Sem dúvida, o debate acadêmico que mais excita grupos ideológicos rivais é a questão da desigualdade de renda brasileira.
Presencie um debate qualquer entre os áulicos e tudo que verá serão efusões populistas sobre o papel do estado como “agente promotor da igualdade social” e apelos lacrimosos ao confisco da propriedade alheia como instrumento justo de “reparação social”. Muita espuma e nenhum resultado concreto.
Segundo os ilustres, os principais fatores que geraram a ampla disparidade de renda no Brasil são: educação, distribuição de oportunidades, características natas dos indivíduos, fatores raciais, fatores geográficos, fatores culturais, além de, obviamente, a inação do estado.
Identificado esses fatores, deita-se uma logorréia sobre estarmos em um “equilíbrio Pareto-inferior”, onde uma grande desigualdade educacional gera uma desigualdade de renda, que, por sua vez, perpetua a desigualdade de poder político, que, por sua vez, reforça e reitera a desigualdade de oportunidades e resultados educacionais. Ufa!
No fim, o remédio é o mesmo: só o estado salva.
É claro que não estou dizendo que toda a massa cinzenta universitária que está sendo queimada na produção das centenas de trabalhos acadêmicos anuais sobre “injustiça social” esteja sendo queimada em vão. Tampoucoestou insinuando que todas as conclusões estão erradas e que só o que vou falar aqui é o certo. Nada disso. Porém, ao ver todos esses trabalhos acadêmicos enunciando os fatores geradores da desigualdade brasileira, algo sempre perturba: “Cadê a inflação?”
Quase nunca se menciona o papel fundamental que a inflação teve e ainda tem — em qualquer lugar do mundo — na concentração de renda e nas desigualdades sociais.
Não que a desigualdade de renda em si seja algo ruim e que deve ser evitado. Muito pelo contrário. Em uma sociedade livre, a desigualdade de renda é algo inevitável. Ela é reflexo do mérito individual. É resultado do esforço. Sei perfeitamente bem tratar-se de um clichê, mas o que de fato faz as pessoas ascenderem na vida é disciplina, sobriedade, comprometimento e princípios. Trabalho duro. Aquele que tem essas características vai decolar; aquele que não tem, vai invejar.
E tentar coibir essa disparidade com o intuito de tomar dos mais capazes para transferir aos menos é simplesmente tirania. Uma sociedade que privilegie a igualdade em detrimento do mérito não pode ser livre. É por isso que o mérito sempre deve vir antes da justiça, por mais gritaria que isso possa gerar. Uma sociedade baseada no mérito se desenvolve; uma baseada exclusivamente na justiça é uma incógnita, até porque a definição de justiça sempre estará, em última instância (infelizmente), nas mãos de burocratas com interesses próprios.
A prova acachapante do totalitarismo e da inveja desses indivíduos que gritam contra a disparidade de renda pode ser percebida em sua metodologia de debate: eles raramente sugerem políticas voltadas exclusivamente para o aumento da renda dos mais pobres. Tudo o que eles querem é achar meios de diminuir a distância entre pobres e ricos. O que significa que, no extremo, eles preferem uma situação onde os pobres fiquem na mesma e os ricos empobreçam (havendo portanto uma diminuição da desigualdade) a uma situação onde os pobres enriqueçam e os ricos enriqueçam ainda mais (o que, no final, aumentou a desigualdade, não obstante os pobres também tenham melhorado). Esse vídeo com Margaret Thatcher ilustra comicamente esse debate.
Os intelectuais não amam os pobres; eles odeiam mortalmente os ricos. Mises explicou esse fenômeno em seu livro A Mentalidade Anti-Capitalista.
Feito esse caveat sobre a inevitabilidade da desigualdade, façamos agora uma distinção: uma coisa é a desigualdade gerada exclusivamente pelo mercado, que premia o mérito e pune a incapacidade. Qualquer ataque a essa gera apenas tirania e empobrecimento. Trata-se de uma desigualdade inevitável e até mesmo necessária. Outra coisa, totalmente distinta, é a desigualdade gerada pelo estado, principalmente através de seu descontrole monetário.
