Liberdade e a Lei

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2- “LIBERDADE” E “COERÇÃO”

Uma abordagem do problema de se definir “liberdade” mais cuidadosa do que a realista que acabamos de rejeitar aqui envolveria uma investigação preliminar a respeito da natureza e propósito dessa definição.  É costume se distinguir definições “estipulativas” de “lexicográficas”.  Ambas descrevem o significado atribuído a uma palavra; mas a primeira se refere a um significado que o autor da definição se propõe a adotar para a palavra em questão, enquanto a última se refere ao significado que as pessoas em geral dão a essa palavra no uso comum.Desde a II Guerra Mundial, emergiu uma nova tendência em filosofia linguística.  Ela reconhece a existência de linguagens cujo objetivo não é apenas descritivo, ou sequer é descritivo — linguagens que a escola do chamado Círculo de Viena teria condenado como totalmente erradas ou inúteis.  Os adeptos desse novo movimento reconhecem também as linguagens não descritivas — às vezes chamadas de “persuasivas”.  O propósito das definições persuasivas não é descrever coisas, mas modificar, com conotações favoráveis, os significados tradicionais das palavras, de modo a induzir as pessoas a adotarem certas crenças ou certas formas de comportamento.  É óbvio que várias definições de “liberdade” podem ser e têm sido produzidas dessa maneira, com o objetivo de induzir as pessoas a, por exemplo, obedecerem às ordens de algum governante.  A formulação dessas definições persuasivas não seria uma tarefa adequada ao acadêmico.  Por outro lado, ele está habilitado a dar definições estipulativas de “liberdade”.  Ao fazê-lo, um estudioso pode, ao mesmo tempo, escapar à acusação de usar definições equívocas com o propósito de fraude e se livrar da necessidade de elaborar uma definição lexicográfica, cujas dificuldades são óbvias, devido à já mencionada multiplicidade de sentidos atribuídos à palavra “liberdade”.

As definições estipulativas podem parecer, na superfície, uma solução para o problema.  O ato de estipular parece depender inteiramente de nós mesmos ou, no máximo, de um parceiro que concorde conosco sobre o que queremos definir.  Quando os adeptos da escola linguística falam de definições estipulativas, enfatizam a arbitrariedade dessas formulações.  Isso fica evidenciado, por exemplo, pelo entusiasmo com o qual os advogados das definições estipulativas citam uma autoridade que não é propriamente um filósofo — pelo menos não oficialmente.  Esse homem muitas vezes citado é Lewis Carroll, o brilhante autor de Alice no País das Maravilhas e Através do espelho, que descrevem os tipos impossíveis e sofisticados encontrados por Alice durante suas viagens.  Um deles, Humpty Dumpty, fazia as palavras dizerem o que ele queria que dissessem e até lhes pagava uma espécie de salário por esse serviço.

“‘Quando eu uso uma palavra”, disse Humpty Dumpty num tom meio zombeteiro, “ela significa exatamente o que escolhi que significasse — nem mais nem menos”.

“A questão é”, disse Alice, “se você pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes”.

“A questão é”, disse Humpty Dumpty, “qual é o dono — só isso .”[14]

Quando falam em definições estipulativas, os filósofos analíticos têm em mente principalmente as da lógica ou da matemática, onde todos parecem estar livres para começar quando e onde quiserem, contanto que definam precisamente os termos que empregam em seu raciocínio.  Sem entrar nas complicadas questões ligadas à natureza dos procedimentos matemáticos ou lógicos, sentimo-nos obrigados, no entanto, a alertar que não se confundam esses procedimentos com os das pessoas que falam de questões como “liberdade”.  Um triângulo é certamente um conceito, sendo ou não esse conceito outra coisa também — por exemplo, um objeto de experiência, intuição ou algo parecido.  “Liberdade”, enquanto conceito, é também algo em que muitas pessoas acreditam para viver, algo pelo qual dizem estarem dispostas a lutar, algo do qual dizem não poderem prescindir para viver.  Não acredito que as pessoas lutassem por triângulos.  Talvez alguns matemáticos o fizessem.  Mas muitas pessoas dizem estarem preparadas para lutar pela liberdade da mesma forma que estão preparadas para lutar por um pedaço de terra ou para proteger a vida da pessoa que amam.

