Moeda, Crédito Bancário e Ciclos Econômicos

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Prefácio à Quarta Edição Espanhola.

            É com prazer que apresento aos leitores de língua espanhola a quarta edição de Moeda, Crédito Bancário e Ciclos Econômicos, especialmente necessária no momento atual em que se desencadeia, com toda a virulência, a grave crise financeira e consequente recessão econômica mundial que já vínhamos anunciando há dez anos, quando publicamos a primeira edição do presente livro.

 

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A Política de expansão artificial do crédito consentida e orquestrada pelos bancos centrais ao longo dos últimos quinze anos não poderia acabar de outra maneira.  O ciclo expansivo que agora vimos terminar foi reforçado a partir do momento em que a economia norte-americana saíra de sua última recessão (rápida e reprimida) em 2001 e o Federal Reserve mais uma vez empreendera uma grande expansão de crédito artificial e de investimento, iniciada em 1992.  Esta expansão de crédito não estava sustentada em um aumento paralelo da poupança voluntária das economias domésticas.  Durante vários anos, o volume monetário em forma de cédulas e depósitos cresceu em um ritmo médio superior a 10% por ano (o que equivaleria a duplicar a cada período de sete anos o volume total de moeda em circulação no mundo).  Esta grave inflação fiduciária dos meios de pagamento foi introduzida no mercado pelo sistema bancário em forma de novos créditos com taxas de juros muito reduzidas (até mesmo negativas, em termos reais), o que impulsionou uma bolha especulativa na forma de uma significativa subida de preços dos bens de capital, dos ativos imobiliários e dos títulos que os representavam, intercambiáveis na bolsa de valores, cujos índices cresceram de modo espetacular.

De forma curiosa e semelhante ao que ocorreu nos “felizes” anos anteriores à Grande Depressão de 1929, o choque de crescimento monetário não atingiu de forma significativa os preços do subconjunto dos bens e serviços de consumo (cerca de somente um terço do total dos bens).  E na última década, similarmente aos anos 1920, foi experimentado um notável aumento de produtividade, resultado da introdução maciça de novas tecnologias e importantes inovações empresariais que, na ausência de uma injeção monetária e creditícia, haviam produzido uma redução saudável e contínua no preço unitário dos bens e serviços de consumo.  Ademais, a incorporação plena das economias da China e da Índia ao mercado globalizado impulsionou ainda mais a produtividade real de bens e serviços de consumo.  Não haver se produzido uma deflação saudável dos preços nos bens de consumo em uma etapa de tamanho crescimento de produtividade como o ocorrido nos últimos anos é a principal prova de que o processo econômico foi muito perturbado pelo choque monetário, fenômeno que analisaremos com detalhes, como indica o subtítulo 9 do capítulo 6 [A Política de Estabilização do Nível Geral dos Preços e os Efeitos de Desestabilização sobre o Sistema Econômico].

Como explicamos no presente livro, a expansão artificial do crédito e a inflação dos meios de pagamento (fiduciária) não constitui um atalho para que haja um desenvolvimento econômico estável e sustentado, sem necessidade de sacrifício e disciplina, pressupostos de uma taxa elevada de poupança voluntária (que, ao contrário, sobretudo nos Estados Unidos, durante os últimos anos não só não cresceu como houve até ocasiões em que experimentaram taxas negativas).  É isso o que sempre são as expansões artificiais de crédito e de moeda: comer muito pão hoje e ter fome amanhã.  Na realidade, hoje não há dúvida alguma a respeito do caráter recessivo que, a longo prazo, sempre tem o choque monetário: o crédito novo (não previamente poupado pelos cidadãos) coloca à disposição dos empresários, imediatamente, uma capacidade aquisitiva que gastam em projetos de investimentos desproporcionalmente ambiciosos (durante os últimos anos especialmente no setor da construção civil e dos lançamentos imobiliários), como se a poupança dos cidadãos houvesse aumentado, quando, de fato, tal coisa não ocorreu.  Assim, é criada uma descoordenação generalizada no sistema econômico: a bolha financeira (“exuberância irracional”) afeta negativamente a economia real e, cedo ou tarde, o processo se reverte em forma de recessão econômica, dando início ao doloroso e necessário reajuste que sempre exige a readaptação de toda a estrutura produtiva real distorcida pela inflação.  São vários os verdadeiros gatilhos que prognosticam o ritmo da euforia característica da “embriaguez” monetária e da “ressaca” recessiva que podem mudar de um ciclo para o outro.  Nas atuais circunstâncias os gatilhos mais visíveis foram a elevação do preço das matérias primas e, especialmente, o do petróleo; a crise das ditas hipotecas subprime nos Estados Unidos e, por fim; a crise de importantes instituições bancárias com a descoberta, no mercado, de que o valor de seus ativos (empréstimos hipotecários concedidos) era inferior aos passivos.

