dos sistemas e autoridades governamentais.

A primeira crença acima tem muitos corolários, entre os quais a confluência de “É legal?” e “Posso fazer isso?”, questões cujo significado e importância são completamente diferentes em qualquer cultura não-moderna. Quando se acredita que as instituições formais de poder criam uma sociedade, a lei humana substitui tanto a moralidade (dos “hábitos”, costumes) como, muitas vezes, o bom senso. Enquanto “Posso fazer isso?” implica “É um comportamento social aceitável?”, “Terá consequências desagradáveis?”, “Fazer isso irritará alguém cuja ira devo evitar?”, e assim por diante, “É legal?” restringe a questão a um binário informado por leis humanas (teoricamente universais em uma determinada sociedade).

Nas sociedades modernas, contudo, a produção de leis supera largamente a produção de todas as outras indústrias combinadas. Na moderna divisão tripartida de poderes comum, a função que emprega diretamente o maior número de pessoas no seu nível superior é a de legislador. Embora haja normalmente um chefe do Executivo e um corpo de menos de vinte pessoas à frente do Judiciário, o órgão Legislativo geralmente conta com pelo menos algumas centenas de membros. É intencional, pois a sociedade, no sistema de crenças moderno, seria criada e perpetuada através da criação de leis (em vez de através da constituição de famílias e associações voluntárias).

Consequentemente e previsivelmente, mesmo se deixarmos de lado que a maioria das “leis” são hoje em dia feitas através de regulamentos executivos, o grande número de leis torna impossível assumir que fazer o que todos os outros fazem manterá alguém dentro dos limites do que é legal. Daí a notória pergunta “É legal?” Quando acrescentamos à equação a confusão moderna entre a lei humana e a moralidade, que torna perfeitamente aceitável ser uma praga e um incômodo, desde que o que se faz seja “legal”, viver em sociedade torna-se um jogo em que os limites do comportamento aceitável dependa de conhecimento oculto. A propósito, um dos fóruns do Reddit (“subreddits”) mais populares entre os curadores de contos do Reddit é chamado de “Conformidade Maliciosa”. Consiste em contos em que um aprendiz de feiticeiro segue ao pé da letra alguma lei feita pelo homem para se vingar de um cavaleiro do Lado Negro, chefe ou senhorio mau.

E aqui estamos de volta ao pobre noivo britânico. Em qualquer lugar fora da sociedade moderna, as autoridades são vistas como pessoas que podem tornar a vida de alguém miserável se contrariadas e, portanto, devem ser evitadas ou aplacadas. Foi nisso que se basearam os planos da sua noiva para o casamento: o clérigo muçulmano arruinaria o casamento, a menos que fosse aplacado pela recitação de alguma fórmula absurda, por isso ela apenas adicionou essa recitação à sua lista de tarefas e não pensou mais nisso.

A opinião do noivo, porém, era oposta. Suas crenças modernas o levam a ter um tabu muito forte contra contar mentiras a figuras de autoridade. Ele poderia calar a boca ou dizer “a verdade, toda a verdade e nada além da verdade”, e certamente não poderia se importar menos com Maomé, Alá ou Branca de Neve e os sete anões. Nos filmes americanos, os policiais que prendem alguém têm que realizar um ritual no qual declaram solenemente que a pessoa presa tem “o direito de permanecer em silêncio” e que tudo o que ela disser pode ser usado contra ela no tribunal. O tabu contra contar histórias fantásticas para figuras de autoridade é tão forte, porém, que nada é dito nas palavras rituais sobre seu direito (ou falta dele) de mentir.

Outro ritual moderno engraçado é clicar no botão “Concordo” ao instalar o software. Ninguém lê a montanha de textos jurídicos com os quais teoricamente concordaríamos, e é uma impossibilidade intelectual concordar com algo que não conhecemos. Já ouvi falar de desenvolvedores de software que esconderam em suas bobagens legais a promessa de pagar uma certa quantia de dinheiro a quem lhes escrevesse, dizendo que leram a coisa, mas nunca ouvi falar de desenvolvedores que tiveram que pagar mais de um ou dois loucos leitores de esterco. No entanto, as sociedades modernas consideram vinculativos esses não-acordos ridículos.

