A educação em uma Sociedade Aberta

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[1]Don’t let your schooling interfere with your education.

Mark Twain

 

If you drive a car, I’ll tax the street

If you try to sit, I’ll tax the seat

If you get too cold, I’ll tax the heat

If you take a walk, I’ll tax your feet.

 – George Harrison (The Beatles)

Uma das vias que mais comumente se usam para justificar a intervenção governamental em temas educacionais é a de “formar um bom cidadão” (desde que seja à imagem e semelhança de quem circunstancialmente detenha o poder). Assim, recorrendo a claras hipóteses hegelianas, pretende-se a uniformidade em vez de iniciar a fertilidade que brinda as interconexões culturais, desconhecendo a riqueza que a estes efeitos apresenta o equivalente do método popperiano de teorias em competência que abrem a porta para refutações e corroborações provisórias. Aquela tendência destinada à hipótese e ao antropomorfismo de outorgar vida própria a construções mentais, especialmente as vinculadas à concepção do estado e sua representação da sociedade, se encontram refletidas nas obras de Kinsley Davis, um dos sociólogos mais influentes em temas educativos. Davis diz que:

A pessoa, enquanto pode ser um objeto para si, é essencialmente uma estrutura pessoal e surge na experiência social […]. Não é possível traçar uma clara linha divisória entre nossa pessoa e a dos demais […]. A educação paternal se torna cada vez menos adequada até que é preciso confiar na socialização fora da família; […] a sociedade complexa e especializada corre o risco de cair num individualismo incontrolado com a conseguinte perda da coesão social […]. Frente à motivação individualista e à crítica científica, os valores centrais e os fins comuns da sociedade tendem a desmoronar-se […]. De todos os países que realizaram experimentos com a política educativa, Rússia (ex-União Soviética) foi o mais severo e, aparentemente, o que teve mais êxito […]. No plano econômico a escola está sincronizada com a vida produtiva por meio da politecnização […]. Os soviéticos se baseiam o menos possível na família para a educação. Não apenas aliviam a família do custo da educação como ainda tomam a criança em idade muito precoce para a educação pré-escolar e jardins de infância comunais. Portanto, no momento da adolescência, resulta numa criança muito fácil de se tirar de cima a autoridade paterna já desalojada por uma autoridade estatal […]. O sistema soviético sugere que para converter a escola em parte integral da estrutura política e econômica, e para conceder à juventude um papel produtor, é necessária a planificação central de toda a economia. Que um estado democrático possa atingir ou não tal planificação, constitui uma profunda questão mas, aparentemente, tem que alcançá-lo ou deixar de existir.[2]

Sem chegar a esses extremos, na maior parte dos trabalhos sobre a educação está presente o aspecto medular da tese sustentada de maneira tão crua por Davis. Devido a essas confusões e decantações do indivíduo à sociedade é que Ortega y Gasset nos recorda da expressão “relações inter-individuais”[3] e, por sua vez, Hayek sugere a de “ordem espontânea”,[4] ambas como substituto da expressão “sociedade”. Ortega sustenta que “o terrível impessoal aparece agora formando parte de nós mesmos […] na medida em que não pensamos em virtude de evidência própria, mas porque ouvimos dizer, porque ‘se pensa’ e ‘se opina’, nossa vida não é nossa; deixamos de ser o personagem determinadíssimo que é cada qual; vivemos às custas dos outros, ‘da sociedade’; é dizer, estamos socializados […]. Existem duas formas de vida humana: uma, a autêntica, que é a vida individual, a que acontece a alguém e a alguém determinado, a um sujeito consciente e responsável; outra, a vida dos outros, ‘da sociedade’, da vida coletiva que não acontece a ninguém determinado, pela qual ninguém é responsável […]. Desde há cento e cinquenta anos que são feitas não poucas afirmações errôneas em torno desta questão; se joga frivolamente, confusamente, com as ideias do coletivo, do social, do espírito nacional, da classe, da raça, na cultura (Spengler). Mas no jogo, as canas se tornaram lanças (N. do T.: expressão popular espanhola sem uma equivalente em português encontrada. Ela basicamente expressa sobre algo que era positivo e então deixou de ser ou algo que era inofensivo e se transformou em algo perigoso.). Talvez, a maior das angústias hoje para a humanidade provém dela”.[5]

Michael Novak confessa que quando era socialista “[…] havia uma capa levemente hegeliana em minha imaginação, com a qual eu tratava de pensar na humanidade como um Corpo Místico, uma coisa unida organicamente tal como o corpo humano. Os escritores que enfatizavam o corporativismo, a solidariedade ou inclusive formas não ateístas de socialismo, captavam, então, minha imaginação […]”[6]