Atualmente são muitas as vozes interessadas que reclamam futuras reduções nas taxas de juros e novas injeções monetárias que permitam aos investimentos terminarem sem perdas.  Sem dúvida, tal saída só postergaria temporariamente os problemas e os tornariam, em breve, muito mais graves.  Na verdade, a crise chegou porque os privilégios das empresas de bens de capital (especialmente no setor da construção civil e dos lançamentos imobiliários) desapareceram como resultado dos erros empresariais induzidos pelo crédito barato e porque os preços dos bens de consumo começaram a se comportar relativamente melhor que os bens de capital.  A partir deste momento se inicia um doloroso e invevitável reajuste que, além dos problemas de queda da produção e aumento do desemprego, é somado o crescimento dos preços e dos bens de consumo (recessão inflacionária ou “estagflação”).

A análise econômica mais rigorosa e a interpretação mais imparcial e ponderada dos últimos acontecimentos econômicos e financeiros reforçam a conclusão de que, tal como aconteceu com as tentativas fracassadas de planificar, a partir dos superiores, a extinta economia soviética, é impossível que os bancos centrais (verdadeiros órgãos de planificação financeira central) sejam capazes de acertar qual política monetária é a mais conveniente para cada momento.  Dito de outro modo, o teorema da impossibilidade econômica do socialismo, descoberto pelos economistas austríacos Ludwig von Mises e Friedrich A. von Hayek, segundo o qual é impossível organizar economicamente a sociedade com base em ordens coercitivas emanadas de um órgão de planificação, visto que este nunca chega a ter a informação de que necessita para dar um conteúdo coordenador as próprias ordens.  Isto é plenamente aplicável aos bancos centrais em geral e ao Federal Reserve em particular, na época a Alan Greenspan e, hoje, particularmente a Ben Bernanke: não há nada mais perigoso do que cair na “arrogância fatal”, na feliz expressão de Hayek, de acreditar na própria onisciência, ou ao menos, crer ser tão sábio e poderoso que julga ser capaz de ajustar, em cada momento, a política monetária mais conveniente (fine tuning).  Portanto, o mais provável é que o Federal Reserve e, em menor medida, o Banco Central Europeu, mais do que suavizar os movimentos mais agudos do ciclo econômico, tenham sido os principais artíficies responsáveis pela sua criação e agravamento.  Portanto, a ideia de separação para Ben Bernanke e o conselho do Federal Reserve, bem como para os demais bancos centrais (encabeçados pelo europeu) não é nada cômoda.  Há anos têm negligenciado a responsabilidade monetária e agora encontram-se num beco sem saída: ou deixam começar desde já o processo recessivo, com o saudável e doloroso reajuste, ou seguem adiante “dando ao bêbado, que já sente a agressividade da ressaca, mais álcool”, aumentando assim, exponencialmente, a possibilidade de, num futuro distante, recairmos em uma recessão inflacionária ainda mais grave (este foi exatamente o erro por detrás do crash da bolsa de valores de 1987, que nos levou a uma inflação no final dos anos 1980 e terminou na grave recessão dos anos 1990-1992).  Além disso, reiniciar, nesta altura dos acontecimentos, uma política de crédito barato só poderá dificultar a necessária liquidação dos investimentos não rentáveis e a conversão das empresas, podendo até chegar a fazer com que a recessão se prolongue indefinidamente, como ocorreu na economia japonesa nos últimos anos, que depois de experimentar todas as intervenções possíveis, deixou de responder a qualquer estímulo de expansão de crédito monetarista ou keynesiana.  Neste contexto de “esquizofrenia financeira”, temos de interpretar os últimos “tiros no escuro” das autoridades monetárias (responsáveis por dois objetivos intimamente contraditórios: por um lado, controlar a inflação, e por outro, injetar toda a liquidez necessária para evitar o desmoronamento do sistema financeiro).  Assim, um dia o Federal Reserve salva a Bear Stearns (e depois a AIG, Fannie Mae e Freddie Mac ou o Citigroup), para no dia seguinte deixar falir a Lehman Brothers, sob o pretexto mais do que justificado de “dar uma lição” e não alimentar o moral hazard (risco moral).  Depois, diante do rumo dos acontecimentos, foi aprovado um plano de 700 bilhões de dólares para comprar os eufemisticamente denominados ativos “tóxicos” ou “líquidos” (ou seja, sem valor) do sistema bancário, que se financiado com a carga tributária (e não causando mais inflação) assumirá uma grande carga impositiva para as economias domésticas, justo no momento em estas menos podem se permitir tal medida.  Por último, e diante das dúvidas que o dito plano pudesse surtir algum efeito, se optou por injetar dinheiro público diretamente nos bancos, mesmo para “garantir” a totalidade dos depósitos reduzindo quase a zero as taxas de juros.