A principal diferença entre as culturas da noiva e do noivo é que na dela a lealdade está com a família (incluindo, é claro, o amado noivo) e tudo o que se diga em seu nome para aplacar uma autoridade que é vista como um estranho perigoso é inútil. Para ele, é o contrário: a própria existência do seu casamento depende de alguma autoridade formal da qual o clérigo muçulmano seria representante, e não do noivo e da noiva. O modelo de sociedade de cima para baixo ao qual ele adere faz das autoridades formais pelo menos mediadores necessários entre as pessoas e, em última análise, a fonte de laços como o do casamento. Esta é a superstição que torna possível o divórcio, por exemplo: afinal, uma ligação criada pelo Estado pode ser anulada pelo mesmo Estado.

A difusão do poder do Estado no pensamento moderno torna-o um substituto de Deus. Contudo, ao contrário do Deus real, que é imutável, o Estado Moderno é uma obra que está perpetuamente em processo. Não haverá um momento em que os legisladores decidam que criaram (do nada) leis suficientes e possam fechar as portas. É uma consequência da inversão fundamental da verdade que está no cerne da Modernidade; quando Descartes decidiu que não poderia ter certeza de que o mundo real ao seu redor existisse, mas que sua própria existência poderia ser provada pelo fato de que ele estava pensando, ele subverteu (e perverteu) a percepção da realidade e da verdade. A verdade é a concordância da nossa percepção mental com a coisa real fora da nossa mente, no mundo real: se eu seguro uma laranja e reconheço que é uma laranja, a minha percepção é verdadeira. Se eu confundir com outra coisa, não é. Assim, a pedra de toque que usamos para verificar se os nossos pensamentos são verdadeiros é a própria realidade.

Descartes inverteu-a e, no pensamento moderno, a ideia torna-se a pedra de toque da realidade. É por isso que todo pensamento ideológico começa com uma ideia do que a sociedade deveria ser e tenta fazer com que a coisa esteja de acordo com a ideia. É uma espécie de pensamento mágico, na medida em que nenhuma mente humana poderia apreender a totalidade da realidade ou mesmo a totalidade de uma determinada sociedade humana. Em termos sociais, significa que novas leis devem ser criadas constantemente para que a realidade tenha algo a que se agarrar.

Para a noiva indiana, tornar-se muçulmana implicava muito mais do que pronunciar algumas palavras. Significava acreditar em Alá e submeter-se a tudo o que Maomé e os seus sucessores dissessem que se devia submeter (“Islão” significa literalmente “submissão”). Significava orar cinco vezes por dia, comer apenas alimentos aprovados e assim por diante. Nenhuma fórmula mágica pronunciada às pressas para que alguém possa conseguir um bom casamento poderia mudar a realidade e transformar um ateu inglês em um verdadeiro muçulmano.

No entanto, no pensamento mágico do seu noivo, era possível ser enfeitiçado e tornar-se muçulmano, tal como seria possível cometer um ato imoral fazendo algo que honestamente nunca se sabia ser “ilegal” ou estar violando um não-acordo de instalação de software. É semelhante ao pensamento farisaico, no qual alguém pode pecar por acidente (por exemplo, comer algo que não sabia que continha carne de porco), sem intenção de pecar. O pobre homem acreditava verdadeiramente, do fundo obscuro da sua superstição, no poder mágico do encantamento que teria de proferir, e não queria tornar-se muçulmano.

Desesperadamente, ele viu sua amorosa noiva como a madrasta bruxa de Branca de Neve, que lhe deu uma maçã envenenada, sem perceber que era ele quem fornecia o veneno quando lia suas ações através do prisma de seus próprios valores culturais (modernos). Ela honestamente não sabia sobre o tabu moderno contra aplacar figuras de autoridade com mentiras inofensivas, ela honestamente não conseguia imaginar que ele atribuiria tanto poder à recitação ritual de algumas palavras sem sentido. Ela não tinha como saber isso.