A educação é provavelmente o tema mais importante numa sociedade aberta. Eventualmente constitui o sine qua non de todos os demais. Contar com processos competitivos na educação é muito mais importante que contar com mercados abertos e competência nas áreas dos automóveis, das camisas e tantos outros bens, devido a que a educação se vincula estreitamente às potencialidades humanas. Estritamente a educação é algo que provém do fórum interno da pessoa e o ensino é um processo pelo qual se leva a cabo a transmissão de ideias. Jacques Barzun nos disse que “A educação vem de dentro; é o resultado do que faz a própria pessoa, ou o que se passa a essa pessoa – algumas vezes devido ao ensino que recebe e outras apesar dela”.[7] A educação está presente em todas as atividades da vida, algumas de modo informal como acontece no lar e outras de modo formal como acontece no colégio e na universidade. Em qualquer caso, a compreensão da filosofia sobre a que se baseia a sociedade aberta descansa em certos valores os quais precisam de liberdade para florescer. A vida é processo de aprendizagem. O conteúdo específico da educação que cada um adquirirá dependerá das vocações e desejos da pessoa de que se trate. Todos somos diferentes desde o ponto de vista anatômico, psicológico e biológico.[8] Cada um de nós é capaz de incorporar pequenos fragmentos de informação, como havia dito: “somos todos ignorantes, mas em temas distintos”. Procurar uma definição de uma pessoa educada é irrelevante uma vez que, precisamente, a diversidade e as possibilidades do conhecimento são infinitas, diversidade que, a propósito, torna possível a cooperação social.

Deixando de lado os benefícios que relatam as reuniões sociais e esportivas, o sistema educacional é o tutorial. A relação um a um permite que se desenvolvam as potencialidades específicas de cada pessoa. A economia de escala tornou possível a existência de colégios e universidades, mas ali naquela indica que as autoridades governamentais devam estabelecer o conteúdo de programas e bibliografias. Seguramente a cibernética do futuro tornará econômico o sistema tutorial, através do qual existirão universidades e colégios “virtuais”.[9] Um bom exemplo de um primeiro passo nesta direção está refletido pelos programas Master que hoje se ensinam através de e-mails com professores localizados em distintos lugares geográficos.

Está muito difundida a ideia de que os governos devem estabelecer programas e bibliografias desde o ápice do poder. Deste modo as pessoas não são tratadas como seres únicos e irrepetíveis, mas bem como fruto de uma produção em série. Talvez este seja o exemplo mais claro de autoritarismo. Devemos ter a consciência de que a única diferença entre o governo e os governados radica em que os primeiros estão respaldados pela força. Os assim chamados “ministérios de educação” ou “secretarias da educação” são departamentos burocráticos contrários à natureza de uma sociedade aberta. O impor conteúdos educativos pela força não é apenas contrário à natureza humana como ainda implica violação de direitos às pessoas que, por este motivo, se veem privadas de expressar suas preferências.

Na maior parte dos países se diz que há instituições privadas e instituições estatais quando na verdade são todas estatais. Se alude às instituições privadas quando o edifício está registrado em nome de particulares, mas se o conteúdo da educação é decidido pelo governo a instituição é de fato estatal. As estruturas curriculares abertas permitem que se desenvolva o processo evolutivo do conhecimento em sua máxima plenitude e, assim mesmo, leva a que se explorem novas vias de pensamento, no contexto de um renovado espírito crítico com o propósito de observar as vantagens e desvantagens de teorias rivais. Talvez nada ilustra melhor o espírito de uma sociedade aberta do que o lema da Royal Society de Londres: Nullus in verba, uma fórmula reduzida que provém de uma frase mais extensa de Horácio que significa que no campo do conhecimento não existe tal coisa como última palavra nem autoridade final.

