Não existe nada mais empolgante do que aquelas leituras, feitas aos vinte anos de idade, que mudam o nosso modo de pensar para sempre. Essas leituras cruciais fornecem o material que une o nosso conhecimento até então fragmentado em uma visão de mundo coerente e ao mesmo tempo estimulam o senso crítico necessário para o exame dos fragmentos incompatíveis com essa visão. Para o aluno, o aspecto mais fascinante da educação universitária deveria ser a construção, como uma espécie de “Lego intelectual”, da própria visão de mundo, a partir do encaixe ou rejeição crítica de cada um dos tijolos sugeridos pelos textos.
Em especial, o início do processo de construção de um edifício explanatório deve ser recompensador, pois toda teoria apresenta algo como retornos decrescentes: no início, somos expostos a vasto território inexplorado, ao passo que o intelectual maduro é condenado a se repetir. O estudo da Economia, em particular, deveria proporcionar essa sensação de descoberta, pois ele nos fornece a chave para a compreensão da maioria dos erros que povoam o núcleo do discurso dos políticos e fornece fascinantes teorias que abrem nossos olhos para os reais fatores que geram prosperidade, sem a qual não seriam possíveis todas as conquistas de nossa civilização.
O estudante contemporâneo da teoria econômica, no entanto, raramente passa pela experiência de abertura de olhos proporcionada pelo contato com o modo de pensar dos economistas. Depois de aprender que preferências convexas são garantidas pelo uso de funções utilidade estritamente quase côncavas, o estudante raramente folheia um jornal e fica revoltado com a quantidade de falácias econômicas que povoam suas páginas. O formalismo que domina o ensino da economia moderna privilegia a solução de quebra-cabeças matemáticos em modelos de brinquedo (toy models), em detrimento do exame das consequências e aplicações mais amplas das teorias. Mas, por mais árido e pausterizado que possa parecer um moderno manual de microeconomia, a teoria dos preços lá exposta possui consequências cruciais para a discussão de questões políticas fundamentais, que quase sempre escapam ao estudante.
Mesmo nos cursos de Introdução à Economia, cujo propósito deveria ser exatamente expor o núcleo da visão de mundo do economista, os alunos geralmente sabem muito bem calcular elasticidades-preço da demanda, mas ignoram as implicações dos conceitos de escassez e custo de oportunidade. Assim, não é à toa que os cursos de economia não são muito populares nas universidades.
A paixão (ou ódio) pelas teorias econômicas surge com toda a sua força, porém, quando tais teorias são explicitamente associadas aos problemas políticos que motivaram sua elaboração. No presente volume, efetuamos uma análise das economias modernas a partir de um referencial explanatório fortemente calcado na teoria econômica, mas que contempla também ideias filosóficas e políticas. Essas ideias são combinadas em uma visão de mundo institucional: perguntaremos quais conjuntos de regras resultam em prosperidade ou estagnação e investigaremos quais regras são responsáveis pelos problemas econômicos atuais. Em especial, examinaremos os papéis desempenhados pela liberdade econômica e pela intervenção do estado na economia.
Para que essa análise comparativa seja feita a contento, será antes necessário nos livrarmos de noções que atrapalham essa tarefa. Em primeiro lugar, precisamos abandonar a noção marxista de “capitalismo”. Além de pertencer a uma visão de mundo ultrapassada, associada a uma teoria econômica que foi ultrapassada ainda no século XIX, a identificação automática da realidade com a noção de capitalismo impede a comparação institucional que pretendemos, pois todas as instituições vigentes, segundo essa visão, seriam capitalistas e todos os males são atribuídos por definição a esse sistema, tornando impossível discutir de forma útil o papel do estado na economia.
Em segundo lugar, precisamos superar os defeitos inerentes ao formalismo que marca a teoria econômica moderna. Ao valorizar apenas aquilo que pode ser quantificado, a teoria econômica moderna tende a deixar de lado as características institucionais que são as causas últimas das diferenças de desempenho econômico dos países. Além disso, a recusa em abandonar a visão romântica do estado como entidade incorpórea, preocupada apenas com o bem estar coletivo, em favor de uma teoria que estude a ação estatal como algo exercido por pessoas de carne e osso, impede que se faça uma análise da lógica das intervenções na economia.
