Meu vírus, minhas regras

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[Esse texto é uma versão livre com muitas –MUITAS! – adaptações do artigo “Viruses And Property Rights”, escrito por Duncan Whitmore. Escrito originalmente para o Visão Libertária, com contribuições de Marco Batalha.]

Desde que a praga de Wuhan se espalhou pelo mundo, se tornou imoral defender liberdades individuais. Libertários têm sido bombardeados com acusações de que uma ética baseada no voluntarismo e na propriedade privada seria incapaz de lidar com uma pandemia. Segundo esses opositores da liberdade, somente a imposição de limitações às ações individuais por um poder centralizado poderia evitar conflitos e nos proteger uns dos outros.

Muitos anarcocapitalistas têm se ocupado em apontar as consequências deletérias decorrentes das medidas restritivas impostas pelos reis do gado mundo afora. Por exemplo, a destruição da economia e, consequentemente, também da saúde, já que saúde não é barata. Porém, apesar de tais argumentos contra o autoritarismo estatal serem importantes e corretos, eles são insuficientes do ponto de vista ético. As objeções que tem sido feitas ao libertarianismo consideram que não só seria impossível manter liberdades individuais em cenários de calamidade pública, como também seria imoral defendê-las.

A primeira dificuldade para responder essa questão reside numa concepção ingênua de liberdade individual. Muitos imaginam que a posição libertária da autopropriedade — “meu corpo, minhas regras” — significa que cada um seria absolutamente livre para fazer o que bem entendesse consigo mesmo. Contudo, a posição libertária, na verdade, é que todos somos livres para fazer o que bem entendermos com nosso corpo, contanto que não se interfira fisicamente com a propriedade ou o corpo de outras pessoas sem o consentimento delas. A essa máxima se dá o nome de Princípio da Não Agressão, ou simplesmente PNA.

É importante ressaltar esse ponto, pois muitos imaginam que libertários advogam o uso de drogas ou comportamentos promíscuos, por exemplo. Entretanto, o que se é defendido é a permissibilidade de tais comportamentos para quem assim desejar se comportar, desde que não traga prejuízos para outras pessoas não envolvidas. Defender que algo seja permitido é diferente de incentivar que algo seja feito. A decisão sobre se envolver ou não em tais práticas é estritamente individual.

O problema só surge naquelas situações limítrofes, em que é difícil traçar uma linha entre o uso de minha propriedade e uma possível agressão à propriedade alheia. Por exemplo, qual é o volume apropriado para eu ouvir música sem transgredir a propriedade do meu vizinho? Numa sociedade de leis privadas, tais conflitos são resolvidos caso a caso, segundo os contratos privados existentes entre as partes envolvidas. Um volume aceitável num alojamento estudantil não será o mesmo caso eu more ao lado de um asilo para idosos ou de um hospital.

Talvez os resultados não satisfaçam tudo mundo. Ainda assim, do ponto de vista libertário, uma resolução privada de desacordos, por mais veementes que sejam, é preferível a uma solução uniforme imposta a todos mediante ameaça de agressão. Solução essa possivelmente criada por algum especialista incompetente, como Neil Ferguson. E, além de menos eficiente, por não levar em consideração aspectos particulares de cada caso nem os interesses dos envolvidos, a centralização da solução de conflitos é inerentemente antiética, já que impõe à força desejos de um grupo a todo o restante da população. Trata-se de uma agressão por definição, pois interfere no uso da propriedade alheia sem o consentimento de seus donos.

Parece que para muitos dos críticos do libertarianismo, a praga de Wuhan, com que fomos amaldiçoados pelo PCC, é um desses casos limítrofes em que a ética libertária permitiria um espectro muito grande de soluções possíveis para lidar com o problema. Contudo, deve-se ter em mente que casos limítrofes não são casos em que a ética libertária não seria aplicável, mas sim casos em que a ética libertária permite diferentes soluções sem que seus princípios sejam transgredidos. Mas, seria realmente o vírus chinês um caso limítrofe? Não parece. Vejamos se as principais criticas feitas ao libertarianismo diante da atual crise sanitária realmente se sustentam.