Isso não pretende ser um elogio à liberdade.  Os fatos referidos aqui podem ser facilmente verificados nos registros históricos de muitos países ou observados no dia a dia.  O fato de as pessoas estarem preparadas para lutar pelo que chamam de sua “liberdade” está relacionado com o fato de dizerem também que “mantêm” ou “perderam”, ou “recuperaram” sua “liberdade”, apesar de nunca dizerem que “mantêm” ou “perderam” ou “recuperaram” triângulos ou outros conceitos geométricos semelhantes.  Por outro lado, na realidade não se pode apontar para a “liberdade”; não é uma coisa material.  Mesmo se considerada como uma coisa material, a “liberdade” não poderia ser a mesma para todos, uma vez que há diferentes significados para “liberdade”.  Não obstante, podemos dizer, provavelmente, que a “liberdade” é, pelo menos para cada pessoa que fala dela, uma realidade, uma coisa definida.  “Liberdade” pode ser uma situação considerada adequada para aqueles que a exaltam; pode ser objeto de experiência não sensorial, induzindo a uma consciência de coisas não materiais, como valores, crenças e assim por diante.  “Liberdade” parece ser um objeto de experiência psicológica.  Isso significa que não é concebida por pessoas comuns simplesmente como uma palavra, como uma entidade nominal com cujo significado basta concordar, através de estipulação semelhante às matemáticas ou lógicas.

Nessas circunstâncias, questiono se podemos ou não definir “liberdade” de modo estipulativo.  É claro que toda definição é, até certo ponto, estipulativa, uma vez que implica certa concordância sobre como uma palavra deve ser usada.  Mesmo as definições lexicográficas não excluem estipulações relativas à maneira de descrever o que as pessoas querem dizer com uma certa palavra de uso comum na França, na Inglaterra, ou nesses dois países, ou no mundo todo.  Por exemplo, podemos fazer estipulações sobre as linguagens a serem levadas em consideração na elaboração de uma definição lexicográfica, ou sobre a escolha a ser feita entre os significados da mesma palavra, quando os dicionários registram vários.  Mas em todos esses casos nunca esquecemos que há alguns usos comuns registrados por dicionários e que não podem ser mudados por estipulação, sem se levar em consideração aqueles significados que outras pessoas empregam.

As estipulações são simplesmente artifícios instrumentais para transmitir aos outros o que queremos que saibam.  Em outras palavras, são um meio de comunicar ou transmitir uma informação, mas a informação em si não pode ser estipulada.  Podemos estipular que preto vai ser chamado de “branco”, e branco, de “preto”, mas não podemos fazer estipulações sobre as reais experiências sensoriais que comunicamos, e às quais arbitrariamente damos o nome de “preto” ou “branco”.  Uma estipulação é possível e também útil até onde há um fator comum que torna sua comunicação bem-sucedida.  Esse fator comum pode ser uma intuição, em matemática, ou uma experiência sensorial, em física, mas ele próprio jamais é objeto de estipulação.  Sempre que uma estipulação parece ser baseada em outra estipulação, o problema de se encontrar um fator comum que permita que a estipulação funcione, é simplesmente adiado; não pode ser eliminado.  Esse seria o limite do poder de Humpty Dumpty, se ele não fosse um personagem fictício de um conto infantil, mas uma pessoa real que faz estipulações com outras pessoas acerca do emprego de uma palavra.

Seria quase inútil, por isso, fazer-se uma definição estipulativa de “liberdade” que não transmitisse a outras pessoas algum tipo de informação incluída na essência do significado daquela palavra, da forma como já a compreendemos, e é questionável se os teóricos, ao falarem em definições estipulativas, têm realmente pensado em algo como “liberdade”.

Dessa forma, para que uma definição estipulativa de “liberdade” tenha significância, precisa transmitir alguma informação.  É duvidoso que uma informação cognoscível apenas pelo autor da definição seja de algum interesse para outras pessoas que não partilhem do conteúdo daquela informação.  Sendo completamente pessoal, seria de pouco interesse para os outros.  De fato, seria impossível revelá-lo a outras pessoas.  Uma definição exclusivamente estipulativa de “liberdade” não poderia fugir a essa deficiência.  Todas as vezes que filósofos políticos propuseram uma definição estipulativa de “liberdade”, não  apenas queriam transmitir informação sobre seus sentimentos e crenças pessoais, como também lembrar aos outros sentimentos e crenças que consideravam comuns àqueles a quem se dirigiam.  Nesse sentido, também as definições estipulativas de “liberdade” propostas, de tempos em tempos, por filósofos políticos, estão, de forma mais ou menos clara, vinculadas a algum uso lexical da palavra “liberdade” e, consequentemente, a alguma pesquisa lexicográfica a respeito.

