O Essencial von Mises

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Capítulo III. Mises e a economia austríaca: a teoria da moeda e do crédito

O jovem Ludwig von Mises ingressou na Universidade de Viena em 1900, doutorando-se em Direito e Economia em 1906. Logo se firmou como um dos mais brilhantes alunos do seminário, ainda em curso, de Eugen Böhm-Bawerk. Mas, imbuído da abordagem austríaca, Mises chegou à conclusão de que Böhm-Bawerk e seus predecessores não tinham avançado o suficiente: não tinham levado sua análise tão longe quanto era possível, e, em consequência, restavam ainda importantes lacunas na teoria econômica da Escola Austríaca. É o que ocorre, é claro, em toda disciplina científica: os avanços se fazem na medida em que alunos e discípulos se erguem sobre os ombros de seus grandes mestres. Com demasiada frequência, no entanto, os mestres ou se recusam a reconhecer o valor dos avanços realizados por seus sucessores, ou, simplesmente, não chegam a vê-los.

A mais importante lacuna detectada por Mises foi a análise da moeda. É verdade que os “austríacos” tinham conseguido analisar os preços relativos, tanto os dos bens de consumo como os de todos os fatores de produção. Mas, desde o tempo dos economistas clássicos, a moeda sempre ocupara um compartimento à parte, não sujeito à mesma análise aplicada ao restante do sistema econômico. Tanto os fundadores da Escola Austríaca quanto os demais neoclássicos da Europa e dos Estados Unidos, aceitavam essa separação. Assim a análise da moeda e do “nível de preço” foi ficando cada vez mais dissociada da análise do restante da economia de mercado. Colhemos agora os deploráveis frutos desta nefasta dissociação na separação que hoje se faz entre a “micro” e a “macro” economia. A “microeconomia” fundamenta-se, pelo menos a grosso modo, nas ações dos consumidores e produtores individuais; mas quando os economistas passam à análise da moeda, vemo-nos subitamente lançados no irrealismo de agregados totais: de moeda, de “níveis de preço”, de “produto nacional” e de gastos públicos. Sem uma base concreta na ação individual, a “macroeconomia” saltou de um conjunto de falácias para outro. Na época de Mises, as duas primeiras décadas do século XX, essa separação equivocada já se vinha sedimentando rapidamente na obra do norte-americano Irving Fisher, que, além de elaborar complicadas teorias sobre “níveis de preço” e “velocidades” – teorias estas sem nenhum embasamento na ação individual -, não fez qualquer esforço para integrá-las ao corpo lógico da análise “micro” neoclássica.

Ludwig von Mises se dispôs a eliminar essa dissociação e a fundamentar a economia da moeda e de seu poder de compra (erroneamente denominado “o nível de preço”) na análise austríaca do indivíduo e da economia de mercado: pretendia chegar a uma ciência econômica ampla e integrada, capaz de explicar todas as partes do sistema econômico. Mises realizou essa monumental tarefa em sua primeira grande obra: The Theory of Money and Credit (1912) (Theorie des Geldes und der Umlaufsmitel)[3] fascinante feito de perspicácia criativa, digno do próprio Böhm-Bawerk. Finalmente a ciência econômica tornava-se um todo, um corpo integrado de análise, fundado na ação individual; não mais precisaria haver qualquer dissociação entre moeda e preços relativos, entre micro e macro. A mecanicista concepção de Fisher de relações automáticas entre a quantidade de moeda e o nível de preço, de “velocidades de circulação” e “equações de troca” foi explicitamentedemolida por Mises em nome de uma aplicação integrada da teoria da utilidade marginal à oferta e à demanda da própria moeda.

Especificamente, Mises mostrou que, se o preço de qualquer outro bem é determinado por sua quantidade disponível e pela intensidade com que os consumidores o demandam com base na utilidade marginal deste bem para eles, também o “preço” ou poder de compra da unidade monetária é determinado no mercado de maneira idêntica. No caso do dinheiro, sua demanda se dá no sentido de conservar o próprio saldo em caixa – no bolso ou no banco – para gastá-lo mais cedo ou mais tarde em bens e serviços úteis. A utilidade marginal da unidade monetária – o dólar, o franco ou a onça de ouro – determina a intensidade da demanda de saldos em caixa. Por sua vez, a interação da quantidade disponível de moeda com a demanda da mesma determina o “preço” do dólar (i.e., que quantidade de outros bens ele pode comprar).

Mises, embora aceitasse a “teoria da quantidade” clássica, segundo a qual um aumento da oferta de dólares ou de onças de ouro acarretará uma queda de seu valor ou “preço” (i.e., uma elevação dos preços dos demais bens e serviços), burilou consideravelmente essa tosca abordagem e integrou-a à análise econômica geral. Entre outras coisas, mostrou que esse movimento dificilmente seria proporcional: um aumento da oferta de moeda tenderá a rebaixar seu valor, mas a intensidade e até mesmo a simples ocorrência deste efeito dependem do que acontece à utilidade marginal da moeda e, por conseguinte, dependem da demanda de dinheiro por parte da população para conservar seus saldos em caixa.