Uma primeira objeção à ética libertária para lidar com o atual cenário de pandemia segue mais ou menos a seguinte linha de raciocínio:

“Uma pessoa que, por definição, é dona do próprio corpo é infectada com a praga de Wuhan. Como ela não sabe que é uma portadora do vírus nem tem o controle sobre o mesmo, ele pode escapar de seu corpo e infectar outra pessoa sem o consentimento dela. Assim como os pais de uma criança infectada têm o dever moral de impedir que seu filho contamine outras pessoas, mesmo contra a vontade da criança, a sociedade, na figura do estado, poderia forçar o isolamento de seus membros contra a vontade deles. Portanto, devido às possíveis externalidades negativas, é inviável sustentar o PNA quando há interação social entre portadores da praga de Wuhan e o restante da sociedade.”

Infelizmente, essa linha de raciocínio tem sido usada inclusive por certos libertários para justificar casos de exceção ao PNA, quando seria permitido supressão parcial ou mesmo total das liberdades individuais.

Em primeiro lugar, a noção de “punição preventiva” é absurda. Até que alguém tenha realmente iniciado uma ação que cause, ou esteja em vias de causar, uma agressão a outra pessoa específica ou sua propriedade, ninguém tem o direito de subjugar um outro a sua vontade. É imoral impor algum tipo de quarentena a alguém simplesmente porque ele pode ter sido infectado. Somente quando se está envolvido no processo de contaminar outra pessoa que algum tipo de uso de força repressiva pode ser justificado.

Em segundo lugar, a transmissão de vírus entre pessoas específicas é impossível de ser determinada com a tecnologia atual. Pelo menos, não com o rigor que se exige para que um indivíduo possa ser culpado de um crime. Não se pode provar que alguém infectou outra pessoa com um vírus da mesma forma que se pode provar quem roubou um carro ou quem baleou um inocente. Sobretudo, se levarmos em consideração nuances como o valor acumulativo da carga viral de múltiplas infecções de diferentes origens durante um período de dias ou mesmo semanas.

Para uma condenação é necessário o devido processo legal, que inclui o amplo direito à defesa. Ninguém pode ser condenado sumariamente, sem provas e sem poder se defender. A simples ideia de tentar processar alguém cada vez que houver um caso de contaminação é absurda e resultaria apenas em desperdício de dinheiro e tempo.

Indivíduos não têm responsabilidade legal de evitar infectar outras pessoas. E muito menos um risco abstrato de infecção pode ser considerado como justificativa para uma proibição universal de interações sociais.

Quer dizer, então, que, no Ancapistão, não teríamos nenhuma forma de nos proteger da praga Wuhan?

De forma alguma, Sr. Bovino Gadoso. Basta nos lembrarmos que toda interação social capaz de espalhar o vírus deve necessariamente acontecer em alguma propriedade. Uma sociedade anarcocapitalista é uma sociedade onde todas as propriedades, incluindo ruas, praças e estradas, sem exceção, são privadas. O dono de uma propriedade tem o direito de aceitar ou excluir qualquer pessoa dela, seja lá por que razão. Isso inclui pessoas infectadas ou que não tenham recebido uma vacina especifica ou, ainda, que se recusem a adotar medidas de proteção que o proprietário julgue apropriadas. Além disso, resoluções privadas de conflito seriam mais eficientes em solucionar situações como o direito de passagem, por exemplo, quando uma pessoa infectada precisa atravessar uma propriedade privada de outrem. Os envolvidos poderiam negociar entre si as condições que considerem adequadas. Mesmo que determinadas soluções nem sempre consigam satisfazer completamente ambas partes envolvidas, ainda sim seriam mais eficientes e em conformidade com a ética da propriedade privada, ao contrário de uma proibição genérica e universal de locomoção imposta por um estado.

Tais restrições, de forma alguma, infringem o PNA, posto que ninguém tem o direito de dispor da propriedade alheia de forma contrária à vontade de seu proprietário. A transmissão do vírus por meio de interações sociais só se torna um problema quando se presume a existência de propriedades públicas, nas quais cidadãos privados não possuem o direito de permitir ou vetar a entrada de outras pessoas nos seus próprios termos.

A própria ideia de que não disseminar o vírus seja algo moral é questionável. Pode-se argumentar que atrasar a disseminação do vírus também atrasará atingir a chamada “imunidade de rebanho”, a qual, independente do caminho que se escolha, é somente nesse estágio que uma doença infecciosa é considerada controlada.

