O Comunismo

0
Tempo estimado de leitura: 8 minutos

27 de junho de 1847

 

Os preconceitos econômicos não são o maior obstáculo à liberdade comercial. Entre homens de opiniões divergentes acerca da economia política, a discussão é possível e a verdade sempre acaba encerrando a discussão.

Mas existem sistemas que são estranhos a todas as visões, e entre eles e a ciência não há terreno comum capaz de servir de ponto de partida para o debate.

Um desses sistemas é o comunismo; um sistema que não permite a propriedade; um que carrega consigo a crença de que a sociedade é um arranjo artificial imaginado e imposto pelo Legislador, Fundador dos Estados, Pai das nações.

Nesse sistema, a observação dos fatos e a experiência do passado não têm valor. O brilhante legislador se tranca em seu gabinete, fecha as cortinas e dá liberdade à sua imaginação.

Ele começa por assumir que todos os homens, sem exceção, se apressarão a se submeter ao planejamento social que sairá da cabeça dele. E que, portanto, nada o deterá.

Vivemos numa época em que o número de utopias é igual ao número de inventores. Tot Capita, Tot Sensus – para cada cabeça, uma sentença. E mais ainda, vê-se que todas elas disputam entre si.

Porém, esses inventores possuem um ponto em comum: como assumem a adoção universal, também buscam atingir a perfeição ideal.

Eles prometem a todos os homens, sem distinção, uma quantidade igual de riquezas, felicidade e até mesmo de poder e de saúde.

É natural, portanto, que os homens que se embriagaram dessas ilusões protestem contrarreformas parciais e sucessivas, buscando usar dessa política social para se livrarem de seus próprios erros e consequências.

No fim, ninguém poderá impedi-los de deixar a responsabilidade sobre as consequências de suas ações nas mãos das gerações futuras.

Nossa época é fértil em utopias desse gênero: indiferentes ao futuro. Toda manhã aparece mais uma; toda noite se vai mais uma. Graças a Deus são muito irrealistas para serem de fato perigosas. O único erro delas é o de, em suas projeções, ignorarem a lógica e os fatos.

Porém, entre as utopias idealizadas por esses arquitetos sociais, há aquela que, por sua sutil e imperceptível simplicidade, ameaça toda a existência da ordem social: essa utopia é o comunismo.

Os adeptos desse ideal veem os homens que não têm o necessário e dizem: “Se dividíssemos todas essas riquezas em comum, todos seriam felizes.” Simples e sedutor, principalmente entre aqueles que têm de escolher entre mendigar para comer ou pensar em soluções eficazes para a própria fome. Mas será que as consequências desse ideal também seguem essa mesma simplicidade?

Minha intenção aqui não é de refutar esse sistema, de mostrar que ele tiraria do homem a vontade de trabalhar e, em consequência, todo o seu bem-estar e progresso. Mas acredito que devo mencionar a refutação que foi feita, no último número do Ateliê, por homens que pertenciam à classe trabalhadora.[1]

É reconfortante ver que os sistemas subversivos estão sendo empurrados para trás e destruídos pelos argumentos lógicos de homens que o destino colocou em circunstâncias em que lhes seria muito mais favorável apoiar tais subversões.

Isso prova não apenas a sinceridade deles, mas também que a inteligência, quando exercida, nunca perde o nobre privilégio de lutar pela verdade. Para muitos, o comunismo não é apenas uma doutrina, mas é também e sobretudo uma forma de agitar e barbarizar as classes sofredoras.

Ao ler o artigo ao qual faço menção, não poderia deixar de lembrar de ter ouvido um democrata fervoroso, pertencente ao que chamamos de alta classe, dizer:

 

“Eu não acredito no comunismo, mas eu o prego porque é a alavanca que vai levantar as massas.”

 

Que contraste!

Uma coisa que me surpreende nos editores do Ateliê é vê-los se distanciar cada vez mais da doutrina da liberdade comercial.

Eles rejeitam o comunismo e, portanto, reconhecem a propriedade e a liberdade de apropriação, que constitui ela mesma a própria propriedade. Isso significa não somente poder ter aquilo que se possui, mas também pode trocar aquilo que se possui.

O Ateliê afirma isso da seguinte forma:

 

“Temos certeza de que na natureza da liberdade estão o desejo de posse individual e o de competição. É absolutamente impossível abrir mãos dessas duas características sem sacrificar a própria essência da liberdade.”

 

E o Ateliê também acrescenta:

 

“Mas é possível restringir os direitos de propriedade? Existe alguma instituição que poderia privá-las dos poderes abusivos que ela atualmente possui? Acreditamos nisso e temos certeza dessa possibilidade, porque também estamos convencidos de que a competição pode ser disciplinada e limitada a termos que têm muito mais caráter de imitação do que de luta.”