A inflação monetária é, de longe, o instrumento mais eficiente de se propagar desigualdades. Essa, sim, uma desigualdade injusta e perfeitamente evitável. Além de ter toda uma explicação teórica — que darei sucintamente a seguir —, tal fenômeno da desigualdade gerada pela inflação pode ser completamente auferido por um simples teste empírico: quanto maior foi a inflação no Brasil em um determinado período, maior foi o aumento da desigualdade; quanto menor foi a inflação, maior foi a queda na desigualdade. (Faça qualquer correlação entre taxas de inflação e índices de Gini e comprove).
Por que é assim? Ludwig von Mises explicou magistralmente esse mecanismo de redistribuição de renda gerado pela inflação (sugiro intensamente que leiam sua explicação, muito mais completa que a minha a seguir):
Quando o banco central injeta dinheiro na economia — através do sistema bancário comum — esse dinheiro chega primeiro àqueles que têm acesso direto ao sistema bancário. Daí esse dinheiro vai ou para o mercado financeiro ou para a economia real. Uma vez na economia real, as pessoas que primeiro receberam esse novo dinheiro estão em posição privilegiada: elas podem gastá-lo comprando bens e serviços a preços ainda inalterados. Ora, se a quantidade de dinheiro em seu poder aumentou e os preços ficaram na mesma, então obviamente sua renda aumentou. Essas são as pessoas que ganham com a inflação.
À medida que esse dinheiro vai perpassando todo o sistema econômico, os preços vão aumentando (afinal, tem mais dinheiro na economia). Porém, começa aí a haver uma discrepância: vários preços já aumentaram sem que esse novo dinheiro tenha chegada às mãos de outros grupos de pessoas. Essas são as pessoas que perdem com a inflação. Somente após esse novo dinheiro ter perpassado toda a economia — fazendo com que os preços em geral tenham subido — é que ele vai chegar àqueles que estão em último na hierarquia social. Assim, quando a renda nominal desse grupo subir, os preços há muito já terão subido. Houve uma redistribuição de renda: aqueles que receberam primeiro esse novo dinheiro tiveram ganhos reais. Obtiveram bens e serviços a preços de barganha. Aqueles que receberam esse novo dinheiro por último tiveram perdas reais. Adquiriram bens e serviços a preços maiores sem que sua renda tivesse aumentado. Houve uma redistribuição de renda do mais pobre para o mais rico.
E é exatamente esse o perverso mecanismo de redistribuição de renda gerado pelo estado. Infinitamente pior para os pobres do que o mecanismo de aumento da desigualdade em decorrência do mérito — o qual, aliás, é impossível ser prejudicial para os pobres.
Curiosamente, poucos intelectuais vocalizam essa tragédia. Todos se esforçam para eximir o estado de sua culpa — para eles, no máximo, o estado é culpado de estar fazendo pouco. Tem de tributar mais, confiscar mais e regular mais. Pôr uma coleira nos ricos. Mas o regime, ah!, esse nunca deve ser atacado — até porque esses intelectuais, em sua esmagadora maioria, trabalham para o estado, e têm a função de ser propagandistas do regime. Uma vez desmoralizado o estado, os intelectuais correm o risco de perder seu ganha-pão. Entende-se aí sua tergiversação sobre a realidade brasileira e a sua busca por outros bodes expiatórios.
FATOS E NÚMEROS
Para comprovar com dados essa teoria, peguemos os dados monetários do Brasil desde 1980. Infelizmente, os dados disponibilizados pelo Banco Central começam somente a partir daquele ano, mas são o suficiente, uma vez que cobrem toda a trágica década de 80.
Vamos trabalhar apenas com a Base Monetária (a soma de todas as cédulas e moedinhas emitidas pelo Banco Central mais as reservas compulsórias que esses bancos mantêm depositadas no BACEN) e com o M1 (a soma de todas as cédulas e moedinhas em poder do público mais todos os depósitos à vista).