Assim, uma definição realmente efetiva de “liberdade” deve ser, em última análise, uma definição lexicográfica, apesar das dificuldades da pesquisa lexicográfica que isso envolver.

Em suma: “liberdade” é uma palavra utilizada pelas pessoas, em sua linguagem cotidiana, para significar tipos especiais de experiências psicológicas.  Essas experiências são diferentes em momentos e lugares distintos e também estão ligadas a conceitos abstratos e palavras técnicas, mas não podem simplesmente ser identificadas com conceitos abstratos, nem reduzidas a meras palavras.  Finalmente, é possível, e provavelmente também útil, ou mesmo necessário, formular uma definição estipulativa de “liberdade”, mas as estipulações não podem evitar a pesquisa lexicográfica, porque somente esta tem condições de revelar os significados que as pessoas verdadeiramente atribuem à palavra, no uso cotidiano.

“Liberdade”, a propósito, é uma palavra com conotações positivas.  Talvez seja útil acrescentar que a palavra “liberdade” soa bem porque as pessoas a utilizam para indicar sua atitude positiva em relação ao que chamam de “ser livre”.  Como observou Maurice Cranston, em seu ensaio Freedom (Londres, 1953) anteriormente citado, as pessoas nunca utilizam expressões como “estou livre” com o sentido de que estão sem algo que consideram positivo.  Ninguém diz, pelo menos no dia-a-dia, “estou livre de dinheiro” ou “estou livre de saúde”.  Para expressar a atitude das pessoas em relação à ausência de coisas boas, outras palavras são utilizadas: dizem que lhes falta algo; e isso se aplica, até onde sei, a todas as línguas europeias, no presente, assim como no passado.  Em outras palavras, estar “livre” de algo significa “estar sem alguma coisa negativa”, enquanto, em contrapartida, estar com falta de alguma coisa é estar sem algo positivo.

É lógico que a liberdade faz pouco sentido, quando é complementada apenas pela expressão “de algo”, e esperamos que as pessoas digam, também, para que estão livres.  Mas a presença de uma implicação negativa na palavra “liberdade” e em certas outras relacionadas a ela, como “livre”, parece inquestionável.  Essa implicação negativa também está presente em derivados ligados ao termo “liberdade”, que é simplesmente a contrapartida latina de “freedom”[15], e não uma palavra com significado diferente[16].   Por exemplo, “liberal” é uma palavra que, tanto na Europa como na América, designa uma atitude negativa em relação à “repressão”, independentemente da natureza da — própria “coerção”, que, por sua vez, é concebida de forma muito diferente, pelos “liberais” americanos e pelos europeus.  Assim, “liberdade” e “coerção”, na linguagem usual, são termos antitéticos.  É claro que pode ser que se goste de uma “coerção” ou de alguns tipos de “coerção”, como aqueles oficiais do exército russo sobre os quais Tolstói referiu-se dizendo que gostavam da vida militar porque era um tipo de “vadiagem comandada”.  Provavelmente muito mais pessoas no mundo do que imaginamos gostam de “coerção”.  Aristóteles fez uma observação penetrante, ao dizer, no início de seu tratado sobre política, que as pessoas se dividem em duas amplas categorias, as que nasceram para dar ordens e as que nasceram para obedecer a ordens.  Mas, mesmo que alguém goste de “coerção”, seria um abuso de palavra dizer que “coerção” é liberdade.  No entanto, a ideia de que “coerção” é algo muito proximamente ligado à liberdade é, pelo menos, tão antiga quanto a história das teorias políticas no inundo ocidental.

Acho que a principal razão para isso é que ninguém pode dizer-se “livre de” outra pessoa, se esta é “livre” para, de alguma forma, reprimir aquela.  Em outras palavras, todo mundo é “livre”, se pode, de algum modo, reprimir outras pessoas, de maneira a impedi-las de constrangê-lo em algum aspecto.  Nesse sentido, “liberdade” e “coerção” estão inevitavelmente ligadas, e isso é por demais negligenciado, quando as pessoas falam em “liberdade”.  Mas a própria “liberdade”, na linguagem usual, nunca é coerção, e a coerção que está inevitavelmente ligada à liberdade é apenas uma coerção negativa; ou seja, a coerção imposta unicamente para fazer outras pessoas renunciarem à coerção, por sua vez.  Tudo isso não é meramente um jogo de palavras.  É uma descrição muito resumida do significado de palavras, na linguagem comum das sociedades políticas, sempre que os indivíduos têm qualquer poder a ser respeitado, ou, como se poderia dizer, sempre que têm qualquer poder de caráter negativo que os autoriza a serem chamados de “livres”.

