O Estado segundo Nietzsche

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Nietzsche Contra a Idolatria Política

Nietzsche é o expoente do relativismo.

Ele objetivou destruir filosoficamente, assim, o que chamava de “velhas tábuas”, as verdades perenes da tradição ocidental, defendendo que esta enquanto tal acentuava quase irreversivelmente no homem a sua tendência à manada, especialmente à de natureza religiosa.

Não é cabível discutir aqui, porém, os aspectos metafísico-filosóficos integrais do pensamento nietzschiano.

A parcela de Nietzsche que nos interessa, desse modo, versa relativamente ao estado enquanto tal, ou, melhor, ao espírito de rebanho (inerentemente viciado) do qual necessita o estado a fim de legitimar-se.

Nietzsche versava que o homem espelha no ídolo do dogmatismo religioso uma forma alegadamente obrigatória de moral prática que lhe contraria substantivamente, que lhe é inalcançável e que, em razão disso, o prende a normas de comportamento dogmáticas e espiritualistas que, por serem absolutamente impraticáveis ao homem enquanto matéria vivente, operam justificando falsamente o seu fracasso lastimoso no curso da tentativa de suplantação das suas necessidades genuínas (das suas necessidades corporais naturais (prazeres), mais especificamente), posto que, segundo o ponto comum de qualquer dogmatismo religioso que se encontre, frisa Nietzsche, a priorização da suplantação das necessidades relativas ao prazer do corpo enquanto tal é infernal e diabólica.

É inegável a validade do que nos compele a duvidar do que disse Nietzsche em enorme parte, mas é igualmente inegável que o mesmo, na seção O Novo Ídolo de Assim Falou Zaratustra, tornou visível aos seus leitores o quão monstruoso é o estado, não deixando, assim, de aviltar os aspectos viciosos dos adeptos da religião Estado, e mostrando que esta religião possui uma natureza um tanto quanto caracteristicamente indistinta da de uma mera idolatria equina.

 

Sobre o “Nós” e o “Estado”

Analisemos o discurso de Zaratustra pela primeira passagem:

“Ainda em algumas partes há povos e rebanhos; mas entre nós, irmãos, entre nós há Estados.

Estados? Que é isso? Vamos! Abri os ouvidos, porque vos vou falar da morte dos povos.

Estado chama-se o mais frio dos monstros. Mente também friamente, e eis que mentira rasteira sai da sua boca: “Eu, o Estado, sou o Povo”.

É uma mentira! Os que criaram os povos e suspenderam sobre eles uma fé e um amor, esses eram criadores: serviam a vida.

Os que armam laços ao maior número e chamam a isso um Estado são destruidores; suspendem sobre si uma espada e mil apetites.

Onde há ainda povo não se compreende o Estado que é detestado como uma transgressão aos costumes e às leis.”

Deparamo-nos com uma verdade, desde já.

O estado, em sentido prático, nada é senão um conjunto de parasitas que fazem uso de agressão em escala institucional. Segundo o senso moral comum, porém, qualquer forma de agressão não respaldada supersticiosamente tende à sua própria derrogação, já que, à medida que o homem, em função da sociabilidade que lhe própria, percebe o fato de que vive melhor cooperando que não cooperando (inferindo que a cooperação, por ser, conceitualmente, interativa e voluntária, inexistiria completamente enquanto evento fenomênico social se a sua consecução não fosse apreciavelmente benevolente aos seus autores) e o de que toda e qualquer forma de cooperação se dá em conjunturas protetivas à propriedade (i. e., punitivas às agressões, uma vez que estas configuram os atos que se fazem lesivamente à propriedade (e, inclui-se, às suas extensões lógicas: liberdade; vida; etc.)), sempre será incomparavelmente mais preferível ao homem a derrogação terminante de toda forma de agressão que a sua aceitação (inclusive, a sua institucionalização), precisamente em decorrência da universalidade (objetividade) ontológica dos fatores valorativos subjetivos que determinam a sua sociabilidade.

Mais coloquialmente, se o mero furto de esquina é rechaçável ao homem pelo fato de o furtador, ao forçá-lo violentamente à consecução de uma troca da qual não extrai absolutamente nenhum ganho (bem), posto que, do contrário, ou seja, se extraísse (se lhe fosse minimamente aprazível (benévolo)) se compeliria naturalmente à mesma sem a necessidade alguma de violência (o que implica que a necessidade de violência para a efetuação de uma dada troca sempre há de manifestar nitidamente o fato de que um intercâmbio concretizado por coação sempre se porá a infelicitar uma das partes atuantes (em todo caso, a coagida) em prol da felicitação sub-reptícia da outra (em todo caso, da realizadora da coação (violência))),  transgredir o curso da sua autorrealização (a suma manifestação da sua tendência ao bem), tanto a institucionalização do furto quanto a sua personificação hão de ser absolutamente rechaçáveis ao homem, por, definitivamente, lhe serem malévolas, já que foi compulsivamente interrompido o curso da sua tendência ao bem.

Ora, se é preferível ao homem derrogar a agressão em função de a mesma, por definição, lhe forçar a tomar um curso de ação que não tomaria caso não coagido permanecesse, sendo o homem, se livre, irrevogavelmente tendente ao seu bem, deduz-se que o estado, por agredir sistematicamente o indivíduo ao estilo tributário, leva ao mal. Portanto, sendo o mal imoral (antiético (falso)), inegavelmente, a existência do estado é, em si, indefensável.

O estado, sendo o monstro que é, tenta, assim, moralizar o imoral a ponto de fazer o povo confundir-se consigo, ou, melhor, a ponto de encapar-se do que Murray Rothbard, em Anatomia do Estado, chamou de “camuflagem ideológica”.

A imoralidade inerente ao estado, assim, se transforma numa perversão moral do povo, embora a existência mesma do estado se derive de uma dissonância cognitiva generalizada relativa à ética.

“Se os pedintes são numerosos na nossa sociedade”, diz o estatista, “o estado é o que deve atuar como protagonista da filantropia, já que o povo não se impele por si mesmo à sua execução!”. “Se os pobres são os majoritários na nossa sociedade, é em razão do egoísmo que entre nós impera e é o estado o ente que deve matá-lo heroicamente nos fazendo praticar a caridade que é-nos tradicional.”, afirmam os estatistas.

Ora, filantropia/caridade via recursos roubados não se distingue elementarmente da “distribuição de renda”, mas esta última constitui semanticamente a versão moralizadora da perversão que é a primeira, por efeito do “nós somos o estado”, a camuflagem ideológica predileta do ladrão governamental.

Ora, sonegar, por efeito do “nós somos o estado”, seria dever a si mesmo? Ser seu próprio agiota?! Grandiloquente absurdidade!

Senhores, vocês não são o estado!

Rothbard, em Anatomia do Estado, é brilhante ao inferir:

“Devemos, portanto, enfatizar a ideia de que “nós” não somos o estado; o governo não somos “nós”.  O estado não “representa” de nenhuma forma concreta a maioria das pessoas.  Mas, mesmo que o fizesse, mesmo que 70% das pessoas decidissem assassinar os restantes 30%, isso ainda assim seria um homicídio em massa e não um suicídio voluntário por parte da minoria chacinada.  Não se pode permitir que nenhuma metáfora organicista, nenhuma banalidade irrelevante, obscureça este fato essencial.”

Senhores, vocês não são o estado! Logo, o amor que têm por suas vidas não deve ser direcionado ao estado, visto que este não o merece!

Ora, o estado é agressivo. Portanto, é antissocial! Como uma instituição monopolizadora da agressão, a prática mais antissocial existente, poderia integrar-se aceitavelmente à sociedade ou até mesmo fundamentá-la em seus ombros?! Não confundam “nós” com “estado”, pois confundi-los é a abertura da porta para o abismo, senhores.

Senhores, vocês não são o estado!

Vocês não determinam os seus próprios salários!

Não são vocês os improdutivos!

Vocês, para prosperarem, necessitam de acrescer valor à vida dos seus concidadãos em forma de produtos e serviços mercadologicamente valorizáveis, e são recompensados monetariamente com lucros à proporção do quão intercambiável é o bem acrescido à oferta disponível, e não podem, por isso, operar indiferentemente à valoração subjetiva dos seus concidadãos, já que o caráter intercambiável de um dado objeto se faz nascer tão-só em decorrência do valor que a ele é atribuído subjetivamente por um agente em função da sua escala particular de necessidades e em função da efetividade que o tal objeto tem enquanto meio à necessidade cuja supressão valora o agente!

Se vocês praticarem atos de extorsão e chamarem estes tais de “tributação” serão vistos como lunáticos!

Vocês não podem redigir mandamentos num papel, chamar este de “Constituição” e impô-los arbitrariamente como se leis fossem, pois serão, seguramente, vistos como vítimas de distúrbios personalistas, isto é, como loucos que se acham deuses!

Logo, vocês não são o estado, senhores.

O poder, contrariamente ao que dizem, não emana de vocês, mas somente dos que compõem o aparato estatal.

Ora, se emanasse genuinamente de vocês, e se fosse ordenado conforme o que por vocês fosse desejado, que motivo seria de haver à existência do poder mesmo? Se os seus desejos são manifestados pelas suas ações livres, e se o poder se fizesse pontualissimamente conforme manda o que por vós é desejado, o poder enquanto tal inexistiria, visto que apenas replicaria o que vocês fariam em liberdade, posto que os seus desejos genuínos (ou seja, os desejos pela suplantação dos quais a felicidade se vê mais próxima) se fazem notar tão-somente sob a liberdade, já que, sendo o homem substancialmente tendente ao seu bem (à sua felicidade) em detrimento do que lhe é mal (a sua infelicidade), vós hão de desejar o que lhes apraz, e, sendo esta uma inequívoca verdade, o que não desejam livremente não vos apraz, mas vos infelicita; o que implica que um poder cujo intento primacial seja o de vos aprazer maximamente para provar que se faz emanar de vocês deve, necessariamente, prezar a liberdade, o que contraria a base existencial de todo e qualquer poder.

Portanto, não!

Vocês não são o governo, mas são vocês os que devem rechaçar a baixeza ético-moral chamada “Estado”.

 

Do Estado Como Pressuposto da Relativização da Moral

E segue Nietzsche:

“Eu vos dou este sinal: cada povo fala uma língua do bem e do mal, que o vizinho não compreende. Inventou a sua língua para os seus costumes e as suas leis.

Mas o Estado mente em todas as línguas do bem e do mal, e em tudo quanto diz mente, tudo quanto tem roubou-o.

Tudo nele é falso; morde com dentes roubados. Até as suas entranhas são falsas.

Uma confusão das línguas do bem e do mal: é este o sinal do Estado. Na Verdade, o que este sinal indica é a vontade da morte; está chamando os pregadores da morte.”

A primeira parte dessa passagem nos é interessante.

A língua de um povo configura um produto variável da espontaneidade com a qual o mesmo se faz.

Significante parte das normas de comportamento naturais, isto é, derivadas da lei natural, foram tradicionalizadas historicamente, de forma espontânea segundo o que pedia a supressão das necessidades comunais mais localistas dos povos.

Ora, em Ordem Espontânea: Da Importância de F. A. Hayek para uma Teoria Evolutiva Geral do Direito segundo os Princípios da Escola Austríaca, frisei:

“H. H. Hoppe, e sua ética argumentativa, clarifica o motivo de a propriedade ser necessária a qualquer ordem jurídica institucional. Esta, sendo diretamente oriunda do querer humano, ou de um conjunto multiplamente extensível deste, deve, por inexorabilidade, manifestar uma valoração intersubjetivamente verificável em relação ao fim ao qual tal ordem jurídica serve enquanto meio efetivo. Isto é sabido praxeologicamente. Por exemplo, sabemos que quando uma pessoa se põe a comer maçãs ela valora o estado de coisas comer maças superiormente ao estado de coisas não comer maças, seja em razão de ter por finalidade desfrutar do sabor açucarado das mesmas, ou seja porque quer apartar a fome, etc., uma vez que, contrariamente, não decidiria comê-las. O fenômeno ação, sendo um evento intencionado por parte do seu autor, sempre há de expressar uma valoração subjetivamente verificável deste. Logo, uma ordem jurídica institucional, sendo uma entidade procedente das intenções cooperativas ético-morais de muitos indivíduos, também há de expressar uma valoração intersubjetivamente verificável por parte de tais indivíduos, isto é, a composição cooperativa de uma ordem jurídica institucional protetiva, sendo um meio servente a uma dada finalidade intersubjetivamente valorada, manifesta uma valoração comum aos homens que a propositaram. E, sendo, por necessidade conceitual, a justiça (em suma, a paz) a finalidade à qual ruma qualquer ordem jurídica, sabe-se que, ao homem, em função da sociabilidade que lhe é substantiva, a paz – a não agressão – é comparativamente mais preferível que o conflito – agressão – de modo que a qualquer ordem jurídica de natureza protetiva (cuja missão existencial primacial é, por definição, a de derrogar os conflitos (agressões) em prol da paz (não agressão/cooperação)) o reconhecimento da propriedade privada é necessário, já que o ato agressivo é o que se dá lesivamente/danosamente à propriedade e o pacífico o que se dá não lesivamente/danosamente à propriedade, em qualquer debate concernente à ética.

Sob uma perspectiva anarcocapitalista, as teses (hobbesianas) que preconizam, assim, a posterioridade (desnecessidade) da percepção da propriedade privada em relação às maneiras contratualistas de resolução de conflitos não se mantêm. O estatismo jurídico-ético, por sua vez, em função de preconizar essencialmente a imposição de tributos (sumamente, a agressão em nível institucional), configura outro tipo de irracionalidade ética ignorante à natureza dos fatores condicionadores da formulação de leis logicamente defensáveis e válidas.

[…]

Além de tudo, quando se fala de autopropriedade – outro elemento necessário à composição de qualquer ordenamento jurídico –, fala-se especificamente de um fator condicionante à descoberta de leis eticamente defensáveis e inerentes à manutenção de uma sociedade civil. Ora, a abstração cognoscitiva das leis eticamente defensáveis não é dada ao homem, o que implica que este deve, para prosperar enquanto ator ético, lançarse à descoberta da forma racional da elucidação e da aplicação das leis axiológicas válidas relativamente às formas possíveis de convivência pacífica humana.

H. H. Hoppe observou que a argumentação é necessária à descoberta de tais leis, ou, melhor, à descoberta das verdades relativas à forma eticamente defensável e racional da aplicação das leis axiológicas relativas ao caráter geral da natureza humana, visto que a argumentação serve eficazmente ao homem enquanto ferramenta sem a qual não é minusculamente possível a descoberta das verdades em geral, sendo o seu valor, enquanto meio efetivo à descoberta das verdades em geral, absolutamente incontestável, já que o único modo pelo qual se pode possivelmente contestar o valor da argumentação enquanto meio efetivo à descoberta das verdades em geral constitui substancialmente o que diz respeito à argumentação mesma, o que torna toda e qualquer contestação do valor da argumentação enquanto meio efetivo à descoberta das verdades em geral obrigatoriamente contraditória, posto que todas as contestações possíveis apenas podem expressar-se argumentativamente, isto é, por intermédio do emprego de elementos constitutivos ao processo de argumentação – e a efetividade do emprego de tais elementos sempre dependerá do valor do processo de argumentação enquanto meio. Portanto, a descoberta das verdades respeitantes às leis eticamente defensáveis e racionais relativamente às formas possíveis de convivência pacífica humana apenas se dá mediante a argumentação.

Não apenas isso. A argumentação configura uma ação humana, o que implica que a mesma há de expressar intrinsecamente dadas valorações por parte do seu autor. Além do mais, ela configura um tipo interativo de ação humana, já que não há como uma pessoa, por exemplo, argumentar consigo mesma efetuando uma espécie conceitualmente inespecífica de monografia, o que implica que, ao argumentar, o homem não apenas manifesta o fato de que valora a descoberta das verdades superiormente à ignorância, mas, também, o fato de que valora a interação superiormente ao conflito, já que, contrariamente, preferiria um tipo antissocial de ação (agressão; lesão; dano) em detrimento de um tipo interativo (argumentação). Daí, deduz-se que a propensão à interação/cooperação, enquanto elemento ontologicamente próprio ao homem, é necessária à possibilidade de consecução de atos interativos – inclui-se, argumentação – e esta é absolutamente necessária ao homem enquanto ferramenta determinante à descoberta das verdades em geral – inclui-se, as relativas às leis eticamente defensáveis –, sendo a descoberta destas absolutamente imprescindível à composição de qualquer ordenamento jurídico-institucional. Ademais, uma vez que a cooperação procede originalmente do reconhecimento mutual da propriedade privada e da autopropriedade alheias, sabe-se que a propriedade privada (inclui-se, autopropriedade) é, por inexorabilidade, necessária à composição de qualquer ordenamento jurídico, pois é a que configura o fator causal primário comum a qualquer ordem jurídica. Logo, qualquer ordenamento que pressuponha substantivamente a sua negação é contraditório.

O homem é um animal social, e, por sê-lo, lhe é própria a propensão à cooperação, posto que a consecução desta lhe gera um bem subjetivo. E, uma vez que a necessidade de cooperação é ontológica ao homem enquanto tal, sabe-se que o bem subjetivo oriundo da cooperação (a qual, por ser um produto praxeológico de inter-ações voluntárias, é intersubjetivamente valorada pelos seus agentes causadores, pois, do contrário, não seria produzida) é universalizável por concernir ao caráter social do homem enquanto ser subjetivo dotado de dadas inclinações ontológicas relativamente às qualidades que o torna um ser caracteristicamente sociável – cooperativo.”

Acrescentei:

“O desejo comum dos homens de alcançar os objetivos que lhe são próprios pelo emprego dos melhores meios disponíveis há obrigatoriamente de fazer originar no agente homem tanto a propulsão à atividade econômica-produtiva quanto a inclinação à avaliação prática das consequências utilitárias específicas das muitas trocas comerciais possíveis, de modo a o homem poder efetuar as que melhor se alinharem à consecução dos seus propósitos particulares – subjetivos.

Como descobrir os benefícios/malefícios decorrentes da consecução de dadas trocas é vantajoso ao homem, e como a não descoberta de tais benefícios/malefícios ser-lhe-á sempre incomensuravelmente malévola, pode-se prognosticar que, de maneira gradual e espontânea, os métodos contratuais/comerciais de aquisição de recursos econômicos serão consolidados e generalizados socialmente, de tal maneira que, em razão da notabilidade dos inumeráveis benefícios que se fazem nascentes do emprego recorrente desses métodos, eles vão se integrando paulatinamente ao costume do homem até ao ponto em que aquele que não os cultiva vê-se compelido ao seu cultivo naturalmente e espontaneamente por fatores seletivos. Tais métodos contratuais/comerciais, desse modo, por se mostrarem benéficos socialmente, vão se generalizando entre os homens até a institucionalização espontânea dos mesmos – mais especificamente, até a institucionalização daquilo que, contemporaneamente, chamamos de mercado.”

Faz-se, então, verificável a validade universal das normas protetivas à liberdade, em função de o que é acrescentado mais adiante:

“Para Mises, a ação evolui à inter-ação à medida que o homem nota a troca interpessoal como utilitariamente superior à troca autística.

A troca interpessoal, portanto, ao passo que é voluntária, configura um bem ao homem, posto que este livremente recorre à mesma em prol da consecução dos seus propósitos subjetivos e posto que, se lhe fosse malevolente (isto é, se retardasse/inibisse de algum modo o alcance dos seus fins particulares), não se inclinaria voluntariamente à sua internalização comportamental.

A coerção (troca forçada (lesão à (auto)propriedade), por sua vez, configura um mal ao homem, já que o agente da coerção obriga o coagido a efetuar uma troca consigo à qual este não recorreria em condições de liberdade – uma vez que, contrariamente, a coerção não ocorreria, posto que o coagido efetuaria a troca sem necessidade alguma de atos coercitivos por notar subjetivamente na consecução dela atributos bons – e, presumivelmente, não recorreria à troca referida em função dela não lhe ser benevolente, posto que, do contrário, recorreria à mesma voluntariamente (sem a necessidade de coerção) de modo a extrair da consecução dela os benefícios relativos à sua benevolência suposta. Como é apriorístico e incontestável o fato de que é absolutamente ontológico ao homem apartar-se do mal e ir ao bem, tal como disse S. T. de Aquino, percebe-se que é próprio à natureza humana prezar a liberdade e repreender a coerção (agressão – lesão à propriedade). Desta forma, os homens vão assimilando paulatinamente a natureza do que lhes é bom. Daí decorre que tão-só predominarão seletivamente os grupos (corpos associativos) humanos que internalizarem institucionalmente as normas de comportamento respeitantes ao elemento comum objetivo e universal – diga-se, liberdade (não agressão) – do florescimento humano (sempre subjetivo e particular).”

As normas que se tradicionalizam socialmente de forma natural nunca hão, portanto, de contraditar a liberdade, justamente pela espontaneidade que as caracteriza.

Todavia, se o estado é o que, pelas vias que lhe são próprias, avilta a liberdade, o que nos permitiria presumir que o mesmo obedece à natureza espontânea da sociedade? Se o mesmo é o que agride sistematicamente os indivíduos e se é o que os força a tomar cursos de ação que não tomariam em liberdade, o que nos impeliria a pressupor que a existência do estado decorre da orientação ao bem, uma vez que o que é benévolo ao homem se manifesta fidedignamente apenas sob conjunturas protetivas à liberdade enquanto tal e, definitivamente, não sob conjunturas que personificam a institucionalização da lesão à liberdade?

Ora, se o estado preservasse em si o caráter espontâneo (tendente ao bem) da ordem social (segundo o logos que lhe é ontologicamente imanente), ele automaticamente deveria deixar de sê-lo, posto que, sendo-lhe própria a agressão em escala institucional, sendo o bem sumo do agente manifestável somente pela potencialização do seu ser, e sendo tal potencialização verificável concretamente apenas sob condições favoráveis à autonomia da vontade (sob condições protetivas à sua liberdade de escolha, já que é axiomático o fato de que o agente sempre escolherá tender ao seu bem e apartar-se maximamente do que lhe é mal; o que implica que se não tende a um dado “bem” voluntariamente/espontaneamente/livremente, é em função de este não lhe se fazer realmente benévolo, mas maléfico), é, conceitualmente, substantiva ao estado a coação, isto é, a violação da liberdade, isto é, a prática de forçar o agente à consecução de atos não livres, não voluntários e não espontâneos (i. e., maléficos).

O estado, dessa forma, não respeita a língua ética de nenhuma sociedade concebível, mas, pelo relativismo, é capaz de mentir ao povo em todas as línguas antiéticas concebíveis.

H. H. Hoppe, em Democracia: O Deus que Falhou, elucida o porquê de o monopólio da lei preconizar um relativismo moral progressivo:

“Sob auspícios monopolísticos, a lei invariavelmente se transformará em legislação. Em consequência de um interminável processo de redistribuição de renda e de riqueza em nome da justiça racial, social e/ou sexual, a própria ideia da justiça como princípios universais e imutáveis de conduta e de cooperação será corroída e finalmente destruída. Ao invés de ser considerada algo pré-existente (algo, portanto, a ser descoberto), a lei é cada vez mais considerada legislação governamental. Assim, não só se agrava a insegurança jurídica, mas também, em resposta a isso, aumenta a taxa social de preferência temporal – i.e., as pessoas, em geral, se tornarão mais orientadas para o presente, promovendo um horizonte de planejamento cada vez mais curto (visão de curto prazo). O relativismo moral também será promovido – pois, se não existe um padrão absoluto (firme, imutável, constante) do que é certo, então, da mesma forma, não há um padrão absoluto do que é errado. Na verdade, o que se considera certo hoje pode ser considerado errado amanhã – e vice-versa.”

Numa sociedade livre, as estruturas judiciárias privadas, por se fazerem viáveis apenas por trocas voluntárias (meios comerciais/cooperativos), tenderiam a operar refletindo a moral socialmente imperante, e, cabe lembrar, tal moral concerniria fundamentalmente ao respeito à liberdade (propriedade) e a princípios éticos imutáveis relativamente ao prezar da mesma, pelas razões acima expostas.

Portanto, caso uma estrutura judiciária privada julgue os conflitos não compativelmente à inviolabilidade da liberdade de escolha/contrato, mas por critérios totalmente arbitrários, ela certamente falirá no mais tardar por fatores concorrenciais, o que há de compelir todas as estruturas judiciárias privadas à máxima retidão (à máxima integridade moral).

O que ocorre, pois, com o estado? Com ele, se faz imperante toda forma possível de antinomias. O estado pilha sistematicamente, e, em decorrência disso, justificar-se é-lhe imprescindível. Assim, instrumentaliza a sua capacidade legislativa em prol do alcance de certas demandas majoritárias, visto que necessita do apoio da maioria para continuar a tributar viavelmente os bolsos privados.

Como os pobres são os majoritários, p. ex., sustenta, dessa forma, inúmeros programas distributivos ignorantemente à propriedade alheia.

Ao se deparar com uma injustiça, o indivíduo, se vendo perante um monopólio da justiça, não poderá possivelmente impelir tal injustiça ao seu término financiando outros provedores de justiça competitivamente melhores (ou seja, mais justos (retos/íntegros), não injustos), mas, se vendo violentamente coagido a financiar tão-só um provedor (o estado), buscará raivosamente livrar-se da infelicidade provocada por essa injustiça demandando do estado mesmo outras injustiças que compensem o infortúnio da primeira em contraposição notavelmente conflitiva às demandas doutros que foram homogeneamente injustiçados, ao invés de agir pacificamente mantendo os seus valores e a sua integridade.

O estado, assim, se vê aparentemente mais imprescindível e, finalmente, as cizânias sociais, por causa da sua existência mesma enquanto monopolizador coativo da justiça, se veem progressivas e miseravelmente irreparáveis! A injustiça, ao invés de rumar ao seu fim pelo curso natural da sociedade, se vê, com o estado, institucionalizada e inserida no modo pelo qual o homem se aparta da sua infelicidade!

Ai! Miséria!

Queiram, senhores, sumamente, conhecer novas e belas línguas, mas a estatista deve-lhes ser incomensuravelmente nojosa!

 

Do Estado Como Salvador

Segue Nietzsche:

“Vêm ao mundo homens demais, para os supérfluos inventou-se o Estado!

Vede como ele atrai os supérfluos! Como os engole, como os mastiga e remastiga!

“Na terra nada há maior do que eu; eu sou o dedo ordenador de Deus” — assim grita o monstro. E não são só os que têm orelhas compridas e vista curta que caem de joelhos!”

O Super-Homem, para Nietzsche, é o homem que vive diferentemente da manada, é o que, à medida que sabe criar para si mesmo o seu próprio guia moral, eleva-se aos demais e potencializa-se de modo a nenhuma outra variante possível de si poder lhe ser insuperável. É o que, portanto, aparta-se da mediocridade pura e orienta-se à concretização do seu potencial súpero.

Entretanto, independentemente do Super-Homem nietzschiano, certo é que apartar-se da mediocridade sempre esteve a exigir do homem imensa criatividade e esforço laborativo.

O homem que espera o seu sucesso ansiosamente, porém estaticamente é o que permanece infantilizado e iludido. Afinal, a vida confortável de uma criança nunca se pôs a depender diretamente dela, mas da sabedoria prática dos seus pais ou, mais especialmente, do quão os mesmos obtiveram sucesso financeiro-econômico enquanto produtores de bens úteis. Quando esperneia e quando grita em decorrência de uma dor eventual, a criança, assim, não espera ser pisoteada, mas atenciosamente auxiliada pelos seus pais, pois mesmo ela sabe que o padrão de vida consideravelmente agradável que tem é-o em função do conforto que lhe é gratuitamente provido como resultado do trabalho (da responsabilidade laboral) dos seus pais. Por isso, a criança jamais se verá efetivamente impelida ao trabalho, não somente por efeito de este não lhe caber na maioria das vezes, mas em razão de a sua vida agradável poder perfeitamente prescindir dos seus esforços laborativos presentes. A preferência temporal da criança enquanto tal tende a ser, por conta disso, extremamente alta, pois não vê a necessidade de vislumbrar oportunidades ou a de suprimir o seu consumo presente em prol de um aumento do consumo futuro, posto que, definitivamente, o seu consumo nunca se pôs a não ser indiferente à sua conduta pessoal.

Quando passa, porém, da infância à adolescência e desta à fase adulta, finalmente, o indivíduo, vendo o seu padrão de vida frontalmente dependente do quão promissor é enquanto ser dotado de potencialidades criativas, se compele ao trabalho.

Como o seu consumo futuro não será menos dependente do seu labor que o seu consumo presente, resolve por abster-se de consumir uma determinada parcela do que consumiria normalmente em prol da produção de bens de capital, os quais, se empregados produtivamente, avalia, possibilitarão a si, mediante a mesma porção de força de trabalho, ofertar bens de consumo numa quantidade que, na ausência de um aparato capitalístico mais robusto, lhe se fazia absolutamente impraticável, podendo elevar, por consequência, o seu padrão de vida. Essa oferta maior de bens, desta forma, possibilitada por investimentos precedentes em bens de capital, atuará aumentando à proporção da maior oferta mesma o número das suas finalidades efetivamente alcançáveis, já que este limita-se à quantidade de meios (bens úteis) concretamente disponível à sua fruição. Uma vez que ao indivíduo é disposta uma porção quantitativa de bens consideravelmente maior, por efeito do incremento de ferramentas capitalísticas ao processo de produção dos objetos que o satisfazem, será possível ao mesmo saciar um número mais significativo de necessidades e dispor mais bens à poupança, tornando mais sofisticado, conseguintemente, o aparato capitalístico do qual frui e, em decorrência disso, podendo extrair dele mais bens pelo emprego utilitário dos quais se felicitará maiormente.

O indivíduo, portanto, vendo-se no controle do seu próprio rumo, tenderá a verificar incessantemente as oportunidades que lhe são apresentadas e a procurar nutrir as suas competências laborais maximamente, já que sabe que o seu sucesso financeiro-econômico se fará tão-só à proporção do valor que pelas mesmas é acrescido.

Uma baixa preferência temporal é, notadamente, mais que constitutiva ao ser criativo, o que implica que o indivíduo, ao passo do que é possível, sempre estará a produzir excedentes para poupá-los e, com isso, medrar as suas condições econômicas pessoais.

A compreensão do fenômeno da preferência temporal nos possibilita esclarecer devidamente o fator condicionante ao desenvolvimento econômico em geral, já que a lógica da sua dinâmica serve perfeitamente tanto à zona individual quanto à estrutural, uma vez visto que uma economia prospera, isto é, cresce, tão-só pelo aporte de uma poupança precedente.

Hoppe, em Democracia, elucida a preferência temporal como elemento condicionador do processo de civilização, contundentemente:

“Todo agente requer uma certa quantidade de tempo para alcançar o seu objetivo; e, visto que o homem deve sempre consumir algo e não pode interromper totalmente o seu consumo enquanto estiver vivo, o tempo é sempre escasso. Então, ceteris paribus, os bens presentes – ou disponíveis mais cedo – são e devem ser invariavelmente mais valorizados do que os bens futuros – ou disponíveis mais tarde. Com efeito, se o homem não fosse limitado pela preferência temporal – se a única restrição operando sobre ele fosse a preferência por mais em vez de por menos –, ele invariavelmente escolheria os processos de produção que proporcionariam a maior “saída” por “entrada” (mais outputs – produção – por inputs – insumos), independentemente do período de tempo necessário para que esses métodos dessem frutos. Ele sempre pouparia e nunca consumiria. Por exemplo, em vez de fazer primeiro uma rede de pesca, Crusoé começaria a construir um barco de pesca – pois este é o método economicamente mais eficiente de captura de peixes. Que ninguém, incluindo Crusoé, possa agir dessa maneira torna evidente que o homem somente pode “valorar frações de tempo iguais de uma forma diferente de acordo com o fato de elas estarem mais próximas ou mais afastadas do momento da decisão do agente”. “O que restringe a quantidade de poupança e de investimento é a preferência temporal.”

Impelido pela preferência temporal, o homem só trocará um bem presente por um bem futuro se esperar um aumento da sua quantidade de bens futuros. A taxa de preferência temporal, a qual é (e pode ser) diferente de uma pessoa para outra e de um momento para o outro – mas que, para todos, somente pode ser positiva –, determina ao mesmo tempo o tamanho do prêmio que apresentam os bens presentes em relação aos bens futuros e o montante de poupança e de investimento. A taxa de juros de mercado é a soma acumulada de todas as taxas de preferência temporal individuais, refletindo a taxa de preferência temporal da sociedade e equilibrando a poupança social (i.e., a oferta de bens presentes em troca de bens futuros) e o investimento social (i.e., a demanda por bens presentes que, pensa-se, são capazes de produzir retornos futuros).

Nenhuma oferta de empréstimos pode existir sem uma poupança anterior – i.e., sem a abstenção de um possível consumo de bens presentes (um excesso de produção atual em relação ao consumo atual). E nenhuma demanda por empréstimos existiria se ninguém vislumbrasse uma oportunidade de empregar produtivamente bens presentes – i.e., de investi-los com a finalidade de efetuar uma produção (output) futura que fosse superior aos atuais bens presentes (input). De fato, se todos os bens presentes fossem consumidos e se nenhum desses bens presentes fosse investido em métodos de produção que consomem tempo, a taxa de juros seria infinitamente alta, o que, em qualquer lugar fora do Jardim do Éden, equivaleria a uma simples existência animal, i.e., a uma degradante vida primitiva de subsistência, com as pessoas encarando a realidade com apenas as suas mãos nuas e o seu desejo de gratificação instantânea.

A oferta – bem como a demanda – de empréstimos só surge – e esta é a condição humana – se, em primeiro lugar, for reconhecido que os processos indiretos de produção (mais detalhados, mais longos) geram uma maior ou melhor produção (output) por insumo (input) do que os processos diretos (menos detalhados, mais curtos). Em segundo lugar, deve ser possível, por meio da poupança, acumular o montante de bens presentes (de consumo) necessário para prover todas as necessidades e todos os desejos cuja satisfação durante o prolongado tempo de espera for considerada mais urgente do que o incremento no bem-estar futuro esperado pela adoção de um processo de produção mais demorado.

Sendo satisfeitas essas condições, a formação e a acumulação de capital são estabelecidas e continuam a ser praticadas. A terra e a mão-de-obra (os fatores de produção originários), em vez de se basearem e se empenharem em processos de produção de gratificação instantânea, são sustentadas por um excesso de produção em relação ao consumo e empregadas na produção de bens de capital.

[…]

Quanto menor for a preferência temporal, mais cedo será o início do processo de formação de capital, e mais rápido será o alongamento da estrutura de produção indireta. Qualquer aumento na acumulação de bens de capital e no detalhamento da estrutura de produção aumenta a produtividade marginal da mão-de-obra, o que conduz a um aumento do nível de emprego ou de salário ou – mesmo que a curva da oferta de trabalho deva inclinar-se para trás em função do maior nível salarial – a uma maior massa salarial total. Suprida por uma maior quantidade de bens de capital, uma população de assalariados mais bem pagos produzirá um aumento geral – futuro – da riqueza social, elevando, portanto, os rendimentos reais dos proprietários de capital e de terra.

[…]

[…] não importando qual seja o grau original de preferência temporal de uma pessoa ou qual seja a distribuição original de tais taxas dentro em uma determinada população, uma vez que isso for baixo o suficiente para que se permita a formação de qualquer nível de poupança, de capital e de bens de consumo duráveis, põe-se em movimento uma tendência à queda da taxa de preferência temporal, a qual é acompanhada por um “processo de civilização”.

O poupador troca bens presentes (de consumo) por bens futuros (de capital) com a expectativa de que estes ajudarão a produzir uma oferta maior de bens presentes no futuro. Se ele tivesse uma expectativa contrária, ele não teria poupado. Se essa expectativa se revelar correta e se todo o resto continuar a ser o mesmo, cairá a utilidade marginal dos bens presentes em relação à utilidade marginal dos bens futuros. A sua taxa de preferência temporal será menor. Ele poupará e investirá mais do que no passado, e a sua renda futura será ainda maior, levando a mais uma redução em sua taxa de preferência temporal. Passo a passo, a taxa de preferência temporal aproxima-se do zero, sem, contudo, jamais alcançá-lo. Em uma economia monetária, como resultado da sua entrega de dinheiro presente, o poupador espera receber mais tarde um rendimento maior em termos reais. Com uma renda mais elevada, a utilidade marginal do dinheiro presente cai em relação à do dinheiro futuro; a proporção de poupança sobe; e o futuro rendimento monetário será ainda maior.

Além disso, em uma economia de trocas, o poupador/investidor contribui também para a redução da taxa de preferência temporal dos não poupadores. Com a acumulação de bens de capital, a relativa escassez de mão-de-obra aumenta, e os salários, ceteris paribus, aumentarão. Maiores taxas de salários implicam uma oferta crescente de bens presentes para os antigos não poupadores. Portanto, até mesmo os indivíduos que eram anteriormente não poupadores verão as suas taxas pessoais de preferência temporal caírem.

Ademais, como resultado indireto do aumento dos rendimentos reais provocado pela poupança, a nutrição e a saúde melhoram, e a expectativa de vida tende a aumentar. Em um desenvolvimento semelhante à transformação da infância para a idade adulta, com uma maior expectativa de vida objetivos mais distantes são adicionados à escala de valores presentes do indivíduo. A utilidade marginal dos bens futuros em relação à dos bens presentes aumenta, declinando também a taxa de preferência temporal.

Simultaneamente, o poupador/investidor dá início a um “processo de civilização”. Ao gerar uma tendência à queda da taxa de preferência temporal, ele – bem como todos aqueles que, direta ou indiretamente, estão conectados a esse indivíduo através de uma rede de trocas – desenvolve-se e amadurece: ocorre a transição da infância à fase adulta e da barbárie à civilização.

Ao construir uma estrutura de capital e de bens de consumo duráveis em expansão, o poupador/investidor também expande constantemente o alcance e o horizonte dos seus planos. Cresce o número de variáveis que estão sob o seu controle e que são tomadas em consideração em suas ações do presente. Portanto, isso aumenta o número e o horizonte de tempo das suas predições sobre eventos futuros. A partir disso, o poupador/investidor fica interessado em adquirir e melhorar constantemente o seu conhecimento relativo a um número cada vez maior de variáveis e de inter-relações entre essas variáveis. Contudo, uma vez que tenha adquirido ou melhorado o seu próprio conhecimento e o verbalizado ou demonstrado em suas ações, esse tipo de conhecimento se torna um “bem livre” (abundante; não escasso), disponível à imitação e à utilização por outros para os seus próprios fins. Então, em virtude das ações do poupador, até mesmo as pessoas de visão de curto prazo, orientadas para o presente, serão gradualmente transformadas, passando da condição de bárbaras para a condição de civilizadas. A vida deixa de ser curta, bruta e desagradável, tornando-se mais longa e cada vez mais refinada e confortável.”

Ora, está mais que claro que condições de vida mais confortáveis e suntuosas procedem originariamente da engenhosidade e do talento na arte empresarial, e estas são extremosamente escassas, de modo que se dispõem a poucos. Como, portanto, são muitos os incapazes de engenhosidade, e como o estado, por pilhar sistematicamente, tem de legitimar-se somente à maioria, de maneira que esta possa suplantar a minoria justamente por sê-la, o estado tenderá a resguardar a sua legitimação conferindo “gratuitamente” à maioria não engenhosa tudo o que se faz demasiadamente privado tão-só aos minoritários engenhosos: riqueza. Daí surge a distribuição de renda.

O estado, no que lhe diz respeito, obtém o apoio da maioria lhe outorgando os bens da minoria.

Como o não engenhoso, agora, se vê relativamente mais satisfeito demandando do estado os bens do engenhoso, o não engenhoso muito provavelmente decidirá continuar a sê-lo, já que o que o impeliria a deixar de sê-lo seria o que poderia trabalhosamente obter sendo o que atualmente não é.

Ao invés, então, de a criança deixar de sê-la e empenhar-se, é inserida nela, mediante a distribuição de renda (socialização dos ganhos da engenhosidade), uma conduta mantenedora de tudo o que nela é caracteristicamente infantil, ou seja, ao invés de construir a sua engenhosidade em potência, constrói solidamente apenas o que lhe é absolutamente primordial para demandar do estado o que não consegue adquirir por intermédio do trabalho próprio, isto é, desciviliza a sua alma, fazendo com que se ocupe toxicamente da mentira, da demagogia, do maquiavelismo e da instrumentalização da ignorância das massas. Em função de a existência do estado pressupor agressão institucionalizada intrinsecamente, os melhores demagogos serão naturalmente os mais desinibidos moralmente em relação às agressões perpetradas pelo estado e em relação à manipulação da qual é agente causador.

Como o indivíduo, sob o estado, há de perceber que, sendo demagogo, obtém iguais ou maiores ganhos que um engenhoso mediante o assistencialismo paternal do aparato governamental, tenderá, progressivamente, a ter menos apreço pela propriedade lesada em prol da aquisição das regalias públicas e em detrimento da liberdade de quem teve de as financiar compulsivamente. A dinâmica seletiva da hierarquia social é, então, invertida! O próspero não será o engenhoso, mas o que exerce demagogia indiferentemente às propriedades dos seus concidadãos! O próspero não será o ser civil, mas o que indiferente é à agressão, à prática mais anticivilizacional existente!

Ao invés, então, de o indivíduo tomar as rédeas da própria vida e agir virtuosamente, ele decide esbanjar suinamente ao estado todos os seus vícios de modo que o mesmo se entristeça por eles e os compense mediante a entrega pública e gratuita dos resultados expropriados das virtudes alheias! O homem, sob o assistencialismo, naturalmente, assim, não extrai de si a irresponsabilidade que o caracterizava na infância, mas a mantém muito para além do tempo no término do qual ela já deveria estar completamente morta.

O homem, sob o assistencialismo, em suma, se animaliza e acaba por pender aos seus vícios morais se desinibindo moralmente quanto à agressão à propriedade dos seus irmãos (i. e., se tornando, em sentido mais abrangente, incivilizado) e se fazendo enriquecer pela internalização dos seus vícios comparativamente mais odiosos, em função de os mesmos configurarem os motivos de o estado lhe prover “assistências” (recursos extorquidos).

Ora, em Democracia, versa H. H. Hoppe:

“Em todas as sociedades, sendo a humanidade o que ela é, sempre existem indivíduos que cobiçam a propriedade de outros. Algumas pessoas são mais atingidas por esse sentimento do que outras; mas elas normalmente aprendem a não agir de acordo com tal sentimento – ou até mesmo chegam a se sentir envergonhadas por possuí-lo. Em geral, apenas alguns indivíduos não conseguem suprimir os seus desejos pelas propriedades dos outros; e eles são tratados como criminosos pelos seus semelhantes, sendo reprimidos através do castigo físico. Sob o governo monárquico, apenas uma única pessoa – o príncipe – pode agir movida pelo seu desejo de tomar a propriedade de outro homem; e é isso que faz dela uma ameaça em potencial, um “mal”. Entretanto, além dos desincentivos econômicos e lógicos já delineados, o príncipe também é restringido em seus desejos redistributivos pela circunstância de que todos os membros da sociedade aprenderam a considerar a tomada à força e a redistribuição da propriedade de um outro homem como atos vergonhosos e imorais; portanto, de acordo com isso, eles veem cada ação do príncipe com a maior suspeita. Em distinto contraste, com a liberdade de entrada no governo, qualquer pessoa tem o direito de expressar abertamente o seu desejo pelas propriedades dos demais. O que era anteriormente considerado imoral (e, em função disso, reprimido) é atualmente considerado um sentimento legítimo. Na medida em que recorram à democracia, todos podem abertamente cobiçar as propriedades de todos os outros; e, desde que se obtenha o ingresso no governo, todos podem agir movidos pelos seus desejos pelas propriedades dos demais. Assim, sob a democracia, todos se tornam uma ameaça.

Então, sob condições democráticas, o desejo popular – e também imoral e antissocial – pelas propriedades dos outros homens é sistematicamente reforçado. Toda demanda é legítima se for expressa publicamente sob a proteção especial da “liberdade de expressão”. Tudo pode ser dito, reivindicado e alegado; e tudo pode ser obtido. Nem até mesmo o direito de propriedade privada aparentemente mais seguro e garantido está imune das demandas redistributivas. Pior ainda: submetidos a eleições de massa, aqueles membros da sociedade com pouca ou nenhuma inibição moral contra o roubo da propriedade de outrem – os amoralistas habituais que são os mais talentosos em reunir maiorias de uma multitude de demandas populares moralmente desinibidas e mutuamente incompatíveis; enfim, os eficientes demagogos – tendem a obter o ingresso no governo e a subir ao topo da hierarquia governamental. Assim, uma situação ruim torna-se ainda pior.

Historicamente, a seleção do príncipe acontecia por intermédio da casualidade do seu nobre nascimento; e a sua única qualificação pessoal era a sua educação e a sua criação voltadas para torná-lo um futuro regente, um preservador da dinastia (do seu status e das suas posses). Isso, obviamente, não assegurava que o futuro rei não seria mau e perigoso. No entanto, vale a pena lembrar que todo príncipe que falhou em seu dever de preservar a dinastia – que destruiu ou arruinou o país; que provocou agitação civil, tumulto e discórdia; ou que, de qualquer outra forma, colocou em perigo a posição da dinastia – enfrentou o risco imediato de ser neutralizado ou assassinado por um outro membro da sua própria família. Em todo caso, contudo, mesmo que a casualidade do seu nascimento e a sua educação não pudessem impedir que um príncipe se tornasse mau e perigoso, ao mesmo tempo a casualidade de um nobre nascimento e a educação principesca não impediam que ele pudesse se tornar um diletante inofensivo ou até mesmo uma pessoa boa, decente e moral. Em contraste, a seleção dos governantes através de eleições populares faz com que seja praticamente impossível que qualquer pessoa boa ou inofensiva possa ascender ao topo. Os primeiros-ministros e os presidentes são selecionados graças à sua comprovada eficiência como demagogos moralmente desinibidos. Assim, a democracia praticamente assegura que somente indivíduos maus e perigosos alcançarão o topo da hierarquia governamental; na verdade, em decorrência da livre concorrência política, aqueles que ascendem se tornarão cada vez mais indivíduos ruins e perigosos; e, na condição de zeladores temporários e intercambiáveis, eles só raramente serão assassinados.

[…]

Paralelamente a essa evolução do estado de coisas, haverá um crescimento gradual – mas constante – da criminalidade e do comportamento criminoso. Sob auspícios monopolísticos, a lei invariavelmente se transformará em legislação. Em consequência de um interminável processo de redistribuição de renda e de riqueza em nome da justiça racial, social e/ou sexual, a própria ideia da justiça como princípios universais e imutáveis de conduta e de cooperação será corroída e finalmente destruída. Ao invés de ser considerada algo pré-existente (algo, portanto, a ser descoberto), a lei é cada vez mais considerada legislação governamental. Assim, não só se agrava a insegurança jurídica, mas também, em resposta a isso, aumenta a taxa social de preferência temporal – i.e., as pessoas, em geral, se tornarão mais orientadas para o presente, promovendo um horizonte de planejamento cada vez mais curto (visão de curto prazo). O relativismo moral também será promovido – pois, se não existe um padrão absoluto (firme, imutável, constante) do que é certo, então, da mesma forma, não há um padrão absoluto do que é errado. Na verdade, o que se considera certo hoje pode ser considerado errado amanhã – e vice-versa. Portanto, as preferências temporais crescentes, em conjunto com o relativismo moral, fornecem o terreno fértil perfeito para os criminosos e os crimes – uma tendência particularmente evidente nas grandes cidades. É nelas que a dissolução familiar encontra-se mais avançada; que existe a maior concentração de destinatários do assistencialismo; que o processo de empobrecimento genético se revela mais adiantado; e que as tensões raciais e tribais em decorrência da integração forçada se mostram mais virulentas. Ao invés de serem centros de civilização, as cidades tornaram-se centros de desintegração social e sarjetas de decadência moral, de corrupção, de brutalidade e de crime.

[…]

Além disso, em função de a Constituição explicitamente conceder a “livre entrada” no estado/governo – qualquer pessoa pode se tornar um membro do Congresso, um juiz do Supremo Tribunal ou o presidente –, foi diminuída a resistência contra as invasões de propriedade pelo estado; e, como resultado da “livre competição política”, toda a estrutura moral da sociedade foi distorcida, e mais e mais indivíduos maus ascenderam ao topo. Pois liberdade de entrada e livre competição nem sempre são coisas boas. Liberdade de entrada e livre concorrência na produção de bens é algo positivo, mas livre concorrência na produção de males é algo negativo. Por exemplo, liberdade de entrada no ramo de assassinatos, de roubos, de falsificações e de mentiras não é algo bom; é algo pior do que ruim. Entretanto, é exatamente isso que é instituído pela livre competição política, i.e., pela democracia.

Em todas as sociedades, existem pessoas que cobiçam a propriedade de outros; mas elas, na maioria dos casos, normalmente aprendem a não agir de acordo com tal sentimento – ou até mesmo chegam a se sentir envergonhadas por possuí-lo. Em uma sociedade anarcocapitalista em particular, qualquer indivíduo que aja movido por esse desejo é considerado um criminoso e é reprimido com o uso da violência física. Em um governo monárquico, pelo contrário, apenas uma única pessoa – o rei – pode agir movida pelo seu desejo de tomar a propriedade de outro homem; e é isso que faz dela uma ameaça em potencial. Porém, já que só ele pode expropriar, enquanto todos os outros estão proibidos de proceder da mesma forma, cada ação do rei será vista com a maior suspeita. Adicionalmente, a seleção de um soberano se dá em decorrência do acaso de este ter nascido na nobreza. A sua única qualificação pessoal é a sua educação e a sua criação voltadas para torná-lo um futuro regente, um preservador da dinastia e das suas posses. Isso, obviamente, não assegura que o futuro rei não será mau e perigoso. Todavia, ao mesmo tempo, isso não impede que ele venha a se tornar um inofensivo indivíduo medíocre ou até mesmo uma pessoa decente, boa e moral.

Em distinto contraste, ao promover a liberdade de entrada no governo, a Constituição permitiu a todos expressarem abertamente o seu desejo pela propriedade de outro homem; na verdade, devido à garantia constitucional da “liberdade de expressão”, todo mundo é protegido ao fazer isso. Ademais, qualquer pessoa está autorizada a agir movida por esse desejo, desde que obtenha entrada no governo; por esse motivo, nos termos da Constituição, todos se tornam uma ameaça em potencial.

Com certeza, existem pessoas que não são afetadas pelo desejo de enriquecer à custa dos outros e de mandar neles; i.e., há indivíduos que querem apenas trabalhar, produzir e gozar os frutos do seu trabalho. Porém, se a política – a aquisição de bens pelos meios políticos (tributação e legislação) – é permitida, até mesmo essas inofensivas pessoas serão profundamente afetadas. A fim de se defenderem de ataques à sua liberdade e à sua propriedade por aqueles que têm menos inibições morais, até mesmo essas pessoas honestas e trabalhadoras devem tornar-se “animais políticos” e gastar cada vez mais tempo e energia desenvolvendo as suas capacidades políticas. Tendo em conta que os talentos e as características necessários para o sucesso político – boa aparência, sociabilidade, oratória, carisma, entre outros – são distribuídos desigualmente entre os homens, então aqueles que possuem esses atributos especiais e essas habilidades específicas terão uma boa vantagem na competição por recursos escassos (sucesso econômico) quando comparados com aqueles que não os têm.

Pior ainda: uma vez que em cada sociedade existem mais “pobres” (“não possuidores”, “os que não têm”), que não possuem os bens que vale a pena possuir, do que “ricos” (“possuidores”, “os que não têm”), os politicamente talentosos, que têm pouca ou nenhuma inibição contra tomar a propriedade alheia e mandar nos outros, possuem uma clara vantagem sobre aqueles que têm tais escrúpulos. Ou seja, a livre competição política favorece os talentos políticos agressivos (portanto, perigosos) em vez dos defensivos (portanto, inofensivos), conduzindo, assim, ao cultivo e à perfeição das peculiares habilidades da demagogia, da fraude, da mentira, do oportunismo, da corrupção e do suborno. Em consequência disso, a entrada e o sucesso no governo se tornarão cada vez mais impossíveis para qualquer pessoa que tenha inibições morais contra os atos de mentir e roubar. Então, ao contrário dos reis, os congressistas, os presidentes e os juízes do Supremo Tribunal não adquirem – aliás, nem podem adquirir – as suas posições acidentalmente (por acaso). Ao invés disso, eles atingem as suas posições graças à sua competência em serem demagogos moralmente desinibidos. Além disso, mesmo fora da órbita do governo, no seio da sociedade civil, os indivíduos cada vez mais subirão ao topo do sucesso econômico e financeiro não por conta dos seus talentos produtivos ou empreendedores ou até mesmo dos seus superiores talentos políticos defensivos, mas sim por conta da sua habilidade superior como inescrupulosos empresários políticos e lobistas. Assim, a Constituição praticamente assegura que apenas homens perigosos alcançarão o pináculo do poder governamental e que o comportamento moral e os padrões éticos tenderão a diminuir e a deteriorar-se em todo lugar.”

Ora, tampouco economicamente a socialização dos resultados trabalhosos da virtude deixa de ser anticivilizacional. Por exemplo, H. H. Hoppe, ainda em Democracia, afirma:

“[…] caso ocorram violações dos direitos de propriedade e os bens apropriados ou produzidos por A sejam roubados, danificados ou expropriados por B; ou caso B restrinja, de alguma forma, os usos que A está autorizado a fazer dos seus bens (além de não ser permitido a A causar qualquer dano físico à propriedade de B), então a tendência à queda da taxa de preferência temporal será perturbada, interrompida ou até mesmo invertida.

As violações dos direitos de propriedade – e o efeito que elas engendram sobre o processo de civilização – podem ser de dois tipos. Elas podem assumir a forma de atividades criminosas (incluindo negligência); ou podem assumir a forma de interferência governamental ou institucional.

A característica marcante das invasões criminosas dos direitos de propriedade é que tais atividades são consideradas ilegítimas ou injustas não só pela vítima, mas também pelos proprietários em geral (e, possivelmente, até mesmo pelos próprios criminosos). Portanto, considera-se que a vítima tem o direito de defender-se caso seja necessário (através da retaliação) e de punir e/ou exigir uma compensação do agressor.

O impacto do crime é duplo. Por um lado, a criminalidade diminui a oferta de bens da vítima (o apropriador/produtor/comerciante), sendo elevada, assim, a sua taxa efetiva de preferência temporal (supondo-se dado o seu padrão de preferência temporal). Por outro lado, à medida que as pessoas percebem o risco de danos futuros, elas realocarão os seus recursos. Elas construirão muros e cercas; instalarão fechaduras e sistemas de alarme; construirão ou comprarão armas; e contratarão serviços de proteção e de seguro. A existência do crime, portanto, implica um retrocesso no processo que conduz à queda da taxa de preferência temporal em relação às vítimas em questão, ocasionando gastos que, na perspectiva das vítimas reais e potenciais, poderiam ser considerados um desperdício caso não houvesse crime.

Dessa maneira, o crime – ou uma mudança em sua taxa – tem o mesmo tipo de efeito na preferência temporal que a ocorrência – ou a frequência – de catástrofes “naturais”. As inundações, as tempestades, as ondas de calor e os terremotos também reduzem a oferta de bens presentes das suas vítimas, aumentando, assim, a sua taxa efetiva de preferência temporal. E a percepção da alteração dos riscos de catástrofes naturais também conduz a realocações de recursos e a caros ajustes – como a construção de barragens, de sistemas de irrigação, de diques de contenção, de abrigos; ou como a compra de seguros por danos de um terremoto. Tais ajustes e realocações seriam desnecessários caso não existissem tais riscos naturais.

No entanto, mais importante do que isso, uma vez que as vítimas reais e potenciais estão autorizadas a se defenderem, a se protegerem e a se garantirem contra ambos os desastres sociais – os crimes e as catástrofes naturais –, o efeito destes sobre a preferência temporal são temporários e não sistemáticos. As vítimas reais pouparão ou investirão uma quantidade menor de bens em função do fato de estarem mais pobres. E as diferentes percepções dos riscos entre vítimas reais e potenciais moldam a direção (o sentido) das suas ações futuras. Porém, enquanto a proteção física e a defesa forem permitidas, a existência de desastres sociais ou de catástrofes naturais não implica que o grau de preferência temporal das vítimas reais ou potenciais – o grau da sua visão de longo prazo, da sua orientação para o futuro – será sistematicamente alterado. Depois de os prejuízos serem verificados e depois de as atividades serem redirecionadas, a tendência à queda da taxa de preferência temporal e o processo civilizatório retomarão o seu percurso anterior. Nesse ínterim, pode-se esperar que a proteção contra o crime e contra os desastres naturais receberá contínuo aperfeiçoamento.

As coisas, entretanto, mudam radicalmente – comprometendo permanentemente o processo de civilização – sempre que as violações dos direitos de propriedade assumem a forma de interferência governamental. A marca distintiva das violações governamentais do direito de propriedade privada é que, ao contrário das atividades criminosas, elas são consideradas legítimas não apenas pelos agentes do governo que se dedicam a elas, mas também pelo público em geral (e, em casos raros, até mesmo pela vítima). Assim, nessa situação, a vítima não pode legitimamente defender-se de tais violações.

A instituição de um imposto governamental sobre os bens ou os rendimentos viola os direitos de propriedade do produtor tanto quanto o roubo. Em ambos os casos, a oferta de bens do apropriador/produtor é diminuída contra a sua vontade e sem o seu consentimento. A moeda governamental – i.e., a criação de “liquidez” – não menos significa uma expropriação fraudulenta dos donos de propriedade do que as operações de uma gangue criminosa de falsificadores. Ademais, as regulações do governo acerca do que um proprietário pode ou não pode fazer com a sua propriedade – para além da regra de que ninguém pode causar danos físicos à propriedade dos outros e de que todas as trocas (comércio) uns com os outros devem ser voluntárias e contratuais – implicam uma “apropriação” da propriedade de alguém da mesma forma como o fazem os atos de extorsão, de roubo ou de destruição. Mas a tributação, a criação de “liquidez” perpetrada pelo governo e as regulações governamentais, ao contrário dos seus homólogos penais, são consideradas legítimas; e a vítima da interferência do governo, ao contrário da vítima de um crime, não tem o direito à defesa física e à proteção da sua propriedade.

Graças, então, à sua legitimidade, as violações governamentais dos direitos de propriedade afetam sistematicamente as preferências temporais individuais de forma diferente – e muito mais profunda – do que a criminalidade. Assim como a criminalidade, a interferência governamental nos direitos de propriedade privada reduz a oferta de bens presentes de uma pessoa, aumentando, assim, a sua efetiva taxa de preferência temporal. As agressões governamentais, em contraste com os crimes, ao mesmo tempo aumentam o grau de preferência temporal das vítimas reais e potenciais porque elas implicam também uma redução da oferta de bens futuros (uma redução da taxa de retorno sobre o investimento). O crime, por ser ilegítimo, ocorre apenas intermitentemente – o assaltante desaparece da cena com o seu saque e deixa a sua vítima sozinha, livre e em paz. Portanto, pode-se lidar com o crime através do aumento da demanda por produtos e serviços de proteção (em relação ao aumento da demanda por produtos e serviços que não sejam de proteção) a fim de restaurar ou até mesmo aumentar a futura taxa de retorno de investimento e fazer com que seja menos provável que o mesmo ou um outro assaltante possam ser bem-sucedidos uma segunda vez com a mesma ou com uma outra vítima. Em contraste, por serem legítimas, as violações governamentais dos direitos de propriedade são contínuas. O agressor não desaparece na clandestinidade, mas permanece ao redor; e a vítima não pode se armar contra ele, mas deve permanecer indefesa (pelo menos é o que, geralmente, dela se espera). Em consequência disso, futuras violações de direitos de propriedade, ao invés de se tornarem menos frequentes, institucionalizam-se. A taxa, a regularidade e a duração das futuras agressões aumentam. Ao invés de promoverem e melhorarem a sua proteção, as vítimas reais e potenciais das violações governamentais dos direitos de propriedade – como demonstrado pela sua contínua desproteção vis-à-vis os seus agressores – reagem a isso associando um risco permanentemente maior à totalidade da sua produção futura e ajustando sistematicamente para baixo as suas expectativas em relação à taxa de retorno de todos os investimentos futuros.

Competindo com a tendência à queda da taxa de preferência temporal, uma tendência oposta passa a surgir com a existência do governo. Ao reduzir simultaneamente a oferta de bens presentes e de (esperados) bens futuros, as violações governamentais dos direitos de propriedade não apenas elevam as taxas de preferência temporal (supondo-se dados os padrões), como também aumentam os padrões de preferência temporal. Em função de os apropriadores/produtores estarem (e virem a si próprios assim) indefesos contra futuras agressões por parte dos agentes do governo, a sua esperada taxa de retorno de ações produtivas e orientadas para o futuro (visão de longo prazo) é reduzida em todos os aspectos; em decorrência disso, as vítimas reais e potenciais tornam-se mais orientadas para o presente (visão de curto prazo).”

Em Ordem Espontânea: Da Importância de F. A. Hayek para uma Teoria Evolutiva Geral do Direito segundo os Princípios da Escola Austríaca, fiz as seguintes indagações:

“[…] Como incentivará a produção pela nulificação expropriatória dos seus frutos? Quais recursos despenderá à sustentação dos seus projetos senão os que procedem da extorsão (“socialização”)? E quais recursos extorque senão os que são produzidos pelos indivíduos? E como tais indivíduos se motivarão à produção estando preventivamente socializados (expropriados/tributados) todos os lucros que dela se fazem resultantes? […]”

Uma das muitas consequências econômicas da socialização dos frutos da virtude foi exposta em Por que no socialismo todos morrem de fome?:

“Ora, ninguém há de negar que um bem (um objeto útil, mais especificamente) é somente produzido porque o trabalhador que despendeu energia física e tempo na sua confecção espera extrair do seu uso ganhos suficientemente compensatórios aos custos envolvidos no processo. O indivíduo, portanto, apenas manterá o seu trabalho enquanto os lucros decorrentes dele forem apreciavelmente superiores aos custos. O que implica que o mesmo indivíduo cessará o seu trabalho a partir do momento em que o esforço necessário ao seu dispêndio exceder os ganhos oriundos da sua consecução.

Por conclusão, quando um indivíduo espera sempre ter seus bens coercitivamente expropriados por outrem, se sente desestimulado ao trabalho (ou seja, à produção) já que o ganho que extrairia do uso deles será, espera-se, anulados via força expropriatória.

A expropriação (estatal), assim, enquanto forma tipicamente soviética de socialização dos bens, incrementa custos totalmente artificiais aos custos naturais do trabalho (entre os quais está a possibilidade de morte, caracteristicamente inerente ao desentendimento quase inescusável das demandas do expropriador, e, com evidência, a necessidade de burlar os braços fiscalizatórios deste para manter um padrão de vida minimamente satisfatório ao atendimento das exigências fisiológicas humanas mais básicas).

Tal expropriação, nota-se, reduz os lucros da produção, uma vez que o produtor, ao qual atribui-se originalmente o logro dos referidos lucros, é, sob conjunturas socialistas, obrigado via coação a reparti-los com um que não participou em absolutamente nada com relação à obtenção dos mesmos (por indução, um não produtor).

O produtor, desse modo, é coativamente compelido a repartir os ganhos provenientes do seu trabalho com um não produtor enquanto tem de arcar com custos artificialmente elevados na proporção das demandas expropriatórias do agente coativo. A expropriação, em vista disso, por acrescer custos totalmente artificiais ao montante natural de custos relativos ao trabalho, e por reduzir forçadamente os lucros da produção com referência ao esforço necessário, desmotiva o produtor a prosseguir com seus ofícios. Ao curso do tempo, sob o socialismo, a produção de qualquer coisa cessará por inteiro, inevitavelmente, posto que os ganhos da produção são expropriados (socializados) muito para além do ponto no qual a atividade não produtiva (parasítica) se torna comparavelmente mais preferível que a produtiva (não parasítica).

Por conseguinte, a longo prazo, se tornará irrevogavelmente inviável até mesmo a existência parasitária do agente expropriador, já que se, afinal, os ganhos da produção são expropriados (socializados) até que a mesma cesse definitivamente por apresentar mais riscos judiciais que resultados reais compensatórios, donde o expropriador extrairá, então, o seu sustento? Em suma: como viverá o parasita ante a ausência do hospedeiro? É o ponto fundamental.

Trocando “expropriador” por “estado” ou “estatal” a conclusão torna-se ainda mais reveladora.

[…]

Ora, se uma pessoa que meramente finge estar trabalhando, sob o socialismo, tem as mesmíssimas condições de uma que trabalha arduamente, por que esta se manterá produtiva se pode simplesmente não trabalhar e ainda assim subsistir como se estivesse suando em labor? Se, em virtude do ideal igualitarista, se apagam compulsivamente as disparidades econômicas entre quem trabalha de modo árduo e quem finge trabalhar, aquele que antes trabalhava arduamente passará a fingir trabalhar. Se, de fato, absolutamente ninguém se impele à produção em função da nulificação dos seus frutos privativos, quais serão, afinal, os recursos socializados pelo estado? O estado não é o que se mantém pela predação das posses dos que produzem? Se ninguém produz, quais recursos o estado destinará à alimentação do povo? A resposta é um bombástico “nenhum!”.

A fome nada é se não o fruto mais cabal do socialismo.”

Em ¡Pobres hermanos!: Por que a Argentina está em crise?, complementarmente, frisei o que segue:

“[…] a extorsão é a antítese suma da civilização, visto que corrói predatoriamente o aparato produtivo capitalístico reduzindo a quantidade de bens presentes dispostos à poupança. A extorsão (principalmente a de natureza institucional (governamental/estatal)), portanto, por conta de muitas vezes vir a repetir-se ciclicamente, tende a aumentar a preferência temporal do indivíduo, visto que o mesmo, prevendo uma subtração forçosa dos seus bens, decidirá invariavelmente consumi-los o mais rápido possível de modo a aproveitar o valor presente dos seus bens referidos, uma vez que o valor futuro dos mesmos será, prevê, nulo, já que não possuem absolutamente nenhum valor os bens expropriados (despossuídos).

A extorsão, enquanto ato antieconômico, atrapalha o curso da civilização não tão-só por reduzir a quantidade de bens presentemente dispostos à poupança, mas, também, por inserir no homem uma tendência ao consumo imediatista e não à poupança.”

Senhores, o estado jamais esteve a pretender apartar do povo os seus mais maléficos vícios, mas a personificá-los em prol da banalização dos mesmos.

Ora, em Justiça Social: A Institucionalização do Mimimi, versei:

“É notório o fato de que o estado serve somente à coerção (espoliação) em prol dos seus, mas, para sustentá-la, deve gozar de uma roupagem ideológica que atordoe de alguma forma as manifestações defensivas dos espoliados.

[…]

Na monarquia, o rei era impelido a comedir muito cuidadosamente as suas políticas, já que as premissas justificadoras da sua pilhagem eram demasiadamente tênues. Mais especificamente, pelo fato de ser praticante e beneficiário único da espoliação sistemática real, o rei com frequência se via forçado a moderar a sua conduta parasitária.

[…]

No entanto, o que ocorre, pois, na democracia sobre a qual a “justiça social” impera tiranicamente? Ora, derrocar um estado monárquico totalitário é simples, uma vez que um espoliado, ávido em defender-se do totalitarismo, sob a monarquia, provavelmente contará com o apoio dos demais para derrubá-la, já que o povo é vítima, e não agente causador, da espoliação. E quando, porém, o povo for, simultaneamente, sujeito e objeto da espoliação, como na democracia (sistema da espoliação universal, como disse F. Bastiat)? Quem contará com o apoio do povo para derrocar terminantemente a espoliação sendo o mesmo um dos seus beneficiários? Quê povo se motivará com ardor à derrocada da espoliação tendo ele a possibilidade de usufruir de algumas das suas migalhas? Indo mais além: sendo o povo um dos que se beneficiam, mesmo de forma indubitavelmente parcial, da espoliação, não militará o mesmo favoravelmente ao aumento da espoliação por vias legais ignorantemente à forma não contraditória da lei, procurando incessantemente justificativas das mais variadas naturezas para o uso recorrente de tais vias em prol da consecução dos seus propósitos próprios?

“A solução para o problema da vulnerabilidade”, dizem os democratas e os adeptos da justiça social, “não configura o fim da espoliação, mas a possibilidade de os vulneráveis participarem ativamente da mesma! Universalize-a, já!”, e eis, por isso, a universalização (a abertura máxima) da espoliação, ou melhor, da possibilidade de influenciar, via voto e militância partidária, o ente que a perpetra. Não se extingue, assim, a possibilidade de a lei ser moldada lesivamente à propriedade, mas se generaliza a todos.

Na monarquia, o fato de a espoliação ser perpetrada apenas por um bobo com uma peça de metal na cabeça, tendo, portanto, uma abertura altamente limitada, fazia tal bobo comedir muito cuidadosamente a sua parasitagem. Sendo isso uma verdade, não seria a maximização da abertura da espoliação a suma ausência desse fator moderador?

[…]

[…] Há pessoas que sabem que o estado se justifica se lançando toscamente à supressão de vulnerabilidades que ele mesmo gera. O que elas, então, decidem fazer? Derrocar o estado? Derrocar a espoliação central? Não! Decidem esbanjar o quão vulneráveis elas são! “Ora, o estado não é o que se justifica suplantando vulnerabilidades?”, pensa elas, “Então, se eu conseguir efetivamente convencer os políticos de que as minhas vulnerabilidades (necessidades) pessoais são as mais urgentes, não conseguirei uma parcela significativa dos resultados dos seus espólios? Sim? Sim! Belo! Observe-me, papai estado! Veja o quão fraco e vulnerável sou! Veja o quão menosprezível e contemptível sou! Vê que necessito emergencialmente de ti! Veja o quão oprimido sou por essa modernidade tóxica e suja! Salve-me! Atente-se a mim! Proteja-me em seus membros… Veja prontamente o quão débil meu estado de saúde é! Ceda-me os seus serviços médicos gratuitos! Veja, também, o quão intelectualmente impotente sou! Necessito como ninguém dos seus ensinos, ó papai estado! Veja! Veja o quão indefeso estou em relação a essa contemporaneidade repressiva! Papaizinho estado, necessito da sua segurança! Veja o quão improdutivo economicamente sou! Ó excelsíssimo estado, não me incomodaria lançar minha língua rugosa suinamente às solas lamacentas das suas botas sujas para ter de ti a sua renda básica universal!”… E como é manifestada a justiça social atualmente? Senhores, da forma que segue: “Oh! Papai estado! Donde surgiu esse vírus? De que limbo resultou o coronavírus chinês? Não! Atente-se imediatamente à condição quebradiça do meu sistema imunológico, decorrente de incontáveis pizzas comidas, oriundas dos fornos altamente industrializados daqueles porcos capitalistas nojentos! Socorra-me, já! Observe o quão nítido é o tom ofensivo do meu pânico… Papaizinho estado! Ó! Faça pesar sobre a face dos seus opositores as suas focinheiras e as suas correias de lã para que possam finalmente ver o quão benévolo é ti, porque o meu medo causa-me feridas, e estas pedem a minha submissão ao seu fulgor inigualável!”…

Senhores, desculpe-me, mas, definitivamente, o autor não consegue interpretar a justiça social doutra forma senão pela que interpretou Larken Rose, em A Mais Perigosa Superstição, versando que a justiça social é o produto da infantilização do homem! Ora, não é infantil o homem que implora por recursos gratuitos não querendo assumir privativamente os custos dos seus erros práticos?

Os bebês animais, especialmente os mamíferos, evolutivamente, desenvolveram um mecanismo de alerta. Sempre quando se sentem em perigo, eles acionam uma espécie de alarme para notificar os seus pais de algum risco normalmente mortal. Nos humanos, esse alarme é chamado de “choro”, porém esse mecanismo de defesa, ao curso da vida, tende a tornar-se improfícuo, uma vez que o humano adquire, mais ou menos no final da adolescência, capacidades de sustentar-se e de angariar o que proposita, não mais tendo de recorrer ao auxílio dos seus pais.

Entretanto, como bem observou Larken Rose em seu livro magnífico, o conceito de justiça social constitui o prolongamento artificial e nocivo desse mecanismo de defesa primária até os níveis posteriores da existência humana.

O juspositivismo estatal permite a relativização da lei via decretos de políticos. Sob o império da justiça social, assim, ao invés de o indivíduo nutrir as suas competências produtivas e virtudes individualmente como o estândar de si próprio, o indivíduo termina por nutrir as suas competências demagógicas ávido em produzir leis explicitamente favoráveis ao alcance dos seus intentos pessoais em detrimento da lei não contraditória e da moralidade, isto é, termina por nutrir diligentemente a sua capacidade de lamber as botas do estado da forma mais bovina e desdenhável concebível.”

A passagem subsequente de Assim Falou Zaratustra finaliza rigorosamente o assunto do qual estamos tratando:

“Ai! Também em vossas almas grandes murmuram as suas sombrias mentiras! Aí eles advinham os corações ricos que gostam de se prodigalizar!

Sim; adivinha-vos a vós também, vencedores do antigo Deus. Saístes rendido do combate, e agora a vossa fadiga ainda serve ao novo ídolo!

Ele queria rodear-se de heróis e homens respeitáveis. A este frio monstro agrada-lhe acalentar-se ao sol da pura consciência.

A vós outros quer ele dar tudo, se adorardes. Assim compra o brilho da vossa virtude e o altivo olhar dos vossos olhos.

Convosco quer atrair os supérfluos! Sim; inventou com isso uma artimanha infernal, um corcel de morte, ajaezado com adorno brilhante das honras divinas.

Inventou para o grande número uma morte que se preza de ser vida, uma servidão à medida do desejo de todos os pregadores da morte.

O Estado é onde todos bebem veneno, os bons e os maus; onde todos se perdem a si mesmos, os bons e os maus; onde o lento suicídio de todos se chama “a vida”.

Vede, pois, esses supérfluos! Roubam as obras dos inventores e os tesouros dos sábios; chamam a civilização ao seu latrocínio, e tudo para eles são doenças e contratempo.

Vede, pois, esses supérfluos. Estão sempre doentes; expelem a bílis, e a isso chamam periódicos. Devoram-se e nem sequer se podem dirigir.

Vede, pois, esses adquirem riquezas, e fazem-se mais pobres. Querem o poder, esses ineptos, e primeiro de tudo o palanquim do poder: muito dinheiro!

Vede trepar esses ágeis macacos! Trepam uns sobre os outros e arrastam-se para o lodo e para o abismo.

Todos querem abeirar-se do trono; é a sua loucura — como se a felicidade estivesse no trono! — Frequentemente também o trono está no lodo.

Para mim todos eles são doidos e macacos trepadores e buliçosos. O seu ídolo, esse frio monstro, cheira mal; todos eles, esses idólatras, cheiram mal.

Meus irmãos, quereis por agora afogar-vos na exalação de suas bocas e de seus apetites? Antes disso, arrancai as janelas e saltai para o ar livre!

Evitai o mau cheiro! Afastai-vos da idolatria dos supérfluos. Evitai o mau cheiro! Afastai-vos do fumo desses sacrifícios humanos!

Ainda agora o mundo é livre para as almas grandes. Para os que vivem solitários ou aos pares ainda há muitos sítios vagos onde se aspira a fragrância dos mares silenciosos.

Ainda têm franca uma vida livre as almas grandes. Na verdade, quem pouco possui tanto menos é possuído. Bendita seja a nobreza!”

Em Imposto é Roubo: A Ética dos Lambedores de Botas, frisei:

“Os membros da fábrica de leis (estado) acham que são espécies superiores de deuses. A existência de Deus está em descrédito atualmente, porém, curiosamente, se uma pessoa qualquer porventura afirmar querer ser legisladora (a divina portadora do poder de alterar segundo o seu arbítrio a axiologia ética), a mesma seguramente não cairá em descrédito de pronto ante quem a ouvir. Ora, na condição hipotética de ter de obrigatoriamente louvar um deus, louvaria o Deus judaico-cristão e não o estado, pois o primeiro legislou duma só vez o universo e, após tê-lo concebido ao plano da existência como o conhecemos ao curso de sete dias, resolveu por deixá-lo inalterado e mantê-lo absolutamente imutável ao homem, enquanto o último, talvez conforme uma regra proveniente do ar ou do vácuo intergaláctico, sanciona deliberadamente, fazendo leis se tornarem opiniões e opiniões se tornarem leis.

[…]

A necessidade de subserviência aos parasitas governamentais, dizem os lambedores de botas mais equinos, decorre da inexorável existência de conflitos, sendo o estado, então, incontestadamente o único apto a solucioná-los de modo reto.

Ora, ninguém há de negar a existência de conflitos. Há conflitos. Todavia, o estado não objetiva solucioná-los minimamente, porém engrandecer-se, e o faz conferindo regalias legais àqueles que o enaltecem, aos lambedores de botas, mais especificamente. Logo, sob o estado, se, p. ex., A eventualmente vier a conflitar com B, a “solução” de tal conflito se dará desfavoravelmente à justiça e favoravelmente ao melhor lambedor de botas, ou seja, favoravelmente ao que se pôr mais de acordo com a legislação estatal em rejeição à axiologia ética objetiva.

A sociedade, assim, sob o estado, jamais evoluirá moralmente, i. e., nunca procurará desenvolver padrões axiologicamente deriváveis de soluções pacíficas aos conflitos existentes, mas será sistematicamente acostumada a lamber as botas do estado (em consequente repúdio à axiologia e, miseravelmente, à lógica), para que o estado mesmo, por intermédio do corpo estruturalmente multifacetado da sua trindade quase santa: poder executivo, legislativo e judiciário, proveja heroicamente a gratuita isonomia, beneficiando os lambedores de botas comparativamente mais dóceis, em detrimento dos lambedores menos suínos. A referida sociedade, conclui-se, será sistematicamente acostumada a averiguar o que os parasitas dizem ser lei e não o que é lei.”

Termina Nietzsche:

“Além onde acaba o Estado começa o homem que não é supérfluo; começa o canto dos que são necessários, a melodia única e insubstituível.

Além, onde acaba o Estado… olhai, meus irmãos! Não vedes o arco-íris e a ponte do Super-homem?”

Assim falava Zaratustra.”.

O estado, em suma, configura a revolta dos supérfluos contra os engenhosos, senhores!

É um monstro de mil olhos; ou a personificação do mal; ou supressão suma da tendência ao bem.

2 COMENTÁRIOS

  1. O “estado” não existe! O que existe é um grupo de indivíduos que monopolizam o uso da força como donos da sociedade e que são vistos de forma mistificada, como se tivessem algum direito excedente em relação aos demais para impor seus desmandos sobre o mundo. Claro… uma dessas perversões morais é a falácia igualmente mistificada de que a decisão da maioria “legitima” a ação desses grupos; a falácia do apelo a maioria como sendo uma “legitimação” de “ética.” O povo não sabe o que é etica, moral, muito menos direito. Confundem ideologia e o que eles acham que é bom para eles como se fosse um direito. Veja como a democracia é o caminho para a ditadura… A fórmula está sendo posta em prática hoje! um grupo de políticos e pseudo juízes como STF começa a usurpar todos os princípios, porém só uma parte da sociedade (que não está ideologicamente alinhada se opõe), assim o estado tem pelo menos garantia de que quase 50% da sociedade ou mais, vai ser passiva ideológica diante do avanço do totalitarismo e usurpação. Claro… estes idiotas úteis que são passivos devem achar que quando a ideologia deles usuparem todos os princípios éticos eles seram beneficiados no mundinho fantasioso que virá! A formula da ditadura usando a própria democracia é simples: 1) Crie um monte de privilégios para grupos vitimistas;
    2) Usurpe todos os princípios legais e constitucionais criando relativizações e torcendo intepretações da lei;
    3) Tenha certeza de que pelo menos quase metade da população esta ideologicamente enviezada;
    4) Destrua a parte “inimiga da população;”
    5) Imponha a tirania!

  2. Um dia sites como esse serão censurados. Devem buscar meios de manter online e ocultar os servidores e as pessoas envolvidas nos artigos. Sites como The Pirate Bay já fazem coisa assim a vários anos, através de ocultamento de servidores ao mesmo tempo que mantém o portal acessível a qualquer um na surface web padrão.

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