Reis do gado impuseram o caminho de “achatamento da curva” com uma disseminação lenta da doença. Mas se poderia ter adotado o caminho de uma disseminação rápida e aguda. A única razão para se ter escolhido um caminho em vez do outro foi o desejo do ditador de cada região e o fracasso de seus sistemas de saúde públicos. Notemos, porém, que só no primeiro caso, “achatamento da curva”, é que pode haver uma responsabilização moral em se infectar os outros. Na segunda opção é exatamente o contrário, deve-se contaminar o maior número de pessoas o mais rápido possível.

Outra questão ética que não pode ser deixada de lado é sobre quem recai a responsabilidade da proteção da propriedade privada. Sob a perspectiva libertária, a resposta é óbvia: a proteção da propriedade privada cabe aos seus donos. Seria imoral exigir que os custos de proteção das minhas propriedades recaísse sobre terceiros. Porém, as medidas adotadas para combater a praga de Wuhan e o “clima mental” promovido pela propaganda oficial é justamente esse, de impor a terceiros os custos dos meus riscos.

Imaginemos o seguinte cenário. Um sujeito com uma bizarra moléstia que faz com ele tenha uma altíssima sensibilidade auditiva em relação à voz humana. Qualquer conversa, mesmo sussurros, lhe causa imensas dores. Seria extremamente desproporcional exigir do resto do mundo que ninguém nunca mais se comunique oralmente, porque alguém na sociedade possui uma sensibilidade peculiar a algo que, para o resto, é completamente natural. Ao contrário, a responsabilidade de encontrar um tratamento ou proteção auditiva deve ser do sujeito portador dessa condição. Dificilmente encontraríamos alguém que discorde disso.

Esse exemplo, por mais absurdo que seja, é exatamente o que está sendo feito. É possível defender de maneira bastante sólida que o fator em que deveríamos nos concentrar para minimizar a manifestação da doença, isto é, os casos que exigem hospitalização e tratamento, é a fragilidade de determinados indivíduos e não a infecciosidade dos possíveis portadores.

Esses casos envolvem, na sua maioria, idosos e pessoas com debilidades preexistentes que possuem risco de complicações. Portanto, poderíamos dizer que a responsabilidade de minimizar o contato com as demais pessoas deveria recair sobre indivíduos que pertençam a esse grupo, os quais devem decidir individualmente os riscos que estão dispostos a correr, mas nunca o contrário, isto é, exigir que o restante da sociedade interrompa sua vida social para protegê-los. Assim como no exemplo acima, os custos do risco de indivíduos específicos está sendo repassado para terceiros, o que de um ponto de vista libertário é claramente imoral.

Esse argumento se torna ainda mais forte quando lembramos que parte dos mais suscetíveis a internações são pessoas que possuem hábitos pouco saudáveis. Fumantes e obesos entre eles. Ninguém deveria ser trancado em suas casas para proteger outros de arcarem com as consequências do estilo de vida que escolheram para si.

O caminho para o inferno é pavimentado de boas intenções. Um dos maiores problemas causados pelo estado não é a perversão moral consciente, mas sim transformar todos em lacaios do estado, acreditando que moralidade é equivalente à obediência cega a autoridades.

Em momentos de crise, liberdades individuais são a nossa maior proteção. Não são lockdowns o que precisamos. O que precisamos são milhões de pessoas, famílias, empresas, condomínios, associações, todos agindo livremente em busca de soluções individuais, fazendo o que julgam ser melhor para si mesmos, por meio de tentativa e erro. A liberdade e o debate de ideias atuam como mecanismos para descobrirmos os melhores caminhos para lidar com novos problemas.

Libertários não devem jamais se preocupar com a questão do que é melhor ou pior, ou o que traz mais benefícios ou reduz custos de forma mais eficiente. Em vez disso, o cerne da preocupação libertária deve ser quem decide o que é melhor ou o que é pior, ou quem decide que custo ou benefício deve ser aceitável. E essa é a diferença que torna o libertarianismo único. Quem acusa a ideia de uma sociedade sem estado de ingenuidade ou utopia deseja apenas impor seus valores aos demais e nos forçar a arcar com os custos de realizar o seu próprio desejo, como o desejo de se sentir moralmente superior nos mantendo aprisionados em nossas próprias casas.

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