Capítulo III – LIVRE EXPRESSÃO- 1. O chantagista

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À primeira vista, não é difícil responder a pergunta: “A chantagem é realmente ilegítima?” O único problema que ela poderia trazer é “Mas, afinal, por que esta pergunta?” Os chantagistas não…  bem, eles não chantageiam pessoas? E o que poderia ser pior do que isso? Os chantagistas se alimentam dos piores segredos das pessoas.  Ameaçam expô-los e torná-los públicos.  Eles extorquem dinheiro de suas vítimas e, não raro, levam-nas ao suicídio. 

Descobrimos, entretanto, que as alegações contra o chantagista não sobrevivem a uma análise séria; estão baseadas num entrelaçado de senhas não averiguadas e mal-entendidos filosóficos. 

O que é, exatamente, um chantagista? A chantagem é uma oferta de comércio. É o oferecimento de comerciar algo, geralmente o silêncio, em troca de algum outro bem, geralmente em dinheiro.  Se a proposta é aceita, então o chantagista mantém seu silêncio, e o chantageado paga o preço combinado.  Se a oferta do chantagista é rejeitada, o chantagista pode exercer seu direito de livre expressão e levar o segredo a conhecimento público.  Não há nada de impróprio nisso.  Só o que acontece, é que é feita uma oferta de manter silêncio.  Quando a oferta é rejeitada, o chantagista nada mais faz do que exercer seu direito de falar livremente.  

A única diferença entre o fofoqueiro e o chantagista é que, por um preço, o chantagista se abstém de falar.  De certa forma, o fofoqueiro é muito pior do que o chantagista, pois o chantagista dá ao chantageado a chance de mantê-lo em silêncio.  O fofoqueiro expõe o segredo sem avisar.  A pessoa que tem um segredo, não está melhor nas mãos de um chantagista do que nas de um fofoqueiro? Com o fofoqueiro, tudo está perdido; com o chantagista, a pessoa só pode ganhar ou, pelo menos, não ficar pior do que ficaria com o fofoqueiro.  Se o preço pedido pelo chantagista é menor do que o que o segredo vale, a pessoa que possui o segredo paga o chantagista – sendo este o menor dos dois males.  Com isso, ela ganha para si a diferença entre o que o segredo vale e o preço do chantagista.  Quando o chantagista pede mais do que o que o segredo vale, seu pedido não é atendido, e a informação se torna pública.  No entanto, neste caso, a pessoa não fica pior com o chantagista do que ficaria com o fofoqueiro inveterado.  Fica bastante difícil, então, sermos responsáveis pelo vilipendio que sofre o chantagista, pelo menos se comparado ao fofoqueiro, que geralmente é dispensado com ligeiro desprezo e presunção. 

Chantagem não é, necessariamente, a oferta de silêncio em troca de dinheiro.  Esta é apenas a forma mais conhecida.  Mas a chantagem pode ser definida sem referência a qualquer dos dois. Definida em termos gerais, chantagem é a ameaça de se fazer algo – qualquer coisa – (o que não é, em si, ilegal), a não ser que certas exigências sejam atendidas. 

Muitos atos na arena pública caracterizam atos de chantagem, mas, em vez de serem vilipendiados, não raro seus autores chegam a ganhar respeitabilidade! Por exemplo, o recente boicote à alface é uma forma de chantagem.  Através do boicote à alface (ou de qualquer boicote),são feitas ameaças aos varejistas e atacadistas de frutas e verduras.  Se eles lidarem com alfaces fora das regras do sindicato, garantem os boicotadores, as pessoas serão mobilizadas a não comprarem em seus estabelecimentos.  Isso se conforma perfeitamente à definição: a ameaça de que algo, não ilegal em si, acontecerá, a não ser que certas exigências sejam atendidas. 

Mas e quanto às ameaças que a chantagem envolve? Este é, talvez, mais do que qualquer outro, o aspecto mais mal-entendido e temido da chantagem.  A primeira vista, ficamos inclinados a concordar que ameaças são algo imoral.  A máxima usual contra a agressão, por exemplo, adverte, não só da agressão em si, mas também da ameaça de agressão.  Se um assaltante de estrada faz sinal de parar a um viajante, geralmente é a ameaça de agressão, ela só, que compele o viajante a obedecer. 

Consideremos a natureza das ameaças.  Se a ameaça é de violência agressiva, ela é condenável.  Nenhum indivíduo tem o direito de cometer violência agressiva contra outro.  Na chantagem, entretanto, o que se “ameaça fazer” é algo que o chantagista tem todo o direito de fazer! – quer seja exercer o direito de livre expressão, ou recusar-se a comprar em certas lojas, ou persuadir outros a fazê-lo.  O que se ameaça fazer não é, em si próprio, ilegítimo; portanto, não se pode chamar a “ameaça” de uma “ameaça ilegítima”. 

A chantagem só pode ser ilegítima quando há um especial relacionamento anterior entre o chantagista e o chantageado.  Alguém com um segredo pode revelá-lo a um advogado ou investigador particular contratado, com a condição de que a confidencia seja mantida em segredo. Se o advogado ou investigador particular tenta chantagear o que tem o segredo, isso é uma violação do contrato e, portanto, ilegítimo.  No entanto, se um estranho mantém o segredo sem estar contratualmente obrigado a isso, então é legítimo colocar seu silêncio à venda. 

Além de ser uma atividade legítima, a chantagem tem alguns bons efeitos, não importando a ladainha que contra ela possa ser feita.  Afora algumas vítimas inocentes que são apanhadas na rede, de quem o chantagista geralmente pode extorquir? Há dois grupos principais.  Um é composto de criminosos: assassinos, ladrões, caloteiros, estelionatários, trapaceiros, estupradores etc.  O outro grupo consiste de pessoas que participam de atividades não ilegítimas em si próprias, mas que contrariam os hábitos e costumes da maioria: homossexuais, sados masoquistas, pervertidos sexuais, comunistas, adúlteros etc.  A instituição da chantagem possui efeitos benéficos, embora diferentes, sobre cada um desses grupos. 

No caso dos criminosos, a chantagem e a ameaça de chantagem servem para conter os crimes. Ela se soma aos riscos envolvidos na atividade criminosa.  Quantas das “gorjetas” anônimas recebidas por policiais – cujo valor não pode ser superestimado – podem estar ligadas, direta ou indiretamente, à chantagem? Quantos criminosos são levados a executarem o crime eles próprios, renunciando à ajuda de colegas criminosos em “serviços” para os quais precisam de cooperação, de medo de uma possível chantagem? Por fim, há aqueles indivíduos que estão à beira de cometer crimes ou na “margem da criminalidade” (como diriam os economistas), em que o mínimo fator pode propeli-los para um caminho ou para o outro.  O medo adicional da chantagem pode bastar, em alguns casos, para dissuadi-los do crime. 

Se a própria chantagem fosse legalizada, seria, sem dúvida, um fator de contenção ainda mais efetivo.  A legalização resultaria, indubitavelmente, em um aumento da chantagem, com concomitantes devastações sobre a classe criminosa. 

Diz-se, às vezes, que o que diminui o crime, não é a penalidade atrelada a ele, mas sim a certeza de ser apanhado.  Embora esta controvérsia vogue com grande relevância nos atuais debates sobre a pena de morte, basta destacar que a instituição da chantagem faz ambas as coisas.  Ela aumenta a penalidade associada ao crime, na medida em que força os criminosos a dividirem parte do produto de seus crimes com o chantagista.  Também aumenta a probabilidade de o criminoso ser apanhado, já que os chantagistas somam-se às forças policiais, aos grupos comunitários e de vigilantes e outras unidades anticrime.  Os chantagistas, que em geral são membros de status no mundo do crime, estão em posição de vantagem para frustrar os crimes.  Sua condição de estar “por dentro” sobrepuja até mesmo a do espião ou infiltrado, que é forçado a representar um papel. Legalizar a chantagem, portanto, possibilitaria às unidades anticrime tirarem vantagem, ao mesmo tempo, de dois adágios básicos de combate ao crime: “dividir e conquistar” e “falta de honra entre ladrões”.  Fica bastante claro que um efeito importante de legalizar-se a chantagem seria diminuir o crime – o crime real, note-se. 

A legalização da chantagem também surtiria efeitos benéficos sobre ações que não envolvessem agressão, mas que estivessem em desacordo com os costumes da sociedade como um todo.  Sobre essas ações, a legalização da chantagem teria um efeito de liberação.  Mesmo agora, que a chantagem é ilegal, estamos testemunhando alguns de seus efeitos benéficos.  O homossexualismo, por exemplo, é tecnicamente ilegal em alguns casos, mas não é realmente um crime, desde que não envolva agressão.  Para os homossexuais, individualmente, a chantagem quase sempre causa um dano considerável e dificilmente pode ser considerada benéfica.  Mas para o grupo como um todo, ou seja, para cada indivíduo como membro do grupo, a chantagem tem ajudado, tornando o público mais cônscio e acostumado à existência do homossexualismo.  Forçar membros individuais de um grupo socialmente oprimido a assumirem abertamente sua condição ou “saírem de seus cuidados” não pode, é claro, ser considerado um serviço.  O uso da força é uma violação dos direitos dos indivíduos.  Ainda assim, gera uma consciência, da parte de membros de um grupo, da existência uns dos outros.  Ao forçar essa percepção, a chantagem pode, legitimamente, ter uma pequena fatia de crédito em liberar pessoas cujo único crime é um desvio da norma, num caminho não criminoso. 

Se refletimos sobre o velho aforismo “a verdade o libertará”, a única “arma” à disposição do chantagista é a verdade.  Ao usar a verdade para sustentar suas ameaças (como, na ocasião, tem de fazer), ele torna a verdade livre, quase sempre sem essa intenção, para fazer o que de bom ou ruim ela é capaz de fazer.

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