Rejeitadas as teorias clássica, marxista e estritamente neoclássica como referencial teórico, escolhemos a economia austríaca como base para nossa análise. Esse referencial nos convidará a substituir a noção marxista de capitalismo pela noção de sistema econômico intervencionista. Com isso, não mais será possível comparar o capitalismo, identificado automaticamente com os males do mundo real, com o socialismo, ideal abstrato e correto por definição. Do mesmo modo, não será mais possível avaliar os mercados segundo o ideal inalcançável de eficiência alocativa sem que ao mesmo tempo eles sejam comparados com a ação estatal. Eliminados os conceitos que tornam a liberdade inferior por definição, podemos efetuar uma análise econômica do sistema econômico intervencionista no qual vivemos.
Essa análise terá como base o pensamento dos dois economistas austríacos mais conhecidos, Mises e Hayek. Do primeiro, extraímos os fundamentos da análise austríaca dos mercados e o referencial básico de análise do socialismo e intervencionismo. Do segundo, tomamos emprestada a crítica ao mau uso da noção de equilíbrio, que fundamenta a análise austríaca moderna, a noção de ordem espontânea e suas teses metodológicas. O leitor perceberá que, de fato, o referencial teórico utilizado no presente volume é em larga medida hayekiano. Além desses autores, a nossa leitura da realidade toma emprestadas teses de diversos autores, como Popper, M. Polanyi, Bartley III, A. Smith, Bastiat, Buchanan, Coase, Kirzner, entre outros.
Os capítulos contidos em cada parte são textos originalmente escritos como artigos independentes uns dos outros. Três anos atrás, fui convidado para escrever artigos mensais para o sítio do Ordem Livre. Nesse espaço, tive a liberdade para me dedicar a artigos mais acadêmicos e gerais, em vez dos usuais textos sobre conjuntura de curto prazo normalmente demandados dos economistas. Naquela ocasião, imaginei a estrutura do presente livro, aceitando a oportunidade de escrevê-lo em 30 “prestações”.
Aproveitei essa liberdade para escrever artigos mais acadêmicos do que se espera desse tipo de texto, utilizando extensivamente notas de rodapé com referências bibliográficas, mas menos formais do que se espera de artigos acadêmicos. Com a crescente especialização da academia, sobra cada vez menos espaço nessas revistas para análises interdisciplinares, como a empreendida neste livro, que trata de relações entre economia, filosofia e política. Menos espaço ainda existe, sobretudo nas revistas brasileiras, para abordagens teóricas minoritárias, como a austríaca. Porém, boa parte das teses aqui apresentadas tem origem no trabalho acadêmico do autor, sujeito ao tipo de restrição mencionada acima. Mas, com a liberdade proporcionada pela minha coluna, o resultado que pode ser visto nas próximas páginas foi um conjunto de artigos mais informal, que não foge de polêmicas ideológicas, mas que pretende levar a sério o debate entre visões de mundo concorrentes.
Agradeço ao Ordem Livre pela oportunidade de utilizar material publicado originalmente no sítio daquela instituição e ao Instituto Mises Brasil (www.mises.org.br), pelo mesmo motivo, no que diz respeito ao mais extenso ensaio aqui publicado, sobre os irmãos von Mises. Agradeço também a essas duas instituições pelos convites para proferir palestras sobre economia austríaca e poder participar do extraordinário movimento, em curso nos últimos anos, de divulgação das ideias austríacas no Brasil.
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O livro é dividido em três partes. Na primeira, reunimos artigos que discutem o referencial teórico básico empregado no mesmo. Esse referencial utiliza elementos da teoria econômica moderna, com ênfase no pensamento austríaco, em especial no que diz respeito aos mercados vistos como ordens espontâneas auto-organizadas. A liberdade, nessa visão hayekiana, é a única maneira de contornar a limitação do conhecimento dos agentes diante da tarefa cada vez mais complexa de coordenar as ações individuais. Depois de tratar da defesa da liberdade e sistemas descentralizados, na segunda parte o mesmo referencial teórico é empregado no exame dos sistemas econômicos comparados. Expomos a tese austríaca sobre a impossibilidade do socialismo e apresentamos a tese misesiana sobre a instabilidade do sistema econômico intervencionista. Na terceira parte, essa mesma análise do intervencionismo é empregada como base para a crítica de algumas políticas e tendências encontradas nas sociedades contemporâneas.