Nesse sentido, podemos dizer que o “livre mercado” também implica, inevitavelmente, a ideia de uma “coerção” na qual todos os membros de uma sociedade de mercado possuem o poder de exercer restrições sobre pessoas, como ladrões ou assaltantes.  Não existe essa coisa de “livre mercado” com alguns poderes extras de constrangimento.  O livre mercado tem raízes em uma situação na qual aqueles que estão comprometidos em transações de mercado, têm algum poder para reprimir os inimigos de um mercado livre.  Esse ponto não é enfatizado o bastante pelos autores que, ao focalizarem sua atenção no “livre mercado”, acabam tratando-o como antítese total da coerção governamental.

Assim, por exemplo, o professor Mises, autor que admiro imensamente por sua defesa inflexível do “livre mercado”, com base em um raciocínio lúcido e compelativo, e de uma soberba maestria em todos os pontos envolvidos, diz que “liberdade”[17] é um termo empregado para descrever condições sociais de membros individuais de uma sociedade de mercado, na qual o poder do bloco hegemônico indispensável, o estado, é refreado, a fim de que a operação do mercado não fique ameaçada.[18] Notamos, aqui, que qualificou como “indispensável” o hegemônico bloco do estado, mas que quer dizer, com liberdade, como ele também diz, “restrições impostas sobre o exercício da autoridade policial”[19], sem acrescentar exatamente, como eu consideraria razoável, do ponto de vista de um comerciante livre, que liberdade significa também restrição imposta ao exercício do poder de interferência de qualquer pessoa no mercado livre.  Quando admitimos esse significado para a liberdade, o bloco hegemônico do estado torna-se não apenas algo a ser refreado, mas também, e eu diria antes de mais nada, algo de que fazemos uso para restringir a ação de outras pessoas.

Os economistas não negam — mas também não levam diretamente em consideração — o fato de que qualquer ato econômico, como regra, é também um ato legal, cujas consequências podem ser impostas pelas autoridades, se, por exemplo, as partes da transação não se comportam como deveriam, segundo as bases acordadas.  Como salientou o professor Lionel Robbins, em seu The nature and significance of economics, os estudos sobre a relação entre a economia e a lei são ainda bastante raros por parte dos economistas, e a própria relação, apesar de incontestável, é bastante negligenciada.  Vários economistas têm debatido sobre a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo, mas poucos examinaram o que o professor Lindley Frazer, em Economic thought and language, chama de trabalho “desprodutivo” — isto é, o trabalho que é útil para o trabalhador, mas não para quem ou contra quem ele trabalha.  O trabalho “desprodutivo”, como o dos mendigos, chantagistas, ladrões e assaltantes, permanece fora da esfera da economia, provavelmente porque os economistas consideram óbvio que o trabalho “desprodutivo” seja, normalmente, contra a lei.  Dessa forma, os economistas reconhecem que o “útil” que em geral levam em consideração, é apenas aquele compatível com a lei existente da maioria dos países.  Assim, a relação entre economia e lei é implícita, mas raramente é encarada pelos economistas como objeto digno de suas pesquisas.  Consideram, por exemplo, a troca de bens, mas não o comportamento de troca que torna possível uma troca de bens, regulado e ocasionalmente imposto para esse propósito pela lei de todos os países.  Consequentemente, um livre mercado parece algo mais “natural” do que um governo ou, pelo menos, independente do governo, quando não algo que é necessário manter “contra” o governo.  Com efeito, um mercado não é mais “natural” do que o próprio governo, e ambos não são mais naturais do que, digamos, pontes.  As pessoas que ignoram esse fato devem levar a sério esses versos uma vez cantados em um cabaré em Montmartre:

 Voyez comme la nature a en un bon seus bien profond Àfaire passer les fleuves justement sous les ponts  (Vejam como a natureza tem extremo bom senso Ao fazer os rios correrem exatamente sob as pontes.)

