Teoria Austríaca da Moeda

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[Extraído do livro Curso Básico de Escola Austríaca]

No princípio, havia o escambo. Os indivíduos realizavam apenas trocas diretas, isto é, mercadoria por mercadoria. Então, para que uma troca fosse realizada, era necessário o incurso de uma dupla coincidência de desejos, raro acontecimento em que o produto que um indivíduo quer é justamente o que o outro indivíduo tem a oferecer e vice-versa.[1]

Desse modo, digamos que A tivesse a seu dispor muitos peixes, e B muito tecido. Mas A não quer tecidos, e sim leite, e B não quer peixes, e sim madeira. Nesse caso, nenhuma troca entre eles poderia acontecer. Ambos teriam de realizar uma outra troca para obter aquilo com que comprariam o que realmente desejam. Por exemplo, A teria que encontrar alguém que quisesse trocar leite por alguns peixes, e B teria de encontrar alguém que quisesse trocar madeira por algum tecido. Agora imagine que A encontrou alguém que, embora dispusesse de bastante leite, não queria peixe algum, e sim algodão. A teria que primeiro encontrar alguém que tivesse algodão e quisesse trocá-lo por alguns peixes, para só então voltar ao indivíduo anterior e obter o que inicialmente desejava, isto é, o leite. Se até mesmo a exposição desse procedimento é complicada e enfadonha, imagine realizá-lo na prática.

No entanto, ainda nesse contexto, com o passar do tempo surgirão mercadorias que serão mais facilmente trocadas por outras, e essas assumirão aos poucos o papel de meios de troca. Seriam essas as mercadorias mais comercializáveis ou vendáveis, e dentre essas uma será naturalmente selecionada como o melhor meio de troca disponível, podendo ser trocado por qualquer outro bem no mercado. Foi assim que se deu, segundo o brilhante raciocínio de Carl Menger, o surgimento do dinheiro.[2] Até o advento dessa tese, acreditava-se que a instituição do dinheiro nascia de lei ou convenção, como supuseram Platão e Aristóteles.[3] Na realidade, o dinheiro, assim como a linguagem, trata-se de um fenômeno que surge naturalmente na sociedade, por intermédio daquilo que Hayek e seus seguidores chamariam de “ordem espontânea”.[4]

Solucionado o problema da origem do dinheiro, restava ainda solucionar o problema da origem do seu valor, o qual sempre levava a um raciocínio circular que ficou conhecido como “problema da circularidade” ou “círculo austríaco”. Sucedia que o poder de compra do dinheiro dependia do quanto as pessoas o valorizavam, e as pessoas o valorizavam justamente de acordo com o seu poder de compra, de modo que se ficava sem saber o que causava o quê. Em outras palavras, a demanda por dinheiro dependia do seu preço, mas o seu preço também dependia da sua demanda. O que viria em primeiro lugar?

Foi Mises, em 1912, no livro ainda a ser traduzido para o português A Teoria da Moeda e do Crédito, que resolveu esse problema aparentemente insolúvel, com o que se convencionou chamar de teorema da regressão ou teorema regressivo da moeda. Diz esse teorema que o valor que o dinheiro tem hoje deriva do poder de compra que ele tinha ontem. “De acordo com este teorema”, dirá Huerta de Soto,

a procura por moeda é determinada, não pelo poder aquisitivo de hoje (o que implicaria o referido raciocínio circular), mas antes pelo conhecimento que os agentes formam baseando-se na sua experiência sobre o poder aquisitivo que a moeda teve ontem. Por sua vez, o poder aquisitivo de ontem é determinado por uma procura por moeda que se formou tendo por base o conhecimento existente anteontem relativo ao seu poder aquisitivo. E assim sucessivamente, até chegar àquele momento da história no qual, pela primeira vez, uma determinada mercadoria (ouro ou prata) começou a ter também procura como meio de troca. Constata-se, portanto, que o teorema regressivo da moeda não é senão uma aplicação retroativa da teoria de Menger sobre o aparecimento evolutivo da unidade monetária.[5]

Tendo-se compreendido a natureza da moeda e a origem do seu valor, foi possível rejeitar a noção de “neutralidade da moeda”, segundo a qual o acréscimo ou a redução da quantidade de moeda na economia não afetaria os preços ou a estrutura de produção. Os preços, de acordo com essa ideia, subiriam ou desceriam proporcionalmente ao acréscimo ou decréscimo da quantidade de moedas na economia. Contudo, essa tese cai por terra se olharmos a questão mais detidamente.

