A Economia do Intervencionismo

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16. Autointeresse, Instituições e Utopia

No capítulo anterior argumentamos que o conceito de Homo economicus é uma caricatura do pressuposto de autointeresse adotado pelos economistas clássicos e que a Economia moderna, por seu turno, não depende da hipótese de que as pessoas sejam egoístas que só pensam em prazeres imediatos e acúmulo de riqueza material. De fato, como nos ensina Mises[1], tudo o que se requer na análise é que se reconheça que os agentes imaginem diversos propósitos e tenham meios insuficientes para concretizá-los, não importando a natureza desses propósitos. A partir disso podemos estudar a lógica das escolhas econômicas em termos de relações entre meios escassos e fins alternativos. Em particular, a Economia é boa em mostrar como certas políticas econômicas populistas são meios que resultam exatamente no oposto dos fins pretendidos pelos seus defensores. Em vez de debater esse tipo de argumento, o que envolveria trabalho, os críticos optam pelo caminho mais fácil: distorcer a teoria por meio de ataques moralistas à figura do Homo economicus.Estabelecida a proposição “austríaca” de que a Economia moderna é uma ciência de meios e não de fins, podemos perguntar em seguida como deve ser interpretada a hipótese de autointeresse originalmente formulada pelos economistas da Escola Clássica. Afinal, talvez a frase mais citada da Riqueza das Nações seja aquela que diz que “não é da bondade do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que podemos esperar o nosso jantar, mas da consideração em que eles têm pelo seu próprio interesse.” [2]

A resposta mais simples a essa pergunta cai na armadilha retórica plantada pelos críticos do Homo economicus, aceitando o egoísmo como uma proposição positiva (empiricamente as pessoas seriam de fato egoístas) ou até mesmo como uma proposição normativa (defende-se uma forma de egoísmo como um ideal a ser seguido). Sejam lá quais forem os méritos dessas teses em outras disciplinas, em Economia a primeira proposição é desnecessária, como já vimos. Além disso, evidentemente, é empiricamente falsa.

Uma resposta mais sofisticada aceita o egoísmo, mas como uma hipótese instrumental: falsa empiricamente, mas útil para gerar previsões econômicas. Essa atitude é derivada de crenças metodológicas de cunho positivista. Para um positivista, a preferência de Mises por explorar a lógica da relação entre meios e fins em geral, sem especificar o conteúdo destes últimos, soa como algo ilegitimamente tautológico – “os agentes preferem o que eles preferem”. Ao rejeitar esse nível de generalidade na análise, o positivista é compelido a especificar os fins. Mas, dada a complexidade da mente humana, qualquer hipótese comportamental simples a respeito do que motiva as pessoas seria automaticamente refutada[3]. Resta então a ele a escolha entre “estudar a humanidade em toda sua complexidade”, como quer o historicista crítico do conceito de Homo economicus, o que resulta na impossibilidade de se fazer teoria, ou ainda pode optar por adotar uma hipótese concreta mais simples, mas falsa, na esperança que isso gere boas previsões. Essa é a postura mais popular entre os economistas contemporâneos, a despeito da falta de correlação entre várias hipóteses preferidas e a efetiva capacidade de fazer previsões obtidas com o auxílio das mesmas.

A próxima resposta que levaremos em conta, bastante curiosa, foi formulada por Phillip Wicksteed, um dos principais responsáveis, ao lado de Mises e Robbins, por matar o Homo economicus: este autor também mostrou que a lógica econômica se aplica tanto a intenções egoístas quanto altruístas. Wicksteed, adicionalmente, argumenta que a teoria não supõe egoísmo, mas apenas “não-truísmo”[4]. Em uma troca, afirma o autor, poderíamos, como um experimento mental, ter um procurador no lugar do proprietário do bem ofertado. Esse procurador busca a melhor opção como vendedor, mas sem envolvimento pessoal no negócio. Mas, embora não ganhe nada com a venda, as suas estratégias de barganha devem excluir necessariamente o interesse do comprador. Daí o “não-truísmo” proposto pelo autor.

Imagine agora que, pelo contrário, o padeiro considere apenas o interesse do consumidor de pães e este por sua vez apenas o interesse do primeiro. Quanto maior o preço, melhor para o consumidor e quanto menor o preço, melhor para o padeiro? No nível de generalidade que propõe Mises, nada impede que se aplique a lógica da escolha a essa situação: esta deve então examinar a eficiência alocativa de diversas estruturas de mercado desse universo fictício de preferências espelhadas.