A teoria econômica não ignorou o fato de que é o governo que dá às pessoas o poder prático de evitar coerção por parte de outras no mercado.  Robbins enfatiza isso com habilidade em seu ensaio The theory of economic policy in English political economy (Londres, 1952), observando que “teríamos uma visão inteiramente distorcida” da significância da doutrina daquilo que Marshall chamou de o sistema da liberdade econômica, “a não ser que a víssemos em combinação com a teoria do direito e as funções do governo, que seus autores — de Smith em diante — também apresentaram”.  Como diz Robbins, “a ideia de liberdade in vácuo era completamente estranha às concepções dos economistas”.  Mas o professor Robbins destacou, também, em seu Economic planning and international order (Londres, 1937), que os economistas clássicos deram muito pouca atenção ao fato de que o comércio internacional não poderia emergir como simples consequência do teorema dos custos comparativos, mas que requeria algum tipo de organização legal internacional, para repelir os inimigos do livre comércio internacional, que, em certa medida, são comparáveis aos inimigos do livre mercado de uma nação, como ladrões e assaltantes.

Por outro lado, o simples fato de que a coerção está, de alguma forma, inevitavelmente ligada à “liberdade”, em todas as sociedades políticas, propiciou ou pelo menos favoreceu a ideia de que a “liberdade crescente” poderia ser de algum modo compatível em sociedades de “crescente coerção”.  Essa ideia, por sua vez, estava relacionada a uma confusão sobre o significado dos termos “repressão” e “liberdade” que se deve, sobretudo, não à propaganda, mas às incertezas que podem surgir sobre o significado dessas palavras no uso comum.

O professor Mises diz que “liberdade” é um conceito humano.  Devemos acrescentar que é humano na medida em que há sempre implícita no uso deste termo, na linguagem cotidiana, alguma preferência, por parte dos homens.  Mas isso não significa dizer de um homem que ele está “livre” somente do poder dos outros homens.  Também se pode dizer que um homem está “livre” de uma doença, do medo, da vontade, como se usa na linguagem corrente.  Isso estimulou algumas pessoas a considerarem a “liberdade contra a repressão de outros homens” ao mesmo nível, digamos, da “liberdade contra o desejo”, sem observar que este último tipo de “liberdade” pode não ter nada a ver com o primeiro.  Um explorador pode estar morrendo de fome no deserto, para onde quis ir sozinho — e assim ficar livre de ser constrangido por quem quer que fosse.  Agora, ele não está “livre da fome”, mas está, assim como estava antes, completamente “livre de coerção ou constrangimento”, por parte de outras pessoas.

Vários pensadores, antigos e modernos, tentaram estabelecer uma ligação entre o fato de que algumas pessoas não estão livres da fome ou da doença com o fato de que outras pessoas, na mesma sociedade, não estão livres da coerção de seus semelhantes.  É claro que a ligação é óbvia quando alguém está sob o cativeiro de outras pessoas que o tratam mal e o deixam morrer, por exemplo, de fome.  Mas a ligação não é nem um pouco óbvia quando as pessoas não estão em relação de dependência com outras.  No entanto, alguns pensadores acreditavam erroneamente que, sempre que falta a alguém algo de que ele necessita, ou que simplesmente deseja, ele foi injustamente “privado” dessa coisa pelas pessoas que a possuem.

A história está tão cheia de exemplos de violência, roubo, invasões de terras e assim por diante, que muitos pensadores se sentiram justificados em dizer que a origem da propriedade privada é simplesmente a violência, e que, por isso, deve ser encarada como irremediavelmente ilícita, hoje, assim como nos primórdios.  Os estoicos, por exemplo, imaginavam que toda a extensão de terra sobre o planeta era originalmente comum a todos os homens.  Chamavam essa condição legendária de communis possessio originaria.  Certos apóstolos do Cristianismo, particularmente nos países latinos, ecoaram essa premissa.  Assim, Santo Ambrósio, o famoso arcebispo de Milão, pôde escrever, no século quinto da Igreja da Inglaterra, que se, por sua vez, a Natureza providenciou para que as coisas fossem comuns a todos, os direitos de propriedade privada eram devidos à usurpação.  Ele cita os estoicos, que sustentavam, segundo ele, que tudo na terra e nos mares foi criado para o uso comum de todos os seres humanos.  Um discípulo de Santo Ambrósio, chamado o Ambrosiastro, diz que Deus deu tudo ao homem em comum, e que isso se aplica ao Sol e à chuva, assim como à terra.  O mesmo é dito por São Zeno de Verona — que deu nome a uma das mais magníficas igrejas do mundo — referindo-se aos homens de tempos ancestrais: “Eles não tinham propriedade privada, e tinham, sim, tudo em comum, como o Sol, os dias, as noites, a chuva, a vida e a morte, uma vez que tudo tinha sido dado a eles no mesmo grau, sem qualquer exceção, pela Divina Providência.” E o mesmo santo acrescenta, obviamente aceitando a ideia de que a propriedade privada é o resultado de coerção e tirania: “O proprietário privado é, sem dúvida, semelhante a um tirano, tendo ele sozinho o controle total de coisas que poderiam ser úteis a várias pessoas.” Praticamente a mesma ideia pode ser encontrada nos trabalhos de certos canonistas, alguns séculos mais tarde.  Por exemplo, o autor da primeira sistematização das regras da Igreja, o assim chamado decretum Gratiani, diz: “Aquele que está determinado a acumular mais do que precisa, é um ladrão.”