Com relação à importância da independência, Isabel Paterson comenta:

Quando a educação for manejada pelos colégios privados haverá consideráveis diferenças entre eles, e os pais deverão julgar qual é o currículo que lhes resulte mais atrativo. Cada um buscará o que considera melhor e não haverá assim uma autoridade estatal que controle a opinião, já que os adultos responsáveis de seus filhos usarão seus critérios sobre o que é que se deve e o que não se deve aprender. Nesse caso, não haverá tentativas de ensinar e impor compulsivamente ‘a supremacia do estado’. Cedo ou tarde, todos os sistemas educacionais controlados politicamente impõem a doutrina da supremacia do estado, seja através do direito divino dos reis, seja da ‘vontade popular’ da democracia. Um vez que a doutrina é aceita, resulta uma espécie de tarefa sobre-humana que é trocar o sistema e quebrar o poder político que se exerce sobre a vida dos cidadãos. Naqueles casos o corpo e a mente serão na prática propriedade do estado desde a mais tenra infância […]. Mas no sistema privado não haverá crianças analfabetas? Pode ser, como acontece e como aconteceu no passado. Nos Estados Unidos tivemos um presidente [Lincoln] que não aprendeu a ler e escrever até ficar adulto, já casado e trabalhando para manter o lar.[10]

Numa sociedade livre não deveria existir tal coisa como escolas e universidades estatais. Devemos ter a consciência de que todos pagamos impostos, todos somos de fato contribuintes, inclusive aqueles que nunca viram uma planilha fiscal são afetados pelos impostos através da redução de salários, consequência da menor capitalização que geram os contribuintes de jure. Portanto, resulta numa grande injustiça em que as pessoas muito pobres – tão pobres que não podem enfrentar o custo de oportunidade de mandar os seus para um colégio sem correr o risco de morrer por inanição – se veem obrigados a financiar a educação dos mais ricos. Por outro lado, aquelas famílias que realizam um grande esforço para mandar seus filhos para um colégio os mandarão para colégios estatais já que, realizada uma correta análise fiscal, tratarão de evitar o custo dobrado que significa, por um lado, sofrer com os impostos e pagar os custos de um colégio privado.[11]

G. West explica como o setor privado atendia bem a área educativa na Inglaterra antes de 1870.[12] West disse que “Quando se fala da proteção contra a ignorância devemos nos perguntar ‘ignorância de quê?’ Uma pessoa pode ser ignorante numa área e, simultaneamente, ser especialista em outra”.[13] James Tooley ilustra o ponto deste modo: “Há uma piada que Gary Larson publicou que mostra uma família comum em sua casa composta por pais, filhos e um cachorro, todos os quais concentram a atenção em … uma parede vazia. Ao final da piada se lê ‘Nos dias antes de aparecer a televisão’. Muitos creem que efetivamente isso era assim, do mesmo modo que creem que antes de que apareça a intromissão estatal nos colégios da Inglaterra não havia nada, que as pessoas estavam sentadas entediadas esperando que o estado lhes desse um sentido para suas vidas [o que] não se ajusta à evidência histórica”.[14] Tooley também nos recorda que “Um fenômeno similar ocorreu na América [Estados Unidos] antes de o governo intervir na educação […]”[15] Platão foi provavelmente o primeiro defensor da educação compulsória do estado. Murray N. Rothbard realiza um estudo histórico e bem documentado sobre a educação compulsória desde Lutero no século XVI até os nossos dias. Rothbard conclui que a intervenção estatal na educação tende a diminuir os níveis educacionais enquanto que a educação aberta permite a excelência acadêmica e o progresso no conhecimento requerido pelos consumidores.[16] A educação estatal sempre será distinta à educação que se requer através do processo de mercado. Arthur Shenfield se queixa amargamente do que ocorre em algumas universidades de renome: entre outras coisas pela “politização da aprendizagem e do ensino, de modo tal que as universidades em vez de serem um lugar onde se adquire conhecimento se convertem numa espécie de batalha campal dirigida por ativistas de diversos tipos […]”, assim como também “a aparição de professores como consultores governamentais que adquirem fama e fortuna nos bastidores do poder”.[17]