Mas se, digamos, ao invés disso, as decisões econômicas forem tomadas em conjunto pelas partes, de forma “não-alienada”, como quer Marx? Aqui, bem como no caso do nosso padeiro “truísta”, saímos da esfera moralista da distinção egoísmo-altruísmo, substituindo-a pela dicotomia individualismo-coletivismo[5], relevante para a análise econômica. Aqui, a tese da impossibilidade do cálculo econômico no socialismo se aplica. A teoria moderna de fato compara a maneira como o problema alocativo fundamental enfrentado por qualquer sociedade é resolvido sob diferentes arranjos institucionais, seja por meios coletivistas, seja por meios descentralizados.

É justamente no campo da comparação institucional que nos deparamos com a última e melhor interpretação do postulado clássico de autointeresse, interpretação essa proposta por James Buchanan[6]. Para este autor, tal postulado deve ser entendido não como uma assertiva empírica a respeito de como é o homem na realidade, mas sim como a melhor hipótese de trabalho quando lidamos com o problema da comparação institucional. Considere a analogia com um contrato. Quando solicitamos o serviço de um encanador, esperamos encontrar um bom profissional. Contudo, na redação do contrato, as cláusulas especificam o que deve ocorrer se a obra atrasar, se o vazamento persistir, se não houver pagamento e assim por diante. Mas isso não significa que esperamos um encanador incompetente e desonesto! Da mesma forma, a análise de Adam Smith sobre quais são as causas da opulência ou pobreza das nações, feita em termos de comparação de instituições, indaga qual seria o melhor conjunto de regras do jogo, levando em conta a possibilidade de existir, mesmo em pequeno grau, comportamento oportunista e autointeressado. Se este não ocorrer, não há problema algum. Mas se ocorrer? A análise deve então supor autointeresse: este, em ambiente que favorece competição, gera prosperidade – o padeiro acordará cedo para produzir um pão com casca crocante e a um preço razoável. Sob regras que induzam monopólio, por outro lado, gera estagnação – o padeiro dormirá até o meio dia e venderá pão murcho ou duro.

Mas o padeiro não poderia acordar às quatro e meia da manhã apenas por dever cívico, por altruísmo? Essa análise não seria em si cínica em relação à humanidade? Em absoluto. Na análise smithiana buscam-se instituições compatíveis com seres humanos reais, que apresentam tanto comportamentos elogiáveis quanto comportamentos condenáveis. O papel relativo de cada um desses aspectos na interação social depende em larga medida dos incentivos fornecidos pelas instituições. A análise não supõe ou defende que os agentes sejam egoístas, mas investiga qual arranjo funcionaria melhor em uma sociedade de seres humanos imperfeitos. Buscam-se soluções que não dependam de uma população composta somente por anjos.

Quanta diferença em relação ao pensamento utópico que está por trás da condenação moralista ao Homo economicus! Para funcionar, essas utopias de fato dependem da perfectibilidade do ser humano. Ao analisar essas utopias, devemos realizar sempre o seguinte teste de robustez: sob tais regras, o que acontece se surgir um único demônio no meio dos anjos? Ele não viveria a custa dos demais, de modo que o comportamento antissocial se alastraria para o resto da sociedade? Em uma comunidade perfeitamente truísta, baseada na troca de presentes, o que aconteceria se uma única pessoa aceitar os presentes e não fornecer nenhum, “pegando carona” da produção dos outros? Qualquer menção a normas que inibam isso reintroduz sub-repticiamente o pressuposto comportamental rejeitado e nos leva de volta assim ao programa de pesquisa smithiano.

A única esperança para os defensores dessas utopias reside no surgimento de um novo homem, livre de pretensos defeitos individualistas. O requisito fundamental para isso é que a humanidade possa ser moldada completamente pela educação, sem que haja papel algum para tendências inatas ao ser humano, já que a presença destas últimas, mesmo em pequena escala, levaria a utopia ao fracasso no nosso teste de robustez.

A má notícia para os que nutrem tal esperança, infelizmente, vem da ciência. Cada vez mais a Biologia e disciplinas correlatas minam a crença de que a mente humana seja uma tabula rasa, flexível como massa de modelar. Os estudos mostram, em vez disso, que fatores genéticos, heranças evolutivas ou a estrutura do cérebro impõem certas pré-disposições psicológicas inerentes aos indivíduos. Em outros termos, essa investigação restabelece a ideia de uma natureza humana, reservando a ela algum espaço ao lado das influências ambientais, vindicando a abordagem smithiana, que busca instituições compatíveis com a mesma, em detrimento da alternativa que vê o homem de carne e osso como um empecilho à concretização de seus sonhos ideológicos.