Os socialistas modernos, incluindo Marx, simplesmente produziram uma versão revisada dessa mesma ideia.  Por exemplo, Marx distingue vários estágios na história da humanidade: um primeiro estágio no qual as relações de produção eram as de cooperação, e um segundo estágio no qual algumas pessoas adquiriram, pela primeira vez, o controle dos meios de produção, colocando, com isso, uma minoria em posição de ser mantida pela maioria.  O antigo arcebispo de Milão diria, em linguagem menos complicada e mais efetiva: “À natureza devemos a lei das coisas em comum; a usurpação é devida à lei privada.”

Podemos nos perguntar, é claro, como é possível falar de “coisas comuns a todos”.  Quem decretou que todas as coisas são “comuns” a todos os homens, e por quê? A resposta usual dada pelos estoicos e seus discípulos, os discípulos do Cristianismo dos primeiros séculos depois de Cristo, era que, assim como a Lua, o Sol e a chuva são comuns a todos os homens, não há razão alguma para se afirmar que as outras coisas, como a terra, não sejam, também, comuns.  Esses advogados do comunismo não se deram ao trabalho de fazer uma análise semântica da palavra “comum”.  Senão, teriam descoberto que a terra não pode ser “comum” a todos os homens da mesma maneira que o Sol e a Lua o são, e que, por isso, não é a mesma coisa permitir que cultivem a terra em comum e deixar que usem o luar, ou a luz do Sol, ou o ar fresco, quando saem para passear.  Os economistas modernos explicam a diferença chamando atenção para o fato de que não há escassez de luar, enquanto que há escassez de terra.  Não obstante a natureza truísta dessa afirmação, uma pretensa analogia entre coisas escassas, como terra arável, e coisas abundantes, como luar, sempre foi uma boa razão, aos olhos de muitas pessoas, para afirmarem que os “não tenho” são constrangidos pelos “tenho”, e que os últimos privaram ilicitamente os primeiros de certas coisas originalmente “comuns” a todos os homens.  Essa confusão semântica introduzida no uso da palavra “comum”, pelos estoicos e pelos antigos discípulos do Cristianismo, foi mantida por socialistas modernos do todos os tipos e repousa, acredito, na origem da tendência, manifestada em especial nos últimos tempos, de se utilizar a palavra “liberdade” em um sentido inequívoco que relaciona “liberdade de desejo” com “liberdade contra a coerção por outras pessoas”.

Essa confusão está ligada, por sua vez, a outra.  Quando um merceeiro, um médico, ou um advogado, espera por fregueses ou clientes, cada um daqueles pode se sentir dependente destes últimos para viver.  Isso é bem verdade.  Mas se nenhum freguês ou cliente aparece, seria um abuso de linguagem dizer que os fregueses ou clientes que não aparecem coagem o merceeiro, ou o médico, ou o advogado, a morrer de fome.  De fato, nenhum cometeu qualquer coerção contra este, pela simples razão de que ninguém sequer apareceu.  Trocando em miúdos, simplesmente não houve fregueses ou clientes.  Se supomos, agora, que um cliente aparece e oferece um pagamento muito baixo ao médico, ou ao advogado, não se pode dizer que esse cliente em particular está “coagindo” o médico, ou o advogado, a aceitar seu pagamento.  Podemos desprezar um homem que sabe nadar e não salva um semelhante, que está se afogando, sob seus olhos, em um rio, mas seria um abuso de linguagem dizer que, ao deixar de salvar o homem do afogamento, aquele estava “coagindo” o último a se afogar.  Nessa relação, devo concordar com um famoso jurista alemão do século dezenove, Rudolph Jhering, que ficou indignado com a injustiça do argumento desenvolvido por Portia contra Shylock, representando Antônio, em O mercador de Veneza, de Shakespeare.  Podemos desprezar Shylock, mas não podemos dizer que “coagiu” Antônio ou qualquer um a fazer um acordo com ele — um acordo que implicava, segundo as circunstâncias, a morte do último.  O que Shylock queria era apenas coagir Antônio a honrar seu acordo, depois de tê-lo assinado.  Apesar dessas considerações óbvias, as pessoas estão em geral inclinadas a julgar Shylock da mesma maneira que julgariam um assassino e a condenar agiotas como se fossem ladrões ou piratas, apesar de que nem Shylock, nem qualquer agiota comum pode ser propriamente acusado de coagir alguém a procurá-lo para pedir dinheiro a juros usurários.