Comparativamente, a situação das economias da União Europeia é um tanto melhor que a dos Estados Unidos (excetuando o efeito expansivo da política deliberada de depreciação do dólar e a rigidez europeia relativamente maior, em especial no mercado de trabalho, que tende a prolongar e tornar as recessões no continente europeu mais dolorosas).  A política expansionista do Banco Central Europeu, embora não esteja isenta de erros graves, foi menos irresponsável que a do Federal Reserve.  Além disso, o cumprimento dos critérios de convergência, na época, supôs um notável e saudável saneamento das principais economias europeias.  Somente os países periféricos como a Irlanda e, sobretudo, a Espanha, se viram imersos desde o início do processo de convergência em uma importante expansão creditícia.  O caso espanhol é paradigmático.  A economia espanhola experimentou um boom econômico que, em parte, se deveu a causas reais (reformas estruturais liberalizantes empreendidas a partir do governo de José Maria Aznar em 1996); porém, noutra parte nada insignificante, se viu alimentada por uma expansão artificial de moeda e crédito, que cresceram a uma proporção que quase triplicou a evolução das mesmas magnitudes na França ou na Alemanha.  Os agentes econômicos espanhóis interpretaram, em grande parte, a baixa das taxas de juros, resultado do processo de convergência, em termos de relaxamento monetário, tradicionais no país: maior disponibilidade de dinheiro fácil e maciços pedidos de crédito aos bancos espanhóis (sobretudo para financiar a especulação imobiliária), que os criaram do nada, sob o olhar impávido do Banco Central Europeu.  Este último, diante da subida dos preços e fiel a seu mandato, conforme a possibilidade, tem tentado manter as taxas de juros, apesar das dificuldades daqueles membros da União Monetária que, como a Espanha, agora descobrem que grande parte dos investimentos em imóveis foi um erro e se veem condenados a uma duradoura e dolorosa reestruturação das próprias economias reais.