Em alguns casos o sistema de vouchers foi proposto para mostrar que se argumenta através do voto majoritário que se deveriam financiar os estudos de alguns cidadãos, a partir daí sugere-se que o estado deve possuir como propriedade colégios e universidades. Nesse sentido, o sistema de vouchers demonstra que há um non sequitour, isto é, que da premissa de que possa se utilizar o processo eleitoral para fins expropriatórios de modo que os contribuintes se vejam obrigados a financiar os estudos de outras pessoas, a partir daí segue-se a ideia de que deva existir algo como colégios e universidades estatais. Mas como Armen A. Alchian havia dito: “Argumentar que alguns estudantes devem receber ensino gratuito é o mesmo que argumentar que as pessoas inteligentes têm que lhes dar riqueza para as despesas das menos inteligentes”.[18] Creio que quando o professor Alchian se refere aos estudantes “inteligentes” está na verdade aludindo àqueles que são aptos para o estudo de determinadas áreas, uma vez que o conceito de inteligência é claramente resvaladio. Como explicou Popper, há muitos diferentes tipos de inteligência para diferentes áreas. Essa é a razão pela qual se opõe aos exames de coeficiente de inteligência (diga-se de passagem, nos lembra que Einstein tinha um Q.I. muito baixo).[19] De sua parte Isaac Asimov argumenta que “Enquanto que um professor distraído se limita a se esquecer de seu nome, o dia de hoje, se almoçou ou não nesse dia ou quais são as suas nomeações, se seguirá considerando inteligente enquanto aprender e recordar aspectos que alguns associam à categoria da inteligência”.[20] Inclusive Hans J. Eysenck, um dos mais proeminentes partidários das medidas do coeficiente de inteligência, admite que “Os exames estão baseados em princípios científicos muito sólidos e não há acordo entre especialistas sobre a natureza da inteligência”.[21] De qualquer maneira, o sistema de vouchers também foi sugerido como uma segunda melhor alternativa. Mas não parece adequado que intelectuais propriamente ditos destinem seu escasso tempo para propor segundas melhores alternativas. Talvez seja mais apropriado se concentrar no que agora se considera a melhor. Os que se ocupam com a conjuntura, os burocratas, os jornalistas e os que foram classificados como “intelectuais de segunda mão” se ocuparão com segundas melhores alternativas. Se os intelectuais não se veem envolvidos com nenhum tipo de oportunismo,[22] haverá maiores probabilidades de correr o eixo do debate que para o momento – pois trata-se de um processo evolutivo – o conhecimento disponível ensine o que é melhor. Mas ainda as segundas melhores alternativas não têm limites para baixo, no extremo torna possível que o que se considera politicamente possível como uma segunda melhor alternativa se traduza em aconselhar o estrangulamento de uma pessoa em vez de matá-la com uma espada. Como F. A. Hayek disse, o rol dos intelectuais consiste em converter o que hoje se considera politicamente impossível em politicamente, o qual implica que deve explicar que o ideal até que seja compreendido por um número suficiente de pessoas: “Necessitamos de líderes intelectuais que estejam preparados para fazê-los resistir ao poder e à influência e que estejam preparados para trabalhar por um ideal não importa quão maléfica pareça sua realização”.[23]

Por outro lado, não compartilhamos a ideia de que os governos imponham certa “educação mínima” já que semelhante pretensão se enfrenta com sérias dificuldades. Em primeiro lugar, se concluirmos que a educação consiste em um processo de aprendizagem que os indivíduos levam a cabo em transcurso de suas vidas até atualizar suas personalidades e, ao mesmo tempo, que devemos ter a consciência de que somos todos diferentes, decidir qual é esse mínimo se torna algo puramente arbitrário. Sem dúvida se torna mais importante se manter vivo que ser educado, tanto que, se seguirmos essa linha argumentativa, o governo deveria se ocupar em estabelecer nossa dieta alimentícia independentemente de nossas preferências. Mas se algumas pessoas consideram que todos deveriam receber educação nas áreas de A, B e C e todos concordam com essa crença, não haveria necessidade de impô-la pela força. No entanto, se algumas pessoas preferem educar-se nas áreas D, E e F não há fundamento moral algum para que outros não permitam que alcancem aqueles objetivos e, do contrário, que os obrigue a investir nas áreas A, B e C. É irrelevante se a decisão de impor certa educação é ou não o resultado do voto majoritário ou de qualquer outro critério pelo que se autoriza a uns impor o seu critério aos outros. Johan G. Fichte constitui um exemplo muito bom de quem propicia a educação estatal compulsória. Argumenta que “[…] a nova educação deveria consistir precisamente em aniquilar por completo a liberdade de escolha desde a base que ela pretende cultivar e em troca fazer surgir da vontade uma necessidade rigorosa das decisões e uma impossibilidade do contrário; a partir disso poderá contar e confiar nela com plena segurança”.[24]

Foi dito também que a educação compulsória de um mínimo apresenta “vantagens à sociedade” já que o retorno sobre o investimento mais que compensaria a referida imposição. Neste sentido, foi dito que os benefícios externos derivados da compulsão em matéria educacional se traduzirão em salários mais altos para a população devido à maior capitalização que gerarão as pessoas que receberam essa “melhor” educação. Esta análise deixa de lado o fato de que, precisamente, devido ao que se estimam os benefícios externos e um maior retorno sobre o investimento é que voluntariamente foram estabelecidos colégios, universidades e instituições culturais e filantrópicas dedicadas à educação.[25] Mas não existe fundamento moral, nem jurídico, nem econômico para obrigar João a financiar a educação de Pedro sobre a base de que isso será melhor para João. Se isso for assim, João financiaria voluntariamente; do contrário, se a decisão de João é seguir para outra direção é porque ele estima que tal vantagem não existe. Quando o governo intervém impondo padrões educativos em nome da “solidariedade” ou “igualdade de oportunidades”, os recursos humanos e materiais são assinalados em áreas distintas das que as pessoas escolheram.