Consideremos, em primeiro lugar, o caso fantástico de que a quantidade de moeda suba concomitante e igualmente nas contas bancárias de todos os indivíduos, tal como ocorre no “modelo do Anjo Gabriel” proposto por Rothbard.[6] Nesse caso, haveria um acréscimo de, digamos, 20% na quantidade de moeda na economia, sendo distribuído igualmente o novo dinheiro. Os economistas neoclássicos diriam, diante dessa hipótese, que o “nível geral de preços” também subiria 20%. Todavia, mesmo nesse cenário improvável, os preços sofreriam variações distintas, em razão das diferentes escalas de preferência dos indivíduos. Isso porque, para um indivíduo, mais dinheiro significa mais roupas; para outro, mais bebidas; para um terceiro, mais poupança; e assim por diante, de modo que o lançamento arbitrário de novas moedas na economia produziria inevitáveis deformações em sua estrutura.

Em segundo lugar, quando dinheiro novo entra na economia, não é igualitariamente que ele é distribuído, como supõe o modelo hipotético do Anjo Gabriel. No mundo real, o novo dinheiro entra na economia através de um lugar específico, favorecendo aqueles que o recebem primeiro em detrimento daqueles que o recebem por último. Conforme bem elucida o professor Ubiratan Iorio:

Quando o Banco Central ou os bancos comerciais expandem a moeda e o crédito, o dinheiro novo assim criado é gasto, inicialmente, em bens e serviços específicos. As demandas por esses produtos sobem em relação às demandas dos demais, o que aumenta seus preços relativamente aos demais preços. À medida que o dinheiro novo espalha-se pela economia, outras demandas aumentam e, portanto, outros preços também aumentam. A riqueza e a renda se redistribuem, em favor daqueles que receberam a moeda nova no início do processo e em detrimento dos que só passaram a recebê-la nos estágios posteriores. Ocorrem, portanto, duas modalidades de alterações de preços relativos: a primeira é esta redistribuição de rendas dos últimos para os primeiros receptores do dinheiro novo, que ocorre durante o processo inflacionário e a segunda são as mudanças permanentes na riqueza e na renda que continuam a se verificar mesmo depois que a moeda nova já se tenha espalhado por toda a economia.[7]

Desse modo, ceteris paribus, um acréscimo de dinheiro novo na economia gera uma redistribuição de riqueza daqueles que receberam o dinheiro por último para aqueles que o receberam primeiro. Trata-se, com efeito, da maior e mais sofisticada forma de fraude e espoliação já concebida pelo homem, uma vez que com ela se subtrai a maior quantidade de riqueza com o menor impacto direto na percepção das vítimas – conseguindo-se inclusive convencer as próprias vítimas de que essa falsificação de dinheiro[8] é algo desejável.

Essa é, na realidade, a explicação austríaca para o fenômeno da inflação. Para a Escola Austríaca, a inflação não é o aumento dos preços, e sim a expansão monetária artificial, com a consequente diminuição do valor da moeda. Desse modo, não são as coisas que passam a valer mais, mas o dinheiro que passa a valer menos, por ter sido lançado na economia sem o devido lastro.

Entre o austrianismo há duas famosas propostas de solução contra essa sutil modalidade de roubo. A primeira, sugerida por Mises, é ancorar a moeda no padrão-ouro, de modo que a quantidade de dinheiro circulando na economia corresponda exatamente à quantidade de ouro a que esse dinheiro faz referência. A segunda, elaborada por Hayek, é chamada de “desnacionalização da moeda”, pela qual várias moedas diferentes concorreriam no mercado, e aquelas que fossem mais eficientemente administradas seriam naturalmente escolhidas como meios comuns de troca.[9]

Existe ainda uma terceira proposta que, embora pareça querer nos ludibriar, possui muitos adeptos e merece ser mencionada. Essa terceira proposta, concebida fora da Escola Austríaca, sugere conceder total independência ao Banco Central, o que equivaleria, no dizer de Ubiratan Iorio, a “separar a política monetária da política fiscal”.[10] Parece querer nos ludibriar porque, na prática, as relações de poder e interesse continuariam a influenciar as decisões do Banco Central mesmo que uma lei bem escrita lhe assegurasse completa autonomia. Não é assim, afinal de contas, que se faz política? Além disso, uma vez que um grupo desfrute do monopólio da cunhagem de moeda, o que o levaria a não abusar desse poder tanto quanto lhe for possível?