Além disso, Mises mostrou que a “quantidade de moeda” não aumenta como um todo indiferenciado: o aumento é injetado num ponto do sistema econômico e os preços só subirão à medida que o novo dinheiro se dissemina, em círculos cada vez mais amplos, pela economia. Se o governo emite novo dinheiro e o gasta, digamos, em clipes para papel, não se verifica um simples aumento do “nível de preço”, como diriam os economistas não pertencentes à Escola Austríaca. Na realidade, em primeiro lugar, aumentarão as rendas dos produtores, depois, subirão os preços dos clipes, logo em seguida os preços dos fornecedores da indústria de clipes, e assim por diante. Assim, um aumento da oferta de moeda, que altera os preços relativos, pelo menos temporariamente, pode também redundar numa alteração permanente de rendas relativas.

Mises conseguiu também demonstrar que um dos primeiros achados de Ricardo e de seus primeiros discípulos, por muito tempo esquecido, era absolutamente correto: afora os usos industrial e de consumo do ouro, um aumento da oferta de moeda não proporciona benefício social de espécie alguma, Isto porque, ao contrário do que acontece com fatores de produção como a terra, o trabalho e o capital, cujo aumento ocasionaria uma maior produção e uma elevação do padrão de vida, um aumento da oferta de moeda pode apenas reduzir seu próprio poder de compra, sem que aumente a produção. Se todos tivessem o dinheiro que possuem no bolso ou na conta bancária magicamente triplicado do dia para a noite, a sociedade nada ganharia com isso. Mises mostrou, contudo, que o grande atrativo da “inflação” (um aumento da quantidade de moeda) é precisamente que nem todos se apossam do novo dinheiro ao mesmo tempo e no mesmo grau; ao contrário, o governo, seus fornecedores favoritos e os beneficiários de seus subsídios são os primeiros a receber o novo dinheiro. Estes têm sua renda acrescida antes que muitos preços subam, ao passo que os desafortunados membros da sociedade, que recebem o novo dinheiro por último ou que, na condição de pensionistas, não o recebem de maneira alguma, saem perdendo, porque os preços dos artigos que compram sobem antes que recebam um maior rendimento. Em suma, o atrativo da inflação está em permitir que o governo e outros grupos na economia se beneficiem, silenciosa e efetivamente, às custas de grupos da população desprovidos de poder político.

A inflação – a expansão da oferta de moeda – é, conforme Mises o demonstrou, um processo de tributação e de redistribuição de riqueza. Numa economia de mercado livre em desenvolvimento, não tolhida por aumentos da oferta de moeda induzidos pelo governo, os preços tenderão geralmente a cair à medida que a oferta de bens e serviços se expande. E, na verdade, baixas de preços e de custos constituíram o traço distintivo da expansão industrial ao longo de quase todo o século XIX.

Ao aplicar a utilidade marginal à moeda, Mises teve de superar o problema que os economistas em sua maioria consideravam insolúvel: o chamado “círculo austríaco”. Os economistas compreendiam que os preços dos ovos, dos cavalos ou do pão podiam ser determinados pela utilidade marginal de cada um desses itens. No entanto, à diferença desses bens – demandados para serem consumidos -, o dinheiro é demandado e conservado em saldos de caixa para ser despendido em bens. Assim, pois, ninguém pode demandar dinheiro (e ter uma utilidade marginal para ele) a menos que o mesmo exista, determinando um preço e um poder de compra no mercado. Mas, nesse caso, como explicar satisfatoriamente o preço do dinheiro com base em sua utilidade marginal, se ele precisa ter um preço preexistente para ser demandado?

Com seu “teorema da regressão”, Mises superou o “círculo austríaco”, numa de suas mais importantes realizações teóricas: mostrou que, de maneira lógica, pode-se fazer retroceder esse componente temporal da demanda de dinheiro até aquele dia remoto em que a mercadoria-moeda não era dinheiro, sendo antes, por direito próprio, uma mercadoria útil de escambo: em suma, pode-se fazê-lo retroceder até o dia em que a mercadoria-moeda (p. ex., ouro ou prata) era demandada exclusivamente por suas qualidades enquanto mercadoria consumível e diretamente utilizável. Mas Mises não apenas completou assim a explicação lógica do preço ou do poder de compra do dinheiro. Sua descoberta teve outras importantes implicações: mostrou que a moeda só poderia ter uma forma de origem: no mercado livre e a partir da demanda direta, nesse mercado, de uma mercadoria útil. E isso significa que a moeda não podia se ter originado nem por um decreto governamental que convertesse algo em moeda, nem por alguma espécie de contrato social único: ela só poderia ter-se desenvolvido a partir de uma mercadoria útil e valiosa para todos. Carl Menger já demonstrara antes que a moeda provavelmente surgira desse modo, mas foi Mises quem provou que a moeda só poderia ter surgido no mercado.