A Base Monetária é a única variável sobre a qual o BACEN tem controle direto. Daí podemos mensurar o grau de devassidão com a qual essa variável foi tratada. Já o M1 é a variável de maior liquidez — isto é, seus componentes são aqueles que estão prontamente disponíveis para uso imediato do indivíduo. Daí o M1 ser considerado por muitos a medida mais fiel do dinheiro realmente disponível na economia. M2, M3 e M4 estão além desse escopo. No site do BACEN (clique aqui) você pode coletar todas essas variáveis.
Após ter coletado os valores que vão de janeiro de 1980 a julho de 1994 (data da mudança para o real; antes disso, as “reformas monetárias” consistiam exclusivamente em cortar zeros da moeda), tentei plotá-los num gráfico. Não coube na tela. O gentil leitor que me perdoe, mas é impossível ilustrar graficamente o que o governo fez com a moeda nesse período.
Vou direto então para os dados brutos:
Em janeiro de 1980, a Base Monetária foi de $349.000.000 (o nome da moeda é o de menos. Estamos trabalhando apenas com seus valores nominais, que é o que importa). Em dezembro desse mesmo ano ela já era de $592.000.000.
Daí em diante, a evolução foi exponencial. Até que, em junho de 1994, último mês antes do Real, a Base Monetária já estava em inacreditáveis $8.040.253.952.000.000.000 (levando-se em conta todos os cortes de zero ocorridos). Isto são nada menos que 8 quintilhões. Consegue imaginar o que é isso?
Qual foi o aumento percentual na base monetária de janeiro de 1980 a julho de 1994? 2.303.797.693.883%. Dois trilhões por cento. Enfatizando: a base monetária — que está sob total controle do Banco Central — aumentou 2,3 trilhões por cento em 14 anos e meio. Isso dá a incrível média de 418% ao ano. Se você quisesse intencionalmente destruir a moeda de um país, duvido que seria tão exitoso quanto aqueles burocratas.
E o M1? Repetindo o mesmo procedimento:
Janeiro de 1980: $826.000.000.
Junho de 1994: $13.685.611.750.000.000.000
Variação percentual: 1.656.853.722.660% (1,6 bilhão por cento).
Agora o leitor entende por que era impossível jogar isso em um gráfico.
Como comparação, vejamos o período julho de 1994 — abril de 2009 (praticamente a mesma duração de tempo).
Base Monetária:
Julho de 1994: $6.495.066
Abril de 2009: $132.422.172
Variação percentual: 1.938%
M1:
Julho de 1994: $10.075.566
Abril de 2009: $196.087.946
Variação percentual: 1.846%
Ainda é bastante alto, mas pelo menos são cifras mais civilizadas. Ambas apresentam um aumento médio de22% ao ano.
ANÁLISE DO PERÍODO 1980-1994
O que provocou esse descalabro?
Bom, a Base Monetária, como dito, está sob controle direto do BACEN. Assim, ele é o responsável direto por ela.
Quanto ao M1, é fato que uma de suas variáveis (depósitos à vista) é gerada pela rede bancária — como, por exemplo, quando um banco cria depósitos em conta-corrente para conceder um empréstimo. Mas é fato também que esse volume de crédito pode ser controlado pelo Banco Central através do compulsório. Mas não foi. E há uma explicação.
Quando levamos em conta que nesse período havia inúmeros bancos estaduais a pleno vapor (leia-se, em plena esbórnia de jogos políticos), a culpa do governo fica ainda mais acentuada.
Os melhores exemplos são o Banespa e o BANERJ. A dupla Quércia-Brizola punha fogo nessas instituições, fazendo-as conceder empréstimos para apaniguados políticos, para estatais deficitárias e, principalmente, para seus vorazes governos estaduais, ao mesmo tempo em que esses próprios bancos incorriam em déficits vultosos. E quem socorria esses bancos? Ora, o Banco Central, que injetava dinheiro neles sempre que necessário (afinal, políticos sempre são solidários no aperto), aumentando tanto a Base Monetária quanto o M1. Não à toa, a inflação só passou a ser menor após esses bancos terem sido privatizados.