Por fim, ficaria incompleta nossa análise da inflação sem uma análise do seu oposto complementar: a deflação. Segundo Guido Hülsmann, embora os austríacos tenham desde sempre assumido uma postura radicalmente contra a inflação, nenhum deles chegou a defender abertamente o seu contrário, a deflação, a não ser Hans Sennholz.[11] Mesmo Rothbard, um dos maiores teóricos modernos da deflação, no entender de Hülsmann, apenas a admitiu enquanto parte do processo de reajustamento econômico que deve se seguir a uma crise inflacionária. Na verdade, é praticamente unânime entre os economistas a rejeição do processo deflacionário.

Para onde quer que olhemos, a deflação é uniformemente apresentada como algo ruim, e cada escritor se apressa em mostrar a luta contra a deflação como o mínimo a se fazer por um estadista. Economistas que em geral não conseguem concordar em nenhum outro assunto estão felizes em encontrar terreno comum na condenação sincera da deflação.[12]

Segundo Guido Hülsmann, a quantidade em si de dinheiro na economia é irrelevante. Havendo-o pouco ou em grande quantidade, em ambos os casos será possível utilizá-lo para comprar e vender bens e serviços. A inflação (aumento na quantidade de dinheiro) e a deflação (diminuição na quantidade de dinheiro) não afetam a riqueza total da sociedade, mas sim a distribuição dessa riqueza.[13]

Porém, diferentemente da inflação, que gera uma distorção na estrutura da demanda, a deflação gera uma mudança na estrutura da propriedade: “Empresas financiadas por crédito”, dirá Hülsmann, “vão à falência porque, com um nível de preços mais baixo, não podem mais pagar os créditos que assumiram sem terem previsto a deflação”.[14] Assim, estando mais baixos os preços em geral, o lucro monetário dessas empresas também diminui, ao passo que o valor nominal das dívidas contraídas antes da deflação permanece o mesmo. A falência que se segue engendra uma mudança de propriedade das mãos dos falidos para os novos proprietários, os quais poderão gerir as empresas já a partir dos novos preços deflacionados. Houve, por esse modo, uma redistribuição de propriedade.[15]

Isso não obstante, Hülsmann enfatiza que há uma importante diferença entre os dois processos analisados. Na inflação, a riqueza é redistribuída das mãos de pessoas anônimas para as mãos de outras pessoas anônimas, enquanto que na deflação alguns indivíduos determinados vão à falência e transmitem sua propriedade para outros indivíduos determinados.[16] Em ambos os casos a quantidade total de riqueza na sociedade não é alterada, mas, ao contrário do que ocorre na deflação, em que os ganhadores e perdedores são facilmente identificáveis, na inflação procede-se a uma redistribuição sub-reptícia de riqueza, tornando-a, no dizer de Hülsmann, “um meio perfeito para a exploração de uma população através de suas (falsas) elites”.[17] Hülsmann finaliza seu ensaio sobre a deflação afirmando que essa é a única política monetária compatível com a restauração e manutenção de uma sociedade livre.[18]

 

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Notas

[1] Hoppe, “Atividade bancária, Estados-Nações e política internacional: uma reconstrução sociológica da ordem econômica presente”. Disponível em: < https://rothbardbrasil.com/atividade-bancaria-estados-nacoes-e-politica-internacional-uma-reconstrucao-sociologica-da-ordem-economica-presente/>.

[2] Carl Menger, A Origem do Dinheiro.

[3] Idem.

[4] Iorio, Ação, Tempo e Conhecimento, p. 126.

[5] Huerta de Soto, A Escola Austríaca, p. 94.

[6] Iorio, Ação, Tempo e Conhecimento, p. 130.

[7] Iorio, idem, p. 131.

[8] Rothbard, Homem, Economia e Estado, p. 750.

[9] Iorio, idem, p. 132.

[10] Iorio, idem, p. 132.

[11] Jörg Guido Hülsmann, Deflation and Liberty, p. 13.

[12] Idem, pp. 14-15, em tradução livre.

[13] Idem, pp. 24-24.

[14] Idem, p. 26.

[15] Idem, p. 27.

[16] Idem, p. 27.

[17] Idem, p. 27.

[18] Idem, pp. 41.

 

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