Nestas circusntâncias, a política mais adequada seria liberar a economia em todos os níveis (e especialmente o mercado de trabalho) para permitir que os fatores produtivos (no caso, o fator trabalho) sejam rapidamente realocados nos setores rentáveis.  Do mesmo modo é imprescindível a redução do gasto público e dos impostos, de modo a aumentar a renda disponível dos agentes econômicos fortemente endividados que necessitam devolver, quanto antes, seus empréstimos.  É essencial um mercado de trabalho bastante flexível e um setor público muito mais austero.  Dependerá do mercado descobrir, o quanto antes, quais são os verdadeiros valores reais dos bens de investimento produzidos por erro, estabelecendo assim as bases para uma recuperação econômica sã e sustentável num futuro que, para o bem de todos, esperamos que não demore muito a chegar.

 

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Não devemos esquecer que o período de expansão artificial passado se caracterizou, entre outros aspectos, por uma corrupção gradual, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, dos princípios tradicionais da contabilidade e do modo como a mesma vinha sendo aplicada há séculos em todo o mundo.  Concretamente, a aprovação das ditas Normas Internacionais de Contabilidade (NIC) e de sua transposição em lei nos diferentes países (na Espanha por meio do Novo Plano Geral de Contabilidade que entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 2008) e levou ao abandono do tradicional princípio de prudência, substituído pelo valor de mercado ou valor razoável (fair value) no momento de valorar os ativos do balanço, especialmente aqueles de caráter financeiro.  Este abandono do princípio tradicional de prudência exerceu grande pressão tanto nas empresas com ações nas bolsas de valores, como nos hoje já extintos bancos de investimento e, em geral, em todas das partes interessadas em “inflar” os valores do balanço com a finalidade de aproximá-los aos valores de cotação na bolsa de valores, supostamente mais “objetivos” e que no passado não deixavam de crescer no processo econômico de euforia financeira.  Efetivamente, o dito processo se caracterizou, durante os anos da “bolha especulativa” pela retroalimentação existente entre os crescentes valores cotados na bolsa e o imediato reflexo contábil, que, por sua vez, desejavam utilizar para justificar crescimentos artificiais posteriores nos preços dos ativos financeiros cotados em bolsa.

Na corrida ensandecida para abandonar os princípios tradicionais da contabilidade e substituí-los por outros “mais de acordo com os novos tempos”, tornou-se moeda comum a valoração de empresas em função de hipóteses pouco ortodoxas e dos critérios puramente subjetivos que as novas regras substituem ao único critério verdadeiramente objetivo (o da transação histórica).  Agora, o desmoronamento dos mercados financeiros e a perda generalizada de confiança, por parte dos agentes econômicos, nos bancos e em sua contabilidade vieram a revelar o grave erro cometido ao deixar se levar pelas NIC e o abandono dos princípios contábeis tradicionais baseados na prudência, caindo nos vícios da contabilidade criativa de valores “razoáveis” de mercado (fair value).

Neste contexto devemos entender as recentes medidas tomadas tanto nos Estados Unidos como na União Europeia para “suavizar” (a saber, reverter parcialmente) a aplicação do valor razoável na contabilidade das entidades financeiras.  Medida na direção correta, mas incompleta e realizada por razões equivocadas.  Na verdade, as entidades financeiras “só se lembraram de Santa Bárbara ao trovejar”, quer dizer, quando o desmoronamento do valor dos ativos “tóxicos” ou “líquidos” haviam ameaçado a solvência.  Mas, estavam encantadas com as novas NIC, que as permitiram ostentar nos próprios balanços e patrimônio um valor elevadíssimo nos anos anteriores de “exuberância irracional” por conta dos crescentes e disparatados valores financeiros e das bolsas de valores, que, por sua vez, as animaram a assumir riscos (ou melhor, incertezas) praticamente sem controle.  Torna-se evidente, portanto, como as NIC atuam de forma pró-cíclica, incrementando a volatilidade e desviando erroneamente a gestão empresarial: em períodos de bonança geram um falso “efeito riqueza” que induz a assumir riscos desproporcionais e, quando do dia para a noite aparecem os erros cometidos, a perda de valor dos ativos descapitaliza imediatamente as empresas que se veem obrigadas a vender ativos e tratar de se recapitalizar no pior momento, a saber, quando os ativos valem menos e quando os mercados financeiros se debilitam.  Obviamente, princípios contábeis que, como as NIC, se mostraram tão perturbadores deveriam ser abandonados o quanto antes, revertendo todas as reformas contábeis recém-promulgadas, concretamente a reforma espanhola que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2008.  E não só pelo beco sem saída que as mesmas afirmam em tempos de crise financeira e recessão econômica, como também e sobretudo, porque é vital que em tempos de bonança não se abandone o princípio de prudência valorativa que orientou todo o sistema contábeis desde Luca Pacioli, no início do século XV até que o falso ídolo das NIC adquiriu a nacionalidade.