Portanto, uma das causas da explosão da BM e do M1 pode ser encontrada nos bancos estaduais, que operavam praticamente sem lei e sob ordens de governos estaduais. Esses bancos criavam meios de pagamento a rodo, apenas para financiar seus descalabros. Os desvalidos pagavam a conta.
Mas calma! Tem mais. A Caixa Econômica Federal, o Banco do Brasil, o Banco Meridional, o Banco da Amazônia, o Banco do Nordeste, o os bancos estaduais de Santa Catarina, Ceará, Goiás, Pará, Alagoas, Minas Gerais, Mato Grosso, Bahia, Acre e Maranhão não ficam atrás. Todos receberam vultosas injeções do Banco Central. Os bancos estaduais não tinham de prestar contas a ninguém. Sua gerência política fazia a farra com os recursos, o Banco Central imprimia a conta e o resto da população sofria as consequências da libertinagem.
Ah, mas ainda tem mais.
Era comum o governo federal nesse período se financiar via emissão monetária simples. “Estamos com déficit? Ah, bota a maquineta pra imprimir”. A carga tributária do período era relativamente baixa (meros 26% do PIB; hoje está em 36%) exatamente porque o governo não se preocupava com receitas. Ele confiava na máquina de impressão.
Mas o principal mecanismo de descontrole inflacionário era outro: a política cambial.
Durante anos o país adotou o câmbio real fixo (não confundir com o câmbio nominal fixo da época inicial do real). Nessa política, quando os preços internos aumentam, o câmbio deve ser desvalorizado na mesma proporção, para continuar estimulando as exportações e coibindo as importações. Assim, quando os preços internos aumentavam (em decorrência da própria inflação monetária), o governo comprava dólares para desvalorizar o câmbio. Como ele comprava dólares? Imprimindo dinheiro. O que acontecia depois? Os preços aumentavam, o câmbio real saía do lugar novamente e o governo repetia o processo. “O câmbio está fora do lugar? Imprima e compre dólares”.
Sim, parece roteiro de algum episódio dos Três Patetas, mas era exatamente assim que o governo operava, por mais estúpido que pareça. Tratava-se de uma política inflacionária autofágica, que se alimentava a si própria.
Dessa forma, os políticos, visando seus próprios interesses, destruíram o sistema monetário nacional — tudo sob os olhos complacentes do BACEN —, aumentando estrondosamente o volume de dinheiro na economia. E quem perdeu? Ora, os brasileiros mais humildes, que não tinham como se proteger do dragão da inflação. Os mais ricos, que tinham acesso ao mercado financeiro e ao sistema bancário, sabiam se proteger; os mais pobres, só podiam morrer de fome. Exatamente como Mises explicou.
Portanto, quando você junta esses três fatores — déficits orçamentários, câmbio real fixo e bancos estatais lascivos – e entende que todos os três eram resolvidos via impressão monetária, verá finalmente que o resultado foi absolutamente criminoso. Que essas pessoas não estejam na cadeia por toda a miséria que provocaram – muitos, aliás, circulam fagueiros por aí, dando palestras, ocupando cátedras universitárias, cargos no Senado e concorrendo em eleições — é uma boa prova da moral torta nacional.
A origem da inegavelmente acentuada desigualdade brasileira — que se aprofundou justamente no período 1980-1994 — não está nas salas de aula. Está nos governos estaduais, no Congresso, no Palácio do Planalto e principalmente no Banco Central. Ou seja, está no estado. Justamente a entidade apontada pelos intelectuais como a mais adequada para curar exatamente todos os problemas que ela mesma gerou.
No próximo artigo (clique aqui) centrarei no período 1994-2009, explicando o que teria acontecido se, na reforma monetária, tivéssemos seguido os conselhos de Mises.