Isso explica o ódio que o cientista social em geral nutre por disciplinas como a Sociobiologia e mais recentemente a Psicologia Evolucionária, ódio maior ainda do aquele manifesto nas diatribes lançadas contra os economistas e os homines economici. A técnica de combate é a mesma: distorcer desavergonhadamente o que é dito pelos pesquisadores dessas áreas, sem ler absolutamente nada do que de fato escrevem. Stephen Pinker[7] relata a maneira pela qual biólogos, como Edward Wilson e Richard Dawkins, ao ousarem afirmar que, além de fatores ambientais, existem também tendências genéticas que influenciam a ação, são acusados de reducionismo, defensores do sexismo, racismo, elitismo, darwinismo social e até mesmo eugenia. Evidentemente, nada disso é encontrado na obra desses pesquisadores.

Pinker nota como qualquer afirmativa do tipo “existe alguma influência genética nesse comportamento”, na leitura dos críticos, se transforma imediatamente em “esse comportamento é determinado apenas por fatores genéticos[8]” . Isso é fácil de entender se lembrarmos do que dissemos há pouco sobre nosso teste de robustez: qualquer rigidez, qualquer traço de natureza humana, é capaz de destruir planos sociais utópicos.

Contudo, a apreciação da importância da natureza humana não requer conhecimentos de Biologia, sendo algo facilmente percebido pelo senso comum. Joshua Muravchik[9], por exemplo, relata como crianças criadas no ambiente conscientemente coletivista dos kibutzim, quando adultas, se rebelaram contra a regra que dita que as crianças devam dormir com as instrutoras, preferindo que seus próprios filhos durmam consigo. As crianças, assustadas depois de um pesadelo, naturalmente procuram a mãe, não a professora. Além disso, elas teimosamente desenvolvem preferências por brinquedos que gostariam que fossem delas e não da comunidade. Kaidantzis[10], em outro contexto, mostra como uma mãe resolveu as brigas pelos brinquedos entre seus oito filhos por meio do estabelecimento claro de direitos de propriedade privada das crianças sobre os brinquedos, o que não apenas reduziu os conflitos entre elas como estimulou a prática de compartilhamento, pois emprestar não envolvia mais incerteza. Esses são alguns dos inúmeros exemplos que mostram que, não importa o tamanho do banho de sangue causado em nome do novo homem, a natureza humana continua a mesma.

Autores clássicos como Smith ou Bastiat de fato perceberam a natureza intrinsecamente totalitária dessas tentativas de controle da sociedade. A Riqueza das Nações do primeiro autor fala em peças do xadrez humano com movimentos próprios, que frustram o planejamento do “jogador”. Em A Lei, Bastiat fala da relação entre um socialista e a humanidade como uma relação entre oleiro e o barro e o consequente desprezo que os primeiros nutrem pela humanidade. De fato, o ódio ao Homo economicus e à ideia de natureza humana nada mais são do que o ódio às pessoas de carne e osso em nome do amor abstrato pela Humanidade idealizada.

Mas e se essas considerações comportamentais todas, discutidas sob a hipótese de individualismo metodológico, forem irrelevantes e o verdadeiro ator social de fato for alguma mística “força histórica” relacionada a conceitos como raça ou classe, de modo que o comportamento do indivíduo seja determinado pela sua condição de raça ou classe e não pelo autointeresse?

Para estudar essa possibilidade, vamos então excluir esse último pressuposto, modificando a nossa sociedade baseada em presentes, de modo que agora ela será povoada apenas por anjos. Mas, a despeito disso, essa sociedade ainda não funcionaria em termos econômicos. A menos que existam apenas algumas dúzias de anjos, vivendo na pobreza, de modo que todos possam compreender cada detalhe do funcionamento da economia ou ainda se tivermos anjos oniscientes vivendo em uma sociedade mais complexa, não há como saber em quais presentes devem ser investidos os recursos angelicais. Sem um sistema de preços – o vil metal sujando as mãos espirituais – não há como saber a escassez relativa de cada bem, de modo a possibilitar uma alocação econômica de recursos escassos a fins alternativos. Mas com isso abandonamos preocupações “inglesas” com incentivos e introduzimos novamente considerações “austríacas” sobre conhecimento limitado dos agentes e a tese sobre a impossibilidade do cálculo econômico no socialismo.

 



[1] Mises (2010).

[2] Smith (1996).

[3] Temos aqui um exemplo do dilema metodológico explorado no capítulo “Pangloss versus Procusto”

[4] Wicksteed (1933).

[5] Popper (1998)

[6] Buchanan e Brennnan (s.d)

[7] Pinker (2004).

[8] Ver livro citado na nota anterior e também Ridley (xx) Este último argumenta que a polarização entre forças ambientais e biológicas é enganadora e ocorre sempre interação entre as duas. Embora evidentemente  existiriam genes para cada comportamento, existem fatores orgânicos que induzem e influenciam processos de aprendizado, por exemplo.

[9] Muravchik (2002).

[10] Kaidanitzis (2010).

 

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