Em suma, o erro mais grave da recém-iniciada reforma contábil em todo o mundo consiste em ter feito tábula rasa dos séculos de experiência contábil e de gestão empresarial ao substituir o princípio da prudência, de princípio máximo de classificação hierárquica dentre todos os princípios tradicionais da contabilidade, pelo princípio chamado de “valor razoável”, que não é outro senão a introdução da volatilidade no mercado para toda uma série de ativos, especialmente os de natureza financeira.  Tal mudança copernicana é extremamente prejudicial e ameaça as próprias fundações da economia de mercado pelos seguintes motivos.  Em primeiro lugar, violar o princípio tradicional de prudência e obrigar a contabilização de valores de mercado, dá ensejo a que, segundo as circunstâncias do ciclo econômico, os valores do balanço sejam inflados com uma mais-valia que não existe e que, em muitas circusntâncias pode ser que não cheguem nunca a se existir.  O artificial “efeito riqueza” que isso pode gerar, em especial nas etapas de auge de cada ciclo econômico, induzem à distribuição de benefícios fictícios ou meramente conjunturais, a tomada de riscos desproporcionais e, em suma, o cometimento dos erros empresariais sistemáticos e do consumo do capital da sociedade em detrimento de uma estrutura produtiva saudável e da capacidade de crescimento no longo prazo.  Em segundo lugar, devo insistir que o objetivo da contabilidade não é coletar os supostos valores “reais” (em todo caso subjetivos, só determináveis objetivamente e diariamente variáveis nos respectivos mercados) sob o pretexto de chegar a uma mal interpretada “transparência contábil”, senão tornar possível a gestão prudente de cada empresa e evitar o consumo de capital[1], mediante a aplicação de critérios estritos de conservadorismo contábil (baseados no princípio da prudência e a contabilização ao custo histórico ou valor de mercado, aquele que for menor) que garantam a qualquer momento que o benefício repartido provem de um remanescente seguro cuja distribuição, de forma alguma, ponha em risco a viabilidade e capitalização futura da empresa.  Em terceiro lugar, devemos ter em conta que no mercado não existem preços de equilíbrio que possam ser determinados de forma objetiva por um terceiro.  É o contrário, os valores de mercado são apreciações subjetivas e estão submetidos a grandes oscilações, pelo que sua aplicação aos efeitos contábeis elimina grande parte da clareza, segurança e informação que os balanços tinham antigamente.  Agora tornaram-se, em grande parte, incompreensíveis e inúteis para os agentes econômicos.  Ademais, a volatilidade característica dos valores de mercado, sobretudo a do grande ciclo econômico, faz com que a contabilidade baseada nos “novos princípios” perca grande parte da virtualidade como guia de ação para os gestores da empresa, induzindo-os sistematicamente a importantes erros de gestão que culminaram na geração da maior crise financeira que assolou o mundo desde 1929.