A primeira parte inicia com um capítulo que expõe os principais fatores institucionais relacionados ao crescimento econômico, fatores esses expostos por economistas cujas ideias aparecerão incontáveis vezes no restante do livro. No segundo capítulo, utilizamos o pensamento de Bastiat para mostrar que as falácias econômicas são fruto da compreensão parcial do funcionamento das ordens espontâneas. Praticamente toda falácia econômica tem origem em análises que focam sua atenção em alguns mercados apenas, ignorando os custos de oportunidade das políticas econômicas nos demais. O terceiro, o mais extenso, utiliza a rivalidade entre os irmãos Mises para contrastar a metodologia da economia dos austríacos e da teoria tradicional. Acreditamos que as diferenças entre austríacos e neoclássicos repousa em última análise em diferenças metodológicas: o positivismo que informa a última impede que se perceba a importância dos fenômenos complexos enfatizados pela primeira escola, como a noção de auto-organização.
Os demais capítulos da primeira parte tratam da visão hayekiana da economia como uma ordem complexa auto-organizada e dos aspectos metodológicos de uma teoria que trata desse tipo de fenômeno. No quarto capítulo tratamos do problema da coordenação das atividades individuais em uma economia com divisão do trabalho cada vez mais detalhada. Nesse contexto, mostra-se como a liberdade é essencial para que o conhecimento disperso dos agentes seja utilizado e corrigido ao longo do tempo. No quinto e sexto capítulo, voltamos ao tema do terceiro capítulo e exploramos os aspectos metodológicos do estudo de fenômenos complexos. As teorias sobre esses fenômenos representam apenas certos princípios de funcionamento da ordem espontânea, nunca fornecendo previsões exatas sobre detalhes desses sistemas. Nos capítulos sete e oito, ilustramos essas ideias metodológicas através do exame de teorias sobre ordens espontâneas nos mercados e na natureza.
A primeira parte conclui com um ensaio que compara Hayek com Marx no que diz respeito ao papel do conhecimento limitado em ordens espontâneas e hierárquicas.
Na segunda parte, passamos ao exame crítico de sistemas econômicos mais hierarquizados. Nos capítulos dez e onze, visitamos a tese misesiana sobre a impossibilidade do cálculo econômico no socialismo. O primeiro expõe a tese em si e o segundo o debate entre austríacos e neoclássicos sobre o tema. Esse debate clarifica as diferenças entre as duas abordagens, que transparecerão ao longo de todo o livro. Os capítulos restantes dessa segunda parte tratam do intervencionismo, visto como o sistema econômico vigente no mundo atual.
O capítulo doze ilustra historicamente a análise do intervencionismo através do exame da recaída autoritária na última década na América Latina e o seguinte expõe a teoria austríaca sobre o intervencionismo. Para essa teoria, as “contradições internas” dos sistemas intervencionistas põem em marcha um processo que resulta em ciclos de expansão e contração do estado.
Os capítulos seguintes tratam de objeções a essa abordagem, oferecendo uma defesa metodológica do núcleo comum da teoria compartilhada entre austríacos e neoclássicos. O décimo quarto capítulo critica a tese historicista, defendida pelos marxistas, segundo a qual a teoria econômica só seria válida no capitalismo. O artigo mostra que, pelo contrário, qualquer sistema econômico tem que lidar com o problema alocativo. Os dois capítulos seguintes desmontam a crítica à teoria moderna segundo a qual esta dependeria da hipótese de agentes egoístas. Esses capítulos mostram que a teoria requer apenas agentes que tenham algum propósito, não importando a natureza dos mesmos e analisam o papel do pressuposto de autointeresse empregado na teoria econômica.
Os dois capítulos seguintes analisam os aspectos ideológicos da mentalidade estatista. O capítulo dezessete indaga se os instintos coletivistas seriam inerentes à natureza humana e o seguinte estuda as características da presente ideologia dos defensores do intervencionismo. Esse estudo é importante para o desenvolvimento da teoria no que diz respeito à fase do ciclo do intervencionismo na qual ocorrem reformas liberalizantes. Os capítulos dezenove e vinte tratam das dificuldades encontradas nessa fase de reformas. A expansão do estado faz com que reformas contrariem interesses e causem crises no curto prazo, que serão atribuídas não as distorções causadas pelas intervenções, mas as próprias reformas adotadas para aliviar o problema. Quanto mais se avança em direção ao controle central, por outro lado, mais difícil para as pessoas imaginarem instituições alternativas, compatíveis com a liberdade.