Mas isso tinha ainda outras implicações: significava, em oposição às concepções da maioria dos economistas de então e de hoje, que a “moeda” não é simplesmente unidades ou pedaços de papel arbitrário tal como definidos pelo governo: “dólares”, “libras”, “francos” etc. Ela originou-se necessariamente como mercadoria útil: como ouro, prata, ou qualquer outra coisa. A unidade monetária original, a unidade de cálculo e de câmbio, não foi o “franco” ou o “marco”, mas a grama de ouro ou a onça de prata. A unidade monetária é, essencialmente, uma unidade de peso de determinada mercadoria com um valor específico produzido no mercado. Não é de espantar, de fato, que todos os nomes hoje dados ao dinheiro – dólar, libra, franco e assim por diante – tenham sido antes designações de unidades de peso do ouro ou da prata. Mesmo no caos monetário de nossos dias, as leis dos EUA continuam a definir o dólar como uma trigésima – quinta parte (atualmente uma quadragésima – segunda) de uma onça de ouro.

Essa análise, combinada à demonstração feita por Mises dos implacáveis males sociais que decorrem do aumento da oferta, por parte do governo, de “dólares” e de “francos” arbitrariamente produzidos, indica o caminho da total separação entre governo e sistema monetário. Isto porque significa que a essência da moeda é um peso de ouro ou prata, sendo perfeitamente possível retornar a um mundo em que esses pesos voltariam a ser a unidade de cálculo e o meio das trocas monetárias. Um padrão-ouro, longe de representar um fetiche bárbaro ou mais um artifício do governo, é considerado capaz de fornecer uma moeda produzida exclusivamente no mercado e não sujeita às tendências redistributivas e inflacionárias próprias do governo coercitivo. Uma moeda sólida, não governamental, equivaleria a um mundo em que preços e custos voltariam a cair, em resposta a aumentos da produtividade.

Estes, no entanto, estão longe de ser os únicos grandes feitos da monumental obra de Mises, The Theory· of Money and Credit. Ele revela, também, o papel das transações bancárias na oferta de moeda, mostrando que a atividade bancária livre, isenta do controle e do comando do governo, não redundaria em expansão desenfreadamente inflacionária da moeda – os bancos é que seriam compelidos, por demandas de pagamento, a uma política segura e não inflacionária de “moeda forte”. Segundo a maioria dos economistas, a centralização da atividade bancária (ou seja, o controle das atividades bancárias por um banco governamental, tal como ocorre no Sistema de Reserva Federal – Federal Reserve System -, dos EUA) é necessária para que o governo possa restringir as tendências inflacionárias dos bancos privados. Mas Mises demonstrou que o papel dos bancos centrais foi exatamente o oposto: o de eximir os bancos das rigorosas restrições impostas pelo mercado livre às suas transações, estimulando-os e impelindo-os à expansão inflacionária de seus empréstimos e depósitos. A centralização da atividade bancária, como o sabiam perfeitamente seus primeiros proponentes, é, e sempre foi, um expediente inflacionário destinado a livrar os bancos das restrições do mercado.

Outra importante realização de The Theory of Money and Credit foi erradicar algumas anomalias que, não tendo base na análise da ação individual, prejudicavam o conceito “austríaco” da utilidade marginal. Em contradição com sua própria metodologia básica -tomar por base as ações reais dos indivíduos – os “austríacos” tinham aceitado as versões da utilidade marginal propostas por Jevons e por Walras, os quais haviam procurado transformá-la numa quantidade matemática mensurável. Até hoje, todo manual de economia explica a utilidade marginal com base em “utils” – unidades supostamente  suscetíveis de adição, multiplicação e outras operações matemáticas. E, se um estudante percebesse que não há muito sentido na frase: “atribuo um valor de 4 utils a este quilo de manteiga”, estaria coberto de razão. Baseado em ideias de um colega, o tcheco Franz Cuhel, no seminário conduzido por Böhm-Bawerk, Mises refutou cabalmente a ideia de que a utilidade marginal fosse, de algum modo mensurável, mostrando tratar-se de uma hierarquização estritamente ordinal, em que o indivíduo arrola seus valores por categorias de preferência (prefiro A a B, e B a C), sem pressupor qualquer unidade mitológica ou quantidade de utilidade. Se já é absurdo dizer que um indivíduo pode “medir sua própria utilidade”, mais absurdo será tentar comparar utilidades entre pessoas de uma sociedade.

Contudo, ao longo de todo este século estatistas e igualitários têm tentado utilizar desse modo a teoria da utilidade. Se é lícito dizer que a utilidade marginal de um dólar para cada pessoa reduz-se à medida que ela acumula mais dinheiro, por que não se poderia dizer também que o governo pode aumentar a “utilidade social” subtraindo um dólar de um homem rico, que lhe atribui pouco valor, e dando-o a um pobre, que muito o valorizaria? A demonstração de Mises de que as utilidades não são mensuráveis elimina por completo o uso da utilidade marginal como argumento em prol da adoção de políticas igualitárias pelo estado. Não obstante, embora pretextando aceitar a ideia de que a utilidade não pode ser comparada entre indivíduos, os economistas ousam prosseguir, tentando comparar e somar “benefícios sociais” e “custos sociais”.

[3] Ver Ludwig von Misses, The Theory of Money and Credit (Indianapolis: Liberty Classics, 1981).

 

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