Não sei o que aconteceu com o casal, mas sei que se ele não partisse o coração dela e eles continuassem juntos, seria apenas o primeiro de muitos outros choques culturais e mal-entendidos. Afinal, o poder todo-poderoso que os muçulmanos atribuem ao seu Alá é ainda muito menor do que a criação de realidade que os modernos atribuem às suas instituições formais. É bastante provável que algum dia o marido colocasse o Estado entre eles, pois já acreditava que o Estado (e não eles) realizava (em vez de reconhecer) o seu casamento.

Esta é a mesma superstição que está no cerne do medo comum da direita de que a esquerda “destrua a família”, como se tal coisa fosse possível. Eles acreditam que o Estado (que pode muito bem estar nas mãos da esquerda) cria famílias através dos seus rituais e, portanto, poderia destruir a própria instituição da família de uma forma semelhante. A sua crença de que o Estado Moderno – uma instituição muito recente e geograficamente limitada, aliás – é um deus criador que gera a sociedade não lhes permite compreender que tudo o que ele pode fazer ou deixar de fazer é reconhecer o que existia muito antes dele e estará lá muito depois de ele ter desaparecido.

Quando as leis humanas chamam de “casamento” qualquer outro tipo de união entre seres humanos (ou mesmo entre seres humanos e não-humanos, já que existem tipos alternativos de lunáticos que tentam “casar” pontes e cães), tudo o que fazem é confundir ao seu conveniente, embora desnecessário, reconhecimento de famílias preexistentes. Certamente não se trata de criar “novos tipos de família”, tal como se uma criança decidisse chamar maçãs de laranjas, não estaria de alguma forma criando um novo tipo de laranja.

As leis humanas não podem criar realidades. Tudo o que podem fazer é fornecer incentivos à ação humana. Se as leis forem aplicadas pelo poder do Estado, as penalidades serão um incentivo negativo, e pronto. Novas leis não podem mudar o que é certo e o que é errado; tudo o que podem fazer é ameaçar aqueles que fazem o que eles proíbem ou até mesmo forçar as pessoas a fazerem o que é errado sob coação. “É ilegal?” não é uma questão sobre ética ou moral, apenas sobre a possibilidade de ser assediado pelas instituições formais modernas.

E, claro, nenhum encantamento ritual pode transformar um ateu inglês num muçulmano.

Chesterton estava certo: quando as pessoas pararem de acreditar em Deus, acreditarão em todo tipo de bobagem.

 

 

 

Artigo original aqui

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Carlos Ramalhete
Estudou no Seminário Arquidiocesano São José-RJ, na Universidade Santa Úrsula, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro e na Universidade Católica de Petrópolis. Residiu em Israel, primeiramente no Convento dos Padres de Sion e, depois, na Cidade Velha. É funcionário público estadual e atua também como tradutor e professor de Filosofia, Sociologia e Música. Dentre outros trabalhos, traduziu o “Dicionário da Civilização Grega” para a Ed. Zahar. Escreve todas às 5ª-feiras para o Jornal “A Gazeta do Povo”, do Paraná; e contribui regularmente com artigos para as revistas “Vila Nova”, “In Guardia” e “Guia Prático de Teologia”, e para os Blogs “A Hora de São Jerônimo”, “Deus lo Vult”, “Salvem a Liturgia” e “Tradição em Foco com Roma”. Nos poucos momentos vagos que lhe restam estuda, desenha, fotografa, toca e reforma instrumentos de sopro, e anda de jipe e de moto.

1 COMENTÁRIO

  1. A lei estatal para as pessoas é exatamente isso que o autor escreveu. Eu acho curioso quando alguém escreve: “se ele for culpado te que pagar”; “é crime!” ou a própria decepção das pessoas umas com as outras quando alguém é “acusado” de um crime. O estado acerta no máximo e 3 ou 4 leis, das bilhões que existem por aí…. ou seja, com este índice de acerto já deveria ter sido abolido há centena de anos.

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