 

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No capítulo 9 deste livro [Uma Proposta de Reforma do Sistema Bancário.  A Teoria do Coeficiente de Caixa de 100%] é esboçado um processo de transição para essa única ordem financeira mundial que, ao ser compatível com o sistema de livre mercado, é capaz de eliminar as crises financeiras e recessões econômicas que vêm afetando ciclicamente as economias do mundo.  Esta reforma financeira internacional proposta em nosso livro adquire a máxima atualidade na época atual (novembro de 2008) em que os governos europeus e norte-americanos, desconcertados, organizaram uma conferência mundial para reformar o sistema monetário internacional com o objetivo de evitar, no futuro, a repetição de crises financeiras e bancárias tão graves como as que neste momento sacodem o mundo ocidental.  Pelas razões detalhadamente explicadas ao longo dos nove capítulos deste livro, toda reforma futura fracassará, tão lamentavelmente quanto fracassaram as reformas passadas, caso não esteja orientada para solucionar a própria raiz dos atuais problemas com base nos seguintes princípios: 1) reestabelecimento de um coeficiente de caixa de 100% para todos os depósitos bancários à vista e equivalentes; 2) Eliminação dos bancos centrais como prestamistas de última instância (desnecessários caso se aplique o princípio anterior e prejudiciais, se continuarem atuando como órgãos de planificação financeira central); 3) privatização da atual moeda monopolista e estatal de tipo fiduciário e sua substituição pelo padrão-ouro clássico.  Esta reforma radical e definitiva, assumira, como disséramos, o ponto máximo com a queda do muro de Berlim e do socialismo real ocorrido em 1989, ao serem aplicados os mesmos princípios baseados na liberalização e na propriedade privada ao único âmbito, o financeiro e o bancário, que até agora permaneceram acorados na planificação (dos bancos que exatamente por isso são chamados de “centrais”), o intervencionismo extremo (fixação de taxas de juros, emaranhado de regulamentações administrativas) e o monopólio estatal (leis cogentes que obrigam a aceitar a atual moeda fiduciária emitida pelo estado), com consequências tão negativas como aquelas conhecidas por todos.

Devemos ressaltar, além disso, que o processo de transição planejado no último capítulo deste livro inicialmente também podia tornar possível o “salvamento” (bailing out) do atual sistema bancário evitando seu rápido desmoronamento, com a ineludível e súbita contração monetária que se produziria caso, num contexto de quebra generalizada da confiança dos depositantes, desaparecesse um volume significativo de depósitos bancários.  Este objetivo a curto prazo, que atualmente os governos ocidentais se esforçam para alcançar desesperadamente com os planos mais variados (compras em massa de ativos bancários “tóxicos”, garantia ad hominen de todos os depósitos ou simplesmente a nacionalização parcial ou total do sistema bancário privado), poderia acontecer de maneira muito mais efetiva, rápida e inócua para a economia de mercado caso fosse primeiramente aplicado o primeiro passo da reforma que propusemos neste livro: a consolidação da totalidade dos atuais depósitos (à vista e equivalentes) dos bancos pelo equivalente efetivo que lhes seria entregue, para que, a partir daí, mantivessem um coeficiente de caixa de 100% com relação aos mesmos.  Como é explicado no gráfico IX-2 do referido capítulo, é descrita como ficaria o balanço agregado do sistema bancário a partir da consolidação, que não seria de modo algum inflacionária (pois a moeda recém-criada ficaria como se fosse “estéril” para responder colateralmente a qualquer retirada súbita de depósitos), além disso liberaria todos os ativos do sistema bancário (“tóxicos” ou não) que atualmente se sobressaem como colaterais dos depósitos à vista (e equivalentes) nos balanços dos bancos privados.  No capítulo 9 é proposto, na suposição de que a transição para o novo sistema financeiro se efetue em circunstâncias “normais” não afligidas por uma crise financeira tão grave como a atual em que os ativos “liberados” passassem a formar parte de uns fundos de investimento criados ad hoc e geridos pelo sistema bancário para trocar suas participações por títulos da dívida pública e das demais obrigações implícitas derivadas do sistema público de previdência social.  Contudo, no atual momento de grave crise financeira e econômica, se abre a alternativa não só de cancelar os ditos fundos de ativos “tóxicos”, como além disso, de dedicar uma parte do restante, caso se deseje, para que os poupadores (não os depositantes, pois estes já teriam consolidado seus depósitos a 100%) pudessem recuperar grande parte do valor perdido nos investimentos (especialmente pelos empréstimos aos bancos comerciais, bancos de investimentos e sociedades gestoras de fundos de participação).  Com tais medidas imediatamente se reestabeleceria a confiança, deixando um significativo remanescente para fazer frente ao objetivo inicial de trocar, de uma só vez e sem custos, grande parte do volume da dívida pública emitida pelos governos.  Em todo caso é fazer uma advertência importante: como é natural, e não cansamos de repetir, a solução proposta só é válida no contexto de uma decisão irrevogável para o reestabelecimento de um sistema bancário livre submetido ao coeficiente de caixa de 100% para os depósitos à vista.  Visto que a ocorrência de qualquer das reformas indicadas sem o pleno convencimento e decisões prévias de modificação do sistema financeiro e bancário internacional da maneira indicada seria simplesmente desastrosa: um sistema bancário privado que continuará atuando com reserva fracionária (orquestrada pelos correspondentes bancos centrais) geraria, de forma multiplicadora e a partir do efetivo criado para respaldar os depósitos, uma expansão inflacionária como jamais se viu na história e que acabaria por dar o golpe de misericórdia em todo o sistema econômico.