A despeito dessa diferença entre “coerção”, no sentido de algo na verdade feito para prejudicar alguém contra sua vontade, e no sentido de comportamentos como o de Shylock, muitas pessoas, especialmente nos últimos cem anos, na Europa, tentaram injetar na linguagem corrente uma confusão semântica, cujo resultado é que o homem que nunca se dedicou a tomar uma atitude definida em favor de outras pessoas, e que, por isso, não faz nada por elas, é censurado por sua pretensa “omissão” e é acusado como se tivesse “coagido” os outros a fazerem algo contra sua vontade.  Isso, em minha opinião, não está de acordo com o uso correto da linguagem corrente dos países que me são familiares.  Você não “coage” alguém, se simplesmente deixa de fazer por ela algo que não se comprometeu a fazer.

Todas as teorias socialistas sobre a chamada exploração dos trabalhadores pelos empregadores — e, em geral, dos “não tenho” pelos “tenho” — são, em última análise, baseadas nessa confusão semântica.  Sempre que os historiadores independentes da Revolução Industrial do século dezenove, na Inglaterra, falam da “exploração” dos trabalhadores pelos empregadores, subentendem precisamente essa ideia de que os empregadores exerciam “coerção” sobre os trabalhadores, para que estes aceitassem salários parcos pelo trabalho pesado.  Quando códigos como o Trade Disputes Act de 1906, na Inglaterra, outorgaram aos sindicatos o privilégio de coagirem através de atos ilegais os empregadores a aceitarem suas reivindicações, a ideia era a de que os empregados eram a parte mais fraca, e que, por isso, podiam ser “coagidos” pelos empregadores a aceitarem salários baixos, em vez de altos.  O privilégio concedido pelo Trade Disputes Act baseava-se no princípio familiar aos europeus liberais daquela época e correspondia também ao sentido de “liberdade” aceito, na linguagem corrente, de que você é “livre”, quando pode impedir outras pessoas de o reprimirem.  O problema foi que, enquanto a coerção concedida pelo Act aos sindicatos como um privilégio tinha o significado usual dessa palavra na linguagem corrente, a “coerção” por parte dos empregadores que o privilégio destinava-se a coibir não foi entendida no sentido que essa palavra tinha e ainda tem, na linguagem comum.  Se consideramos as coisas desse ponto de vista, temos de concordar com sir Frederick Pollock, que escreveu, em seu Law of torts, que ” a ciência legal não.  tem, evidentemente, nada a ver com a operação empírica violenta sobre os políticos” , que a legislatura britânica acreditou caber ao Trade Disputes Act de 1906.  Precisamos lembrar, também, que a utilização corrente da linguagem não tem nada a ver com o significado de “coerção” que tornou conveniente, aos olhos dos legisladores britânicos, infligir ao corpo político uma operação violenta desse tipo.

Historiadores sem preconceitos, como o professor T. S. Ashton, demonstraram que a situação geral das classes desfavorecidas da população inglesa, depois das guerras napoleônicas, era devida a causas que não tinham qualquer relação com o comportamento dos empreendedores da nova era industrial, naquele país, e que sua origem deve ser buscada nos primórdios da história da Inglaterra.  Além disso, os economistas já muitas vezes demonstraram, tanto com a apresentação de argumentos de natureza teórica irrefutáveis quanto com o exame de dados estatísticos, que bons salários dependem da razão entre a quantia de capital investido e o número de trabalhadores.