O penúltimo capítulo da segunda parte trata do final da fase de expansão do estado na teoria do intervencionismo, mostrando a diminuição da margem de manobras dos políticos nesse estágio. O capítulo final volta à ilustração da teoria, defendendo um revisionismo histórico que rejeite ideias marxistas e incorpore os resultados da teoria econômica moderna. Esse revisionismo traria inúmeras ilustrações da nossa teoria do intervencionismo.
Na terceira parte do livro discutimos aspectos políticos da batalha pela liberdade. Nos capítulos 23 e 24, discutimos como o pensamento liberal em economia é bloqueado respectivamente pela identificação da realidade com o conceito de capitalismo e pela identificação do status quo com situação desprovida de intervenções corretivas. Em nossa opinião, os grandes problemas econômicos são falhas de governo, não falhas de mercado. No capítulo 25, examinaremos como a expansão do conceito de externalidade como justificativa para intervenções estatais nos leva progressivamente ao abandono das liberdades individuais. No capítulo seguinte, efetuamos uma crítica austríaca de como o economista lida com os monopólios e na sequência mostramos como a atividade empresarial é tratada de forma inadequada na visão ortodoxa sobre o funcionamento da competição nos mercados.
No capítulo 29, criticamos aqueles que veem nos preços as causas dos problemas macroeconômicos: as análises corretas deveriam investigar os fundamentos que fazem os preços se moverem. No capítulo 30, utilizamos a história infantil dos três porquinhos para ilustrar a teoria austríaca dos ciclos econômicos, que afirma que a expansão do crédito orquestrada pelos bancos centrais é a causa principal das crises econômicas.
Nos três capítulos seguintes, analisamos o mercado das ideias. No primeiro examinamos as falsas analogias entre mercados e o sistema educacional. No segundo e terceiro, argumentamos que a tentativa de estimular a competição através de mecanismos de incentivos à produtividade acadêmica não funciona. O argumento é baseado na tese da impossibilidade do cálculo econômico no socialismo: preços artificiais são inerentemente diferentes de preços em mercados reais. Argumentamos que a liberdade acadêmica é a principal vítima do “produtivismo” acadêmico.
Nos capítulos 33 e 34, mostramos que, sob o intervencionismo, opera um mecanismo seletivo hayekiano segundo o qual os piores chegam ao poder e as alternativas liberais tendem a desaparecer. Por fim, no último capítulo analisamos o fenômeno do discurso politicamente correto, visto como uma das maiores ameaças à liberdade.
Eis, a seguir, os capítulos do livro. Basta clicar sobre cada um para lê-lo na íntegra e gratuitamente.
Apresentação
Introdução
1. Seis Lições sobre Prosperidade e Pobreza
2. Bastiat e as Máquinas de Moto-Perpétuo Econômicas
3. Os Irmãos Mises: o Positivismo e as Ciências Sociais
4. A Economia Falibilista de Hayek
5. Hayek e o Uso Circunspecto dos Modelos Econômicos
6. Pangloss versus Procusto: um trade-off metodológico
7. Entre os Chipanzés e os Cupins
8. O Ar Condicionado Abstrato
9. Alienação: Marx e Hayek
10. Da Impossibilidade do Socialismo
11. O Socialismo de Mercado e a Importância da Competição
12. A Maré Estatista na América Latina e a Teoria do Intervencionismo
13. A Teoria Austríaca do Intervencionismo
14. Intervencionismo e Historicismo
15. Espantalhus œconomicus
16. Autointeresse, Instituições e Utopia
17. Arremesso de Anões
18. Dogmatismo e Ideologia Intervencionista
19. Chutando a Escada para a Liberdade
20. Liberdade e Custo de Oportunidade
21. Escassez de Líderes?
22. História: mais Bastiat e menos Marx
23. Abaixo o Capitalismo!
24. Eficiência Econômica e a Abordagem do Nirvana
25. Externalidades: caixa de Edgeworth ou de Pandora?
26. Economista e o Monopólio
27. Do Empresário Herói ao Empresário Invisível
28. Os Preços e as Causas dos Problemas Econômicos
29. Os Três Porquinhos e os Ciclos Econômicos
30. As Escolas e os Mercados
31. Mecanismos de Incentivos, Produtividade Acadêmica e o “Mercado das Ideias”
32. Liberdade Acadêmica
33. A Causa Traída: por que os piores chegam ao poder
34. Eleições: o copo meio cheio
35. O Moralismo Social