 

Tendo tudo isso em vista, parece que o ateliê e o Livre Comércio não estão tão distantes de se entenderem, e que o que os separa são questões de aplicação, e não de princípio.

Acredito ser meu dever apresentar as seguintes reflexões a esse jornal:

Podemos abusar de tudo e até das melhores coisas, da propriedade, da liberdade, da filantropia, da caridade, da religião, da imprensa e da palavra.

Acredito que o governo e o poder coletivo são estabelecidos, quase que exclusivamente, para prevenir e suprimir os abusos.

Dizemos quase que exclusivamente porque essa é sua tarefa principal, e ele a cumpriria ainda melhor, sem dúvida, porque se livraria de uma série de outras atribuições que poderiam ser deixadas à atividade privada.

Quando falo de propriedade e de liberdade, assim como O Ateliê, sou contra o abuso dessas coisas. E como eles, reconheço o princípio de que a força coletiva dispõe do direito e do dever de prevenir e de corrigir esse problema.

Por outro lado, O Ateliê reconhece que as medidas repressivas, e ainda mais as preventivas, são indissociáveis de despesas, tributação, certa dose de aborrecimento, inconveniência, arbitrariedade e que, no fim, o poder público não adquire certos avanços sem que ele mesmo se torne um perigo.

Em cada caso específico, portanto, há este cálculo a ser feito: as desvantagens indissociáveis das medidas preventivas e repressivas são maiores do que as desvantagens do abuso que essas medidas combatem?

Isso não tem a ver com o direito da comunidade de atuar coletivamente, é apenas uma questão de oportunidade, de conveniência, e não de princípio. Ela é resolvida pela estatística e pela experiência, e não pela teoria do direito.

Ora, acontece, e é neste ponto que chamamos a atenção do leitor, que são muitos os abusos que trazem em si, por admirável dispensa providencial, tal força de repressão e prevenção, que a prevenção e a repressão governamentais quase nada acrescentam e, portanto, manifestam-se apenas através de suas desvantagens.

Ora, acontece, e é neste ponto que chamamos a atenção do leitor, que são muitos dos possíveis abusos trazem em si, por admirável dispensa providencial, tal força de repressão e prevenção naturais, que a prevenção e a repressão governamentais quase nada acrescentam e, portanto, manifestam-se apenas através de suas desvantagens.

Veja, por exemplo, a preguiça. Certamente seria desejável que não houvessem pessoas preguiçosas no mundo. Mas se o Governo quisesse erradicar esse vício, seria forçado a penetrar nas famílias, monitorar constantemente as ações individuais e a aumentar o número de seus agentes infinitamente, abrindo a porta para a arbitrariedade inevitável, de modo que o que ela acrescentaria à atividade nacional poderia muito bem não compensar os inúmeros males que essa própria medida causaria cidadãos, inclusive a aqueles que não precisassem dessa intervenção para não serem preguiçosos.

E note que ela é dispensável porque há estimulantes no coração humano – porque existem, na cadeia de causas e efeitos, recompensas pela atividade e punições pela preguiça que agem com uma força em que a ação do poder estatal pouco acrescentaria. São esses incentivos, esse equilíbrio natural, que as escolas parecem não levar em conta. E como resultado, elas barateiam a liberdade, querendo reformar tudo por meio da interferência do governo.

Não é apenas contra os vícios que prejudicam os viciados que a natureza preparou meios de prevenção e repressão, mas também contra os vícios que afetam os inocentes que estão ao redor. Na ordem social, além da lei da responsabilidade, existe a lei da solidariedade. Os vícios desta categoria, por exemplo a má-fé, estimulam uma forte reação por parte de quem deles sofre contra os que por eles são afetados, reação que certamente tem uma virtude preventiva e repressiva, sempre proporcional ao grau de lucidez de um povo.

Isso não significa que o governo não possa ajudar também a punir esses vícios, a prevenir esses abusos. Tudo o que estamos reivindicando, e isso não nos pode ser contestado, é que essa pressão governamental deve parar e permitir que as forças naturais atuem, pois essa pressão tem, para a comunidade, mais desvantagens que vantagens.

Um dos inconvenientes da exagerada intervenção do poder é paralisar a reação das forças naturais, enfraquecendo a correção que a sociedade exerce sobre si mesma. Onde quer que os cidadãos confiem demais nas autoridades, eles acabaram não confiando o suficiente em si mesmos, e assim o motor do progresso será interrompido.[2]

Se essas ideias se aproximam daquelas que O Ateliê desenvolveu no artigo que temos em vista, não devemos nos surpreender com o tom de irritação com que ele insiste em se expressar sobre a liberdade de comércio e àquilo que chama de Escola econômica inglesa.