Esse, porém, não é o ponto principal de nosso argumento.  Se dermos à “coerção” esses significados diversos como os que acabamos de ver, poderemos concluir facilmente que os empresários da época da Revolução Industrial, na Inglaterra, “coagiam” as pessoas a habitarem, por exemplo, casas velhas e insalubres, apenas porque não construíram para seus trabalhadores um número suficiente de casas novas e boas.  Da mesma maneira, poderíamos dizer que os industrialistas que não fazem investimentos gigantescos em maquinaria, independentemente dos retornos que possam ter, estão “coagindo” seus trabalhadores a se contentarem com salários baixos.  De fato, essa confusão semântica é acalentada por vários grupos de propaganda e pressão interessados em dar definições persuasivas de “liberdade” e de “coerção”.  Como resultado, as pessoas podem ser censuradas pela “coerção” que alegadamente exercem sobre outras pessoas com as quais jamais tiveram nada a ver.  Assim, a propaganda de Mussolini e Hitler, antes e durante a II Guerra Mundial, incluía a afirmação de que povos de outros países tão distantes da Itália ou da Alemanha como, digamos, o Canadá ou os Estados Unidos, estavam “coagindo” os italianos e os alemães a se contentarem com seus poucos recursos materiais e seus territórios comparativamente pequenos, apesar de nem uma milha sequer de território alemão ou italiano jamais ter sido tomada pelo Canadá ou pelos Estados Unidos.  Da mesma forma, após a última Guerra Mundial, muitas pessoas diziam — especialmente os pertencentes à “intelligentsia” italiana — que os ricos proprietários de terras do Sul da Itália eram os responsáveis diretos pela miséria dos pobres trabalhadores daquelas regiões, ou que os habitantes do Norte da Itália eram os responsáveis pela depressão do interior do Sul, ainda que nenhuma demonstração pudesse ser seriamente feita para provar que a riqueza de certos proprietários de terras do Sul da Itália era a causa da pobreza dos trabalhadores, ou que o padrão razoável de vida desfrutado pelo povo do Norte da Itália era a causa da ausência de tal padrão no Sul.  O pressuposto implícito em todas essas ideias era o de que os “tenho” do Sul da Itália estavam “coagindo” os “não tenho” a uma existência pobre, da mesma forma que os habitantes do Norte estavam “coagindo” os que viviam no Sul a se contentarem com receitas agrícolas, em vez de construírem indústrias.  Devo salientar também que uma confusão semântica análoga está por trás de muitas das acusações feitas aos povos do Ocidente — incluindo os Estados Unidos — e das atitudes adotadas em relação a eles pelos grupos dirigentes em certas ex-colônias, como o Egito e a Índia.

Isso resulta em ocasionais motins e tumultos e todo tipo de ações hostis por parte das pessoas que se sentem “coagidas”.  Outro resultado não menos importante é a série de decretos, códigos e dispositivos, em níveis nacional e internacional, criados para ajudar as pessoas alegadamente “coagidas” a contra-atacarem essa “coerção”, através de artifícios, privilégios, concessões, imunidades etc. legalmente impostos.

Assim, uma confusão de palavras causa uma confusão de sentimentos, e ambos reagem reciprocamente um sobre o outro para confundir as coisas ainda mais.

Não sou tão ingênuo quanto Leibniz, que supunha que muitas questões econômicas e políticas podiam ser ajustadas, não através de disputas — clainoribus —, mas com uma espécie de ajuste de contas — calculemus—, através do qual seria possível para todas as pessoas envolvidas concordarem, pelo menos em princípio, sobre as questões em jogo.  Mas decididamente sustento que um esclarecimento semântico é mais útil do que se acredita, bastando que as pessoas estejam em posição de dele se beneficiarem.

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[14] Lewis Carroll (pseudônimo de Charles Lutwige Dodgson), “Através do espelho”, em The Lewis Carroll book, Richard Herrick, ed. (Nova Iorque: Tudor Publishing Co., 1944), p.238.

[15] Nota do tradutor: O autor utiliza respectivamente as palavras de língua inglesa freedom e liberty. 

[16] Apesar da opinião contrária de sir Herbert Read (citado por Maurice Cranston, op. cit.,p.44). 

[17] Nota do tradutor: São usados ambos os termos freedom e liberty. 

[18] Ludwig von Mises, Human action: A treatise on economics (New Haven: Yale Univesity Press, 1949), p.281.

[19] Ibid. 

 

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