Neste sentido pode destacar-se muito especialmente que a igualdade de oportunidades implica um conceito incompatível com a sociedade aberta. A única igualdade compatível com uma sociedade livre é a igualdade perante a lei entendida como o respeito ao direito de todos. A desigualdade natural dos indivíduos conduz a resultados desiguais. E mais, a desigualdade de oportunidades significa ser uma consequência da natureza humana, de diversas disposições, capacidades, talentos, escolhas, gostos e energias mental e física dissimilares. A oportunidade de avaliar um tênis não é a mesma para um atleta que para um não-capacitado. A oportunidade de entender a álgebra não é a mesma para quem não tem dificuldades mentais do que para quem tem. As oportunidades não são as mesmas para o rico que para um relativamente mais pobre. Na sociedade aberta, a energia produtiva conduz a maiores oportunidades, mas não iguais, já que esta última condição necessariamente implica anular a igualdade perante a lei, uma vez que nem todos teriam os mesmos direitos, do que, em última instância, se traduz em menores oportunidades para todos devido à má alocação que essa política produz.[26] Finalmente, recorrer à força através do governo invocando “solidariedade” significa alterar por completo o significado de uma palavra que necessariamente implica ação voluntária com recursos próprios. Aquela contradição em termos que se deu em chamar “estado benfeitor” contribuiu em degradar o significado da beneficência e pôs a caminho incentivos para que os indivíduos tendam a se desinteressar do acaso do seu próximo imaginando que essa é a função do estado para o qual se reduzem recursos da população. Mesmo assim, tende-se a recorrer ao plural perguntando o que devemos fazer diante de tal situação em vez de assumir a responsabilidade de enfatizar o singular no contexto de uma estreita relação entre filantropia e liberdade[27] onde não empregam métodos violentos sem uma agressão prévia. Herbert Spencer manifestou “Que o governo tire uma maior quantidade da propriedade de uma pessoa do que se necessita para proteger os seus direitos constitui uma violação a esses direitos e, portanto, faz com que o governo se volte contra os governados e, se o governo rouba propriedade de pessoas para educar os filhos de outros, se incorre num erro, uma vez que esses recursos já não seriam para proteger direitos”.[28]

Não existe algo como “direito à educação”, isto é um pseudodireito. A contrapartida de todo direito é uma obrigação. Eu tenho o direito ao uso e à disposição de minha casa, o qual implica que existe uma obrigação universal de se respeitá-la, mas se digo que tenho o “direito” a uma casa que não posso comprar e semelhante “direito” me é outorgado, quer dizer que outra pessoa terá a obrigação de financiá-la para mim, a qual obrigação implica a violação do direito dessas outras pessoas. Robert Nozick explicou que “Ninguém tem o direito sobre algo cuja realização requer o uso de coisas e atividades sobre as quais outras pessoas têm direitos”.[29]

Quando escrevemos sobre a educação privada não só estamos excluindo o financiamento governamental de colégios e universidades, como também nos referimos à abolição das isenções fiscais. Como escreveu Henry G. Manne, “[…] as isenções de impostos tanto estatais como federais para as universidades devem ser eliminadas assim como também as deduções feitas a partir do imposto federal aos ganhos quando se realizam contribuições às universidades. Isto não é nada mais que subsídios indiretos feitos pelo governo para as instituições privadas de educação. Não existe justificativa para essa realocação de recursos do contribuinte”.[30]

Deixadas de lado as características subjetivas dos “bens públicos”, é sabido que a educação não possui as características de nonrivalry e non-excluviness. Por outro lado, praticamente todas as atividades contêm elementos de “bens públicos”, e também deve considerar-se que a coerção necessariamente produzirá resultados distintos dos ótimos estabelecidos pelo mercado.[31] Aqueles que estão interessados na educação poderão alcançá-la de acordo com a sua renda ou suas doações disponíveis e, por sua vez, isso depende do estabelecimento de marcos institucionais compatíveis com uma sociedade aberta que maximiza a eficiência, isto é, arranjos livres e voluntários que excluem a fraude e a violência. Em outro contexto, James Buchanan escreveu que:

Se não há critério objetivo para o uso de recursos que não se possa aplicar à obtenção de resultados como medida indireta de comprovar a eficácia do processo de intercâmbio, então, enquanto o intercâmbio se mantiver aberto e se exclua a fraude e a violência, o acordo a que se chega é, por definição, eficiente.[32]

A ideia de que a educação deve se prover por meio da força (isto é, do estado), sobre a base de que é bom para quem recebe welfare, não toma em conta que uma sociedade aberta não deve recorrer à violência quando não se violam direitos de terceiros. O contrário significaria que é possivelmente à força com propósitos agressivos. O enfoque paternalista (a síndrome de “jogar com Deus”) que procura fazer as pessoas melhores contradiz a ideia de respeito recíproco e, por outro lado, a mesma noção de moral e de responsabilidade carece de resultado sem liberdade.

Não devemos perder de vista o fato de que numa sociedade aberta os seres humanos não podem ser usados como meios para os fins de outros, a dignidade da pessoa é um fim em si mesmo. Devemos tratar o direito com seriedade. Não existe algo como uma “entidade social” que possa se invocar para sacrificar direitos, uma sociedade aberta está baseada em princípios éticos.[33] Uma sociedade aberta está baseada nos direitos individuais e como consequência os incentivos correspondentes produzem “o efeito da mão invisível”, mas como Manne disse citando Allan Wallis, “[…] os programas governamentais chamados de bem-estar geralmente se adaptam uma vez que as necessidades são sanadas no setor privado”.[34] Parece que o estado sempre intervém cobrando impostos por aqueles serviços que as pessoas estão interessadas em administrar por conta própria. E não é só isso, o aparato burocrático rouba transmitindo a insistente ideia de que os governados devem entregar crescentes porções do fruto do seu trabalho sem questionamento algum, através de um enxame de impostos que apenas os chamados “especialistas fiscais” dizem entender e, assim, servilmente, render cortesias a estados megalômanos que desenham estratagemas promulgados em linguagem crítica mas sempre sob a indiscutível suposição de que o contribuinte é uma espécie de limão que existe somente para extrair mais suco… tudo isto, claro, é para o seu bem e como amostra de uma educação sã aplicada com bondoso garrote desde os cumes do poder de onde flui uma sapiência nunca dissimulada (sic).

O processo de mercado implica que, ao seguir cada um de seus interesses pessoais, se melhora a condição dos outros. No entanto, dizem que o maior problema de nosso tempo se baseia no fato de que as pessoas se concentram em demasia nos seus interesses. Mas o problema na verdade consiste em que muitas pessoas não se ocupam consigo mesmas: não prestam atenção o suficiente nos seus interesses pessoais os quais prejudicam enormemente a sua própria educação.

Erich Fromm – um marxista e portanto inconsistente no que a direitos humanos se refere – alude à ética autoritária (que no contexto relaciono com os ministérios da educação) e ao tema de interesse pessoal, ambos bem relevantes para a compreensão da educação numa sociedade aberta. Fromm disse que “[…] a ética autoritária nega ao homem sua capacidade para conhecer o que está bem e o que está mal […]. A ética autoritária contesta sobre o que está bem e o que está mal em termos do que interessa à autoridade, não do que está no interesse do governado”.[35] Fromm explica que “o problema da cultura moderna não se fundamenta no seu individualismo nem na sua ideia de que a virtude moral é equivalente ao interesse pessoal, mas na deterioração do significado do interesse pessoal; não no fato de que as pessoas estão demasiado preocupadas com seus interesses, mas devido ao que não estão suficientemente preocupadas com sua pessoa; não no fato de que são demasiado egoístas, mas mais bem no fato de que não se querem o suficiente”.[36]

Albert V. Dicey considera que “[…] são muito poucos os que percebem a verdade de que o estado aniquila a auto-ajuda. Portanto, a maioria da humanidade reclama o favor governamental”.[37] Numa sociedade aberta cada pessoa aloca os seus recursos de acordo com suas preferências. Tomará suas decisões na margem, estimará os seus benefícios adicionais que se obtêm dos gastos adicionais. Continuará em sua atividade enquanto os benefícios marginais excedem os custos marginais e até que ambos os valores sejam iguais. Se os custos marginais excederem os benefícios marginais, o indivíduo mudará de atitude até o ponto em que ambos os valores se assemelhem. A educação compulsória que, por definição, difere das preferências pessoais, produzirá como resultado uma perda e, como foi dito, os subsídios mal alocam os recursos, o que tende a produzir uma perda bruta também para o conjunto. Resumindo, como declarou Ludwig von Mises, “Existe somente uma solução: o estado, o governo e as leis não devem se intrometer na educação. Os fundos públicos devem ser usados para tais propósitos. A educação da juventude deve deixar inteiramente aos pais e às associações e instituições privadas”.[38]

 

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NOTAS

[1] Este trabalho procede de três fontes: no primeiro termo, de um ensaio que intitulei “La educacciónen una sociedad libre”, publicado em Estudios Públicos (Santiago do Chile, Nº XV, inverno de 1984). Em segundo lugar, da primeira de uma série de sete conferências que pronunciei na Universidade Francisco Marroquin em razão de um convite para me outorgar um doutorado honoris causa (agosto de 1996) e, por último, de um capítulo que escrevi em inglês para um livro como Festschrift para o professor Jacques Garello e que se baseou nas minhas aulas na Universidade de Aix em Provence (setembro de 1996). Esta apresentação está agora destinada à Cátedra Manuel F. Ayau: nada melhor que aludir à educação como homenagem a um bom amigo que demonstrou uma coragem e um espírito indomável sempre postos ao serviço de excelência, o qual constitui um exemplo digno de ser imitado pelas gerações futuras.

[2] La sociedad humana (Buenos Aires: Editoral de la Universidad de Buenos Aires, EUDEBA, 1995) Tomo I, p. 200-220. Essa obra se utiliza como texto nas faculdades de ciências da educação, sociologia e ciências da comunicação em distintas universidades do mundo anglo-saxão e, de modo mais estendido ainda, no hispanófono.

[3] J. Ortega y Gasset. El hombre y la gente (Madrid: Alianza Editorial, 1934/1981) p. 175 e ss.

[4] F. A. Hayek. The Fatal Conceit: The Errors of Socialism (Londres: Routledge, 1988) p.6.

[5] El hombre y.. op. cit., p. 285-286. Ênfase minha.

[6] “El espíritu del capitalismo democrático” (Estudios Públicos, Nº XI, Santiago do Chile, outono de 1983) p. 142.

[7] Teacher in America (New York: Double-day, 1945) p. 4

[8] Vid. R. J. Williams. Free and Unequal: The Biological Basis of Individual Liberty (Austin: University of Texas Press, 1953).

[9] Ver H. Rheingold. Virtual Reality (New York: Simon &Schuster, 1991) e D. Hague. Beyond Universities (Londres: The Institute of Economic Affairs, 1991).

[10] The God of Machine (Londres: Transaction Publishers, 1943/1993) p. 258-9. Também ver P. Johnson, “Schools for Attilas”, Enemies of Society (New York: Atheneum, 1977) p. 174 e ss.

[11] Vid.Alberto Benegas Lynch (h) “Educación en una socidad libre”, Estudios Públicos, Santiago do Chile, Nº XV, inverno de 1984.

[12] Education and the state (Londres: The Institute of Economic Affairs, 1970) p. 126 e ss.

[13] op. cit., p.10.

[14] Education without the state (Londres: The Institute of Economic Affairs, 1996) p. 31. Para uma excelente coleção de trabalhos sobre a educação estatal ver Public Education and Indoctrination (Irvington on Hudson, NY: The Foundation for Economic Education, 1993).

[15] lbidem. Para analisar a situação atual dos Estados Unidos vid. T. Sowell. Inside American Education (New York: The Free Press, 1993) e G. Roche. The Fall of the Ivory Tower (Washington D. C.: Regnery Pub., 1994).

[16] Education, Free and Compulsory (New York: Center for Independent Education, 1974). T. Zeldin argumenta que “Os governos modernos, que pretendem controlar mais aspectos da vida das pessoas do que jamais tentaram os reis, são permanentemente humilhados porque os seus reis raramente alcançam o que propõem…” An Intimate History of Humanity (Londres: Minerva, 1994/1996) p. 216.

[17] From Campus To Capitol: The Cost of Intellectual Bankruptey (Rockford, ILL: Rockford College Institute, 1972) P. 9.

[18]  “The Economic and Social Impact of Free Tuition” [1968], Economic Forces at Work (Indianapolis: Liberty Fund, 1977) p. 208. Desde então, a crítica aos vouchers se limita ao financiamento estatal, e são muito louváveis os esforços tendentes a difundir vouchers financiados privadamente como os que atualmente são estabelecidos em algumas fundações para ajudar quem não conta com renda suficiente.

[19] K. Popper e K. Lorenz. El porvenir está abierto (Barcelona: Tusquets, 1983/1992) F. Kreuzer ed., p. 138 e ss. Também ver H. Gardner. Estructuras de la mente: la teoría de las inteligencias múltiples (México: Fondo de Cultura Económica, 1994), J. A. Marina. Teoria de la inteligencia creadora (Barcelona: Anagrama, 1995) e D. Goleman. Emotional Intelligence (New York: Bantam Books, 1995).

[20] “Thinking about Thinking”, The Planet That Wasn’t (New York: Avon Books, 1977) p. 201.

[21] Know your own IQ (New York: Penguin Books, 1990) p.8.

[22] J. Barzun escreve que “Os intelectuais se queixam de seu prestígio e autoridade perdidos, mas muitos deles foram pouco mais do que serventes de poder”. The House of Intellect (New York: Harper & Brothers, 1959) p. 9.

[23] “The Intellectuals and Socialism” [1949], Studies, Politics and Economics (Chicago: The University of Chicago Press, 1967) p. 194. Também ver W. H. Hutt. Politically impossible? (Londres: The Institute of Economic Affairs, 1971).

[24] Discursos a la nación alemana (Madrid: Tecnos, 1908/1988) p. 30-31.

[25] Para a distinção entre benefícios e benefícios externos ver D. Friedman. Hidden Order (New York: Harper Business, 1996) p. 272.

[26] Vid. Alberto Benegas Lynch (h) Contra la corriente (Buenos Aires: Editorial El Ateneo, 1992) p. 402 e ss.

[27] Para algumas considerações em torno dessa correlação ver R. C. Cornvelle. Reclaiming The American Dream: The Role of Private Individuals and Voluntary Associations (Londres: Transaction Pub., 1965/1993) cap. 4 e A. Wolfe “What Ever Happened to Compassion?” (Critical Review, New Haven, CT, vol. 7, # 4, outono de 1993). Wolfe adere à sugestão de M. Olasky que argumenta que o “estado benfeitor” tende a deslocar as “obras filantrópicas privadas” do mesmo modo que faz a Lei de Gresham (p.499), a qual explica que a moeda má desloca a boa no contexto de tipos de câmbio fixo.

[28] Social Statics (New York: R. Schalkenbach Foundation, 1850/1954) p. 294-5. Também ver A. Herbert, The Right and Wrong of Compulsion by the State and other Essays (Indianopololis: Liberty Classies, 1873/1978), Essay Two: “State Education: A Help or Hindrance?” p. 53 e ss. e P. Goodman. Compulsory Mis-Education and the Community of Scholars (New York: Vintage Press, 1964).

[29] Anarchy, State and Utopia (New York: Basic Books, 1974) p. 238.

[30] “The Political Economy of Modern Universities”, Education in a Free Society (Indianapolis: Liberty Fund, 1973) p. 125.

[31] Vid. D. Schmidtz. The Limits of Government: An Essay on the Public Good Argument (San Francisco: Westview Press, 1991) e A. de Jasay. Social Contract, Free Ride (Oxford: Clarendon Press, 1989).

[32] “Rights, Efficiency and Exchange: The Irrelevance of Transaction Costa” [1983], Liberty, Market and State (New York: New York University Press, 1985) p. 95; a análise de Buchanan da eficiência “[…] se eleva ou sobe um escalão mais e fica no plano das instituições ou normas”. (loc. cit.).

[33] Vid. a segunda fórmula do imperativo categórico kantiano e R. Nozick, Anarchy.., op. cit., p. 31-33.

[34] “The Political Economy..,”, op. cit. p. 109-110. Cfr. R. M. Hartwell, Introdução a The Politicization of Society (Indianapolis: Liberty Press, 1979), K. S. Tempelton ed., p. 7 e ss. F. Hölderin argumentou que “O que sempre converteu o estado em um inferno na terra é justamente a tentativa do homem em transformá-lo em seu paraíso”, cit. por G. Sartori, “¿La izquierda? es la ética”, Izquierda punto cero (Barcelona: Paidós, 1996) p. 100; G. Bosetti, comp.

[35] Man for himself (New York: Henry Holt & Co., 1947/1990) p. 10.

[36] libd,. p. 139.

[37] Lectures on the Relation Between Law and Public Opinion in England During the Nineteenth Century (Londres: Macmillan, 1914) p. 257.

[38] Ludwig von Mises. The Free and Prosperous Commonwealth (Priceton, NJ: Van Nostrand, 1927/1962) p. 115. Como disse George Manson, “Fica absolutamente necessária a referência frequente aos princípios fundamentais aos efeitos de preservar as bendições da liberdade”. K. M. Rowland. The Life of George Mason (New York: Putnam’s, 1892/1954) p. 435.

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