O jornal O Ateliê está cheio de gentilezas para com os comunistas, aqueles com quem acabou de lutar e vencer, mas mesmo com essa vitória é conosco que mantém a atitude mais hostil. É uma incoerência que não nos comprometemos a explicar, porque ele está obviamente muito mais longe do comunismo do que da liberdade de trabalho e de troca.

Esse jornal acredita que o protecionismo é mais necessário do que a liberdade para a prosperidade nacional. Nós acreditamos no contrário, e seria conveniente que as doutrinas sobre propriedade e liberdade, que ele opôs aos comunistas, colocassem a presunção do nosso lado. Se a propriedade é um direito, se a liberdade de dispor dela é a consequência, a tarefa de provar a superioridade das restrições, o ônus probandi, recai exclusivamente sobre quem a reclama: eles mesmos.

Não abandonaremos o tema do comunismo sem dirigir algumas reflexões às classes que detêm o poder legislativo de nossa constituição: a burguesia.

Comunismo é a guerra de quem não tem; a maioria, contra aqueles que têm; a minoria. Consequentemente, as ideias comunistas são sempre um perigo social para todos, especialmente para a burguesia.

Mas será que essas classes não jogam novos alimentos na chama comunista quando fazem leis parciais em seu próprio favor? O que poderia ser melhor do que essas leis para semear irritação entre as pessoas, para garantir que, em suas mentes, seus sofrimentos tenham sua causa na injustiça?

O que seria melhor do que elas para suscitar nas pessoas a ideia de que a linha entre pobres e ricos é obra de uma vontade perversa e que uma nova aristocracia, sob o nome de burguesia, se ergueu sobre as ruínas da antiga nobreza?

Não seriam essas leis que permitiriam ao povo abraçar doutrinas imaginárias, especialmente se elas se apresentassem com a marca de uma simplicidade enganosa? Não seriam elas que empurrariam a sociedade para o comunismo?

Contra o comunismo, existem apenas dois remédios: a difusão do conhecimento econômico entre as massas e a equidade perfeita das leis provenientes da burguesia.

Visto que, no estado atual das coisas, vemos os próprios trabalhadores se voltando contra o comunismo e impedindo seu progresso, quão forte seria a burguesia contra este sistema perigoso se pudesse dizer às classes trabalhadoras:

 

“Do que vocês estão reclamando? Que desfrutamos de algum bem-estar? Bem, nós o adquirimos por meio do trabalho, ordem, econômica, privação, perseverança! Deem uma olhada em nossas leis! Não encontrarão uma sequer que estipule favor algum para nós! O trabalho é tratado ali com a mesma imparcialidade do capital: ambos estão sujeitos às leis de concorrência sem restrições. Nada fizemos para dar aos nossos produtos um valor artificial e exagerado. As transações são livres. E se pudermos empregar trabalhadores estrangeiros, vocês ainda têm a opção de trocar seu salário por comida, roupa, combustível, vindo de fora, ainda que mantenhamos o nosso por uma taxa elevada.”

 

A burguesia poderia usar essa linguagem nos dias de hoje? Por acaso não vimos, há não mais de oito dias, decretarem em face de uma possível fome, que as leis que impedem a entrada de substâncias alimentares de origem animal não seriam revogadas? Por acaso não a vimos tomar tal decisão, mesmo sem admitir o debate, como se tivesse medo da luz, onde ficaria claro que isso é somente ato de egoísmo e injustiça?

A burguesia persevera assim, porque vê o povo, impaciente por tantas injustiças quiméricas, ignorar a verdadeira injustiça que lhe é feita. Por enquanto, os jornais democráticos, abandonando a sagrada causa da liberdade, conseguiram atrair suas simpatias, e então conciliá-las com restrições das quais o povo é apenas uma vítima sem saber. Mas a verdade mantém sua essência: Ela é inevitável.

O erro, porém, é essencialmente efêmero por natureza; e o dia em que as pessoas abrirão os olhos talvez não esteja longe. Para os dias que virão para nosso país, que ele veja apenas uma legislação justa![3]

 

___________________

Notas

[1]     V. tome IV, page 275, le pamphlet Propriété et Loi, et tome IV, le chapitre Propriété, Communauté.

[2]     V. Harmonies, chap. XX et XXI. (Note de l’éditeur des Œuvres Complètes.)

[3]     V. tome VI, chap. IV. (Note de l’éditeur des Œuvres complètes.)

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui