Prefácio à edição brasileira

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Em 2005 um grupo de criminosos cavou um túnel de 77 metros até o cofre do Banco Central em Fortaleza, CE, e furtou R$164 milhões, até então o maior roubo à banco da história do Brasil. A história do crime baseou um filme de 2011, Assalto ao Banco Central, e foi contada em maiores detalhes no livro Toupeira: A História Do Assalto Ao Banco Central e agora em uma série documental da Netflix 3 Tonelada$: Assalto ao Banco Central. Mais do que o engenhoso e bem executado plano do roubo, o que cativa a atenção do público na história é tudo o que se seguiu após o roubo; uma trama onde os ladrões foram intensamente perseguidos por outros bandidos e policiais corruptos, sequestrados, mortos, até que após uma longa e árdua investigação da Polícia Federal, todos os que ainda estavam vivos foram presos e condenados, com exceção de um que conseguiu se livrar da justiça e dos outros bandidos.

O trabalho da polícia foi de fato mais engenhoso e bem executado que o dos ladrões, como mostra o resultado final da história. Montando o organograma da quadrilha e utilizando métodos forenses, técnicas e procedimentos investigativos e a experiência de agentes especializados, nenhum fato relevante ao caso deixou de ser descoberto. Após anos de empenho e dedicação pessoal, os policias conseguiram finalmente alcançar a “justiça” que pretendiam. No entanto, um crime muito maior passou completamente desapercebido por todos estes supostos agentes da lei. Um crime de fraude envolvendo o Banco Central que está sendo cometido há décadas e já roubou não alguns milhões, mas trilhões de suas vítimas.

A primeira coisa que faltou para a polícia foi apurar devidamente o objeto do roubo. O que foi roubado? A resposta deles foi “dinheiro”. Porém, aquelas 3 toneladas de notas de 50 reais não são dinheiro. Uma investigação da ciência econômica poderia fornecer aos policiais a conclusão que a moeda fiduciária emitida monopolisticamente pelo Banco Central e imposta coercivamente pela lei de curso forçado é dinheiro falso. O Banco Central realmente teve suas notas roubadas, mas se eu estivesse imprimindo dinheiro falso na minha garagem e fosse roubado, não seria função da polícia tentar recuperar minhas notas e sim me prender e acabar com minha produção de dinheiro falsificado. Mas neste caso do assalto ao Banco Central, a polícia ajudou o falsificador a recuperar parte de seu dinheiro falso e nada fez para dar fim a sua falsificação.

Na verdade é muito mais fácil descobrir o que é dinheiro do que desvendar todos os detalhes do complexo assalto ao Banco Central de Fortaleza e identificar, descobrir o paradeiro, perseguir e prender todos os envolvidos. As informações sobre dinheiro estão todas disponíveis, e basta dedicar algum tempo de leitura que a origem do dinheiro[1] se esclarece. A primeira coisa que precisamos saber para desvendar um alegado caso de roubo de dinheiro é saber o que é dinheiro. Porém, ao descobrir o que é dinheiro acontece uma reviravolta no caso, e a investigação necessariamente passa ser na direção de descobrir o que o governo fez com o nosso dinheiro?[2] É como se a polícia fosse chamada para investigar um roubo de algumas joias de uma tradicional joalheria e descobrisse que todas as joias que essa joalheria comercializou desde sua inauguração eram falsas. Em ambos os casos, a suposta vítima automaticamente deveria se transformar em réu.

Efetivamente, a partir do momento que os investigadores do assalto ao Banco Central entendessem o que é dinheiro e qual a natureza de um Banco Central, um crime de proporções bíblicas se apresentaria diante deles. Um esquema fraudulento descomunal de trocar algo por nada que possui beneficiários e prejudicados, perpetradores e vítimas que podem ser identificados. Um crime que é ocultado sistematicamente por um conluio entre banqueiros, governos, acadêmicos e imprensa que visa descredibilizar os poucos que o denunciam, como os economistas austríacos. O Instituto Rothbard tem denunciado este crime desde a inauguração de seu website em 2008 através de seus muitos livros e artigos sobre o tema, como este do economista Thorsten Polleit, que nos conta que

    Por toda a história, bancos centrais foram criados, antes de mais nada, para encher os cofres do governo. Para aumentar os meios financeiros do rei ou dos governantes eleitos através de um esquema inflacionário – geralmente muito sofisticado e muito insidioso para a maioria das pessoas compreender. Bancos centrais são decisivos para colocar o governante – ou a classe dominante – em uma posição em que possam saquear o povo em grande escala e, através da redistribuição da pilhagem, tornar um crescente número de pessoas financeiramente e socialmente dependentes.[3]

Existe um mito difundido pelo conluio de uma imaculada concepção do Banco Central, como se diante de crises sistêmicas do capitalismo de livre mercado um grupo de estudiosos abnegados tivesse se reunido para criar mecanismos que colocassem em prática uma teoria econômica para sanar o problema recorrente inerente a livre operação da atividade bancária e de criação de moedas. Mas isso nunca existiu; a história real é bem diferente. Trata-se de uma história de interesses bem definidos orquestrando formas de aumentar seus ganhos em detrimento de outros. Em outro artigo Guido Hülsmann nota que os

  bancos centrais não operam sua distribuição de forma neutra. Em nossos dias, em que ano após ano os bancos centrais aumentam a oferta monetária em centenas de bilhões de euros ou dólares, há a geração de enriquecimento do setor público e bancos comerciais que são regularmente os primeiros utilizadores do novo dinheiro. …  [um] enorme enriquecimento de uns à custa dos outros.[4]

Este insight de Hülsmann forneceria a investigadores interessados uma pista de por onde começar a seguir o dinheiro. Contudo, a exorbitante transferência direta de riquezas de produtores para não produtores não é o único crime destes falsários – a quantidade do saque é tão extraordinária que os governos modernos já são sustentados por este esquema de falsificação e todos os outros impostos poderiam ser abolido. Ademais, no decurso deste desvio, a manipulação monetária e das taxas de juros desencadeia os ciclos econômicos, induzindo investimentos errôneos durante a expansão e provocando uma inevitável quebradeira generalizada na recessão. Ou seja, prejuízo, miséria, sofrimento e desespero para o povo, enquanto os bilionários ficam cada vez mais bilionários. Hans-Hermann Hoppe delata de forma clara a falcatrua:

   Contanto que o estado lhes conceda o privilégio de realizar falsificações sobres as notas estatais já falsificadas, sob um regime de atividade bancária de menos de 100% de reservas, com um banco central funcionando como um falsificador de última instância, os bancos podem ser facilmente persuadidos a considerar o estabelecimento de tal sistema monetário como seu objetivo final e como uma panaceia universal.

Economicamente, essa coalizão entre estado – como parceiro dominante – e o sistema bancário – como seu afiliado – resulta em inflação permanente (limitada apenas pelo imperativo de não exceder-se e causar uma destruição de todo o sistema monetário), expansão creditícia e ciclos de expansão-retração recorrentes e em redistribuição de riqueza e renda ininterrupta e regular em favor do estado e dos bancos.

Ainda mais importante, entretanto, são as implicações sociológicas dessa aliança: com a sua formação, uma classe dominante cujos interesses estejam intimamente ligados aos do estado é estabelecida dentro da sociedade civil. Por meio dessa cooperação, o estado pode agora estender seu poder de coerção a praticamente todas as áreas da sociedade.[5]

E Murray Rothbard conclui que

   a intromissão do governo no âmbito monetário não apenas trouxe ao mundo uma tirania nunca antes vista, como também gerou o caos em vez da ordem.  Essa intromissão fragmentou destrutivamente o pacífico e produtivo mercado mundial, fazendo com que o comércio e os investimentos fossem tolhidos e obstruídos por uma miríade de restrições, controles, taxas de câmbio artificiais, colapsos monetários etc. A intromissão ajudou a produzir guerras ao transformar um mundo de relações pacíficas em uma selva de blocos monetários em constantes desavenças e guerras cambiais, o que estimulou o protecionismo e dificultou o comércio mundial.[6]

De fato, Rothbard foi o maior delator do assalto do Banco Central da história. Durante décadas ele escreveu inúmeros artigos, proferiu palestras e publicou livros denunciando todo o esquema. Em um desses livros Rothbard monta todo o caso contra o Banco Central americano; o título do livro é precisamente “O Caso contra o Banco Central americano” (The Case Against the Fed, traduzido e publicado recentemente no Brasil com o título Pelo fim do Banco Central). Todavia, foi em outra obra que o inspetor Murray fez um trabalho investigativo ainda mais espetacular do que o realizado pela polícia brasileira no assalto de Fortaleza. Em As origens do Banco Central americano, Rothbard vai muito além da teoria e apura o nome dos envolvidos e suas responsabilidades nos atos criminosos. Seu relato aprofundado que aponta a participação dos implicados poderia ser desmembrado em um organograma policial que preencheria todos os metros quadrados da parede de uma delegacia, com três elementos no topo: os interesses de Morgan, Rockfeller e Kuhn, Loeb.

Assim como a polícia brasileira fez no caso do furto das notas falsas do Banco Central de Fortaleza, Rothbard também não deixa nenhum fato relevante ao caso sem ser esclarecido, com sua investigação alcançado os primórdios de um incipiente movimento em prol da criação de um banco central nos Estados Unidos. Após anos de agitações e tentativas malfadas escrutinadas por Rothbard neste ensaio, os interesses da elite financeira conseguiram se aproveitar de uma crise, o Pânico de 1907, para consolidar de vez a ideia de um banco central na cabeça das partes interessadas:

   Muito rapidamente após o pânico, a opinião de banqueiros e empresários se consolidou em prol de um banco central, uma instituição que poderia regular a economia e servir como credor de última instância para salvar os bancos de problemas. Os reformadores agora enfrentavam uma dupla tarefa: elaborar os detalhes de um novo banco central e, mais importante, mobilizar a opinião pública a seu favor. (pág. 176)

Com banqueiros e empresários na mesma página, o próximo passo “foi conquistar o apoio dos acadêmicos e especialistas do país. A tarefa foi facilitada pela crescente aliança e simbiose entre a academia e a elite dominante.” (pág. 176) Uma das armas utilizadas nesta conquista foi a realização de simpósios que divulgariam ideias preconcebidas pelos grupos de interesse, que colocavam a culpa da crise na inelasticidade da moeda e na concorrência dentro do sistema bancário:

   …. o Pânico de 1907 foi “uma das grandes calamidades da história” – o resultado de um sistema bancário americano descentralizado e competitivo, com 15.000 bancos competindo vigorosamente pelo controle das reservas de dinheiro. O terrível é que “cada instituição está sozinha, preocupada em primeiro lugar com sua própria segurança, e não contendo esforços para acumular reservas sem levar em conta” o efeito de tais ações em outras instituições bancárias.

Esse sistema atrasado deve ser mudado, para seguir o exemplo de outras grandes nações, onde um banco central é capaz de mobilizar e centralizar reservas e criar um sistema monetário elástico. Colocando a situação em termos virtualmente marxistas, Vanderlip declarou que o poder estrangeiro e externo do mercado livre e competitivo deve ser substituído pelo controle central seguindo princípios bancários modernos e supostamente científicos. (pág. 180)

Com a nova profissão de acadêmicos especialistas à bordo – pois vantagens também lhes fora oferecida – o passo seguinte era moldar a opinião pública, e Rothbard mostra como o conluio usou organizações para esta empreitada como a Comissão Monetária Nacional. Em sua investigação Rothbard encontrou até uma confissão de um membro deste consórcio, o jornalista “Sereno S. Pratt, do Wall Street Journal. . . . que praticamente admitiu que o objetivo da comissão era sobrecarregar o público com uma suposta expertise e, assim, “educa-lo” para apoiar a reforma bancária.” (pág. 184)

Após alguns anos de agitação, o objetivo da quadrilha de fraudadores estava próximo. O Dr. Jekyll estava prestes a elaborar a fórmula da poção que criaria seu monstro:[7]

   Com a conferência monetária de Nova York terminada, agora era hora de Aldrich, cercado por alguns dos mais altos líderes da elite financeira, se isolar e elaborar um plano detalhado em torno do qual todas as partes do movimento do banco central poderiam se unir. . . . Em 22 de novembro de 1910, o senador Aldrich, com um punhado de companheiros, partiu em um vagão particular de Hoboken, Nova Jersey para a costa da Geórgia, onde pegaram um barco até um retiro exclusivo, o Jekyll Island Club. . . . Os conferencistas trabalharam durante uma semana inteira em Jekyll Island para elaborar o rascunho do projeto de lei do Federal Reserve. . . . [Nestas] reuniões, os seis homens forjaram um plano para um banco central, que acabou se tornando o projeto de lei Aldrich. (pág. 204)

E claro que Rothbard conclui a investigação entregando os cúmplices desta facção criminosa:

   A elite do poder financeiro agora tinha seu próprio projeto de lei. O significado da composição da pequena reunião deve ser enfatizado: dois homens de Rockefeller (Aldrich, Vanderlip), dois Morgans (Davison e Norton), um de Kuhn, Loeb (Warburg) e um economista amigo de ambos os campos (Andrew). (pág. 205)

Expus aqui brevemente apenas alguns pontos dessa fascinante história de detetive que esmiuça muito mais: as pretensões, frustrações e sucessos do consórcio; suas artimanhas para minar os genuínos padrões prata e ouro de colônias conquistadas após a vitória na Guerra Hispano-Americana e colocar em seu lugar o padrão divisas-ouro, assim como espalhar esse imperialismo monetário pelo resto do mundo; a vida de personagens intrigantes como o jornalista financeiro Charles A. Conant, cuja carreira está intimamente ligada ao movimento pelo banco central; e muito mais, pois Rothbard detalha até o grau de parentesco de ocupantes de posições supostamente imparciais com a elite financeira.

A obra do inspetor Murray é um verdadeiro inquérito policial histórico que pode ser usado em um tribunal privado como peça de acusação contra a elite dominante, e usada para ajudar a traçar seus desdobramentos até os dias atuais, o que serviria para ajudar a colocar muitos fraudadores na cadeia e desmantelar seu esquema fraudulento centenário. Logicamente que para isso precisaríamos de uma polícia privada agindo puramente no interesse da Justiça, já que a polícia estatal jamais iria morder a mão que a alimenta. A polícia estatal existe especificamente para proteger o Estado e a elite que o controla. Quando a Polícia Federal se empenhou arduamente para desvendar o assalto ao Banco Central, ela se limitou a impor a obediência a uma legislação que foi redigida por políticos para manter seu esquema de desvio de riqueza. Sua ação não tem nada a ver com cumprimento da Lei verdadeira e da busca por Justiça. O livre mercado tende ao equilíbrio. Isto quer dizer que o lucro de diferentes áreas tende a se nivelar. Quando temos no Brasil um punhado de bancos com lucros que ultrapassam uma centena de bilhões, isso é evidência de que algo está errado, e deveria despertar o início de uma investigação de cartel.

Porém, realisticamente o máximo que podemos esperar para um futuro próximo é que surja algum investigador libertário da história e desvende o conluio por traz da criação do Banco Central do Brasil, uma instituição que vem assaltando bilhões da riqueza dos produtores brasileiros, transferindo o esbulho para o governo e a elite bancária cartelizada. Por fim, deixo aqui um episódio obscuro que poderia servir como ponto de partida desta apuração. No início do ano 2000, Cristiano Chiocca, atualmente presidente do Instituto Rothbard, era um jovem recém formado em economia, entusiasta do liberalismo, que descobriu que o economista Roberto Campos daria uma palestra na sede da Folha de São Paulo no centro de São Paulo. Ele lá compareceu com alguns livros debaixo do braço de autoria de Campos para serem autografados. Com o liberalismo em baixa desde as privatizações de FHC, realmente não era esperado um público muito grande. Todavia, Cristiano também não esperava o que encontrou. Na plateia estavam somente ele, duas outras pessoas que chegaram juntas após o início e mais um petista que fez uma pergunta e foi embora no meio da palestra. Os outros dois espectadores que acompanharam a palestra de Campos até o final eram nada menos que Moise e Joseph Safra, que pareciam estar prestando reverencia ao já idoso especialista teórico que ajudou a cimentar seu império bancário ao criar o Banco Central. Campos faleceria no ano seguinte. Certamente Rothbard iria se deleitar com esse pormenor e puxar dele um fio em um organograma completo de culpados.

 

Fernando Fiori Chiocca

São Paulo, 13 de junho de 2022

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Notas

[1] Carl Menger, A origem do dinheiro, (1892), disponível na biblioteca on-line do Instituto Rothbard.

[2] Murray N. Rothbard, O que o governo fez com o nosso dinheiro?, Instituto Rothbard.

[3] Thorsten Polleit, “Banco Central = injustiça social”, artigo publicado no website do Instituto Rothbard.

[4] Jörg Guido Hülsmann, “Novo Mundo, Novo Dinheiro”, artigo publicado no website do Instituto Rothbard.

[5] Hans-Hermann Hoppe, “Atividade bancária, Estados-Nações e política internacional: uma reconstrução sociológica da ordem econômica presente”, artigo publicado no website do Instituto Rothbard.

[6] Murray N. Rothbard, O que o governo fez com o nosso dinheiro?, Capítulo III, Instituto Rothbard.

[7] Dr. Jekyll é o personagem do livro O Médico e o Monstro, de 1886. No livro o Dr. Henry Jekyll inventa uma poção que ele mesmo toma e o transforma em uma criatura horrorosa e sem escrúpulos, o Sr. Hyde.

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