 

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As considerações anteriores são de máxima importância e evidenciam a grande atualidade que o presente tratado adquiriu devido a situação crítica em que se encontra o sistema financeiro internacional (embora preferisse escrever o prólogo para esta edição em circunstâncias econômicas bem diferentes).  Pois bem, se é trágico que tenhamos chegado à situação atual, mais trágica ainda é, se possível, a falta de compreensão generalizada sobre as causas dos fenômenos que nos assolam e, sobretudo, a confusão e o desconcerto que reina entre os especialistas, analistas e na maior parte dos teóricos da economia.  Neste contexto, ao menos tenho esperanças de que as sucessivas edições do presente livro, lançado em todo o mundo[2], possam contribuir para a formação teórica dos leitores, ao rearmar intelectualmente as novas gerações e, de modo ocasional, ao tão necessário redesenho institucional de todo o sistema monetário e financeiro das atuais economias de mercado.  Se assim for, não só me darei por satisfeito pelo esforço empreendido como também considerarei uma grande honra haver contribuído, ainda que minimamente, para avançar na direção correta.

 

Jesús Huerta de Soto

Festa de São Diego de Alcalá

Madri 13 de novembro de 2008

 



[1] Ver em especial F.A. Hayek, “the Maintenance of Capital”, Economica, II (agosto 1934), reeditado emProfits, Interests and Investment and Other Essays on the Theory of Industrial Fluctuations, Augustus M. Kelley, New Jersey, 1979, (1ª edição publicada por George Routledge & Sons, London, 1939), especialmente o título “Capital Accounting and Monetary Policy”, p. 130-32.

[2] No período transcorrido entre a última edição e esta, a primeira edição inglesa de quase 4.000 exemplares publicada nos Estados Unidos em 2006 se esgotou, imprimindo-se uma segunda edição em 2009.  Além disso, foi publicada uma tradução russa com o título Dengi, bankovskiy kredit i economicheskie tsikly (ed. Sotsium, Moscou, 2008), feita por Tatjana Danilova e Grigory Sapov, numa tiragem de 3.000 exemplares e que tive o prazer de apresentar no dia 30 de outubro de 2008 na Alta Escola de Economia da Universidade Estatal de Moscou.  Igualmente, a professora Rosine Létinier fez a tradução francesa que está sendo produzida.  Também foi terminada a tradução feita por Grzegorz Luczkiewicz e estão em estágios avançados as traduções alemã, tcheca, italiana, romena, holandesa, chinesa, japonesa e árabe que espero, com a graça de Deus, venham à luz num futuro muito próximo.

 

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