[Prefácio do livro Angola: O Que Deve Ser Feito? Um Enquadramento Teórico-Histórico, de José Macuva Chipalanga, publicado hoje pelo Instituto Rothbard]
Uma coisa é certa, os Remanescentes existem. Escrevendo durante a primeira metade do século XX, Albert Jay Nock, autor libertário americano da Velha Direita, constatou[1] que existem dois tipos de empreitadas intelectuais. O primeiro tipo é destinado a atingir as massas, e, portanto, visa agradar o “menor denominador comum de intelecto, gosto e caráter entre milhões de pessoas”. O segundo consiste apenas em pregar a verdade, doa a quem doer, não se importando com o tamanho de sua audiência, atingindo assim um pequeno número de pessoas “que pela força do intelecto são capazes de apreender esses princípios, e pela força do caráter são capazes, pelo menos de forma mensurável, de se apegar a eles”. A esse grupo Nock chamou de Remanescentes.
Os Remanescentes existem, “obscuros, desorganizados, inarticulados, cada um sobrevivendo da melhor maneira que pode”, e são poucos os que assumem a missão de comunicar ideias a eles, pois dela não se espera riqueza e notoriedade – ao contrário, “a classe oficial e sua intelectualidade torcerão o nariz para você e as massas nem sequer o ouvirão”. Durante o século XX, um economista austríaco chamado Ludwig von Mises abriu mão de uma carreira acadêmica láurea e bem remunerada para desenvolver e difundir a verdadeira ciência econômica, que ele chamou de praxeologia – a ciência da ação humana – cujas proposições são axiomáticas lógico dedutíveis – ou seja, são irrefutáveis. Os postulados misesianos contrariavam o mainstream econômico que havia sido varrido pelo keynesianismo, uma teoria econômica espúria que só prevaleceu pois serviu como uma pseudojustificação àquilo que os estados já estavam fazendo, uma política de inflacionismo, tributação e gastos elevados. Mises teve um único cargo acadêmico remunerado em sua vida, na Universidade de Genebra, de 1934 até fugir dos nazistas para os EUA em 1940.[2]
Mas Mises foi ouvido por alguns Remanescentes, sendo o mais brilhante entre eles o economista Murray Rothbard, aluno de seu seminário na New York University. Rothbard assumiria a missão de Mises, aperfeiçoando e propagando sua metodologia econômica intransigente e impopular e a unificaria com a ética universal dos direitos naturais, originando o Libertarianismo moderno, ou austrolibertarianismo. E como Mises, Rothbard também foi desprestigiado pelo meio acadêmico, o que não o impediu de se comunicar com os Remanescentes por meio de montanhas de livros, artigos, periódicos e apresentações. Antes da era da internet, o mais distinto Remanescente alcançado pelas publicações de Rothbard foi o economista alemão Hans-Hermann Hoppe, que em 1985 se mudou para os EUA, onde ficaria ao lado de Rothbard até sua morte em 1995. Hoppe aprimorou ainda mais a teoria econômica e filosófica do austrolibertarianismo e é atualmente sua principal figura.
A missão obtém uma ajuda substancial em 1982, quando Rothbard se junta ao editor Llewellyn H. Rockwell, Jr. e juntos fundam o Ludwig von Mises Institute, que seria por décadas o epicentro do austrolibertarianismo, alcançando Remanescentes no mundo inteiro, principalmente após o lançamento de seu website. Os Remanescentes existem, e eu sou um deles. Sou um dos que foi alcançado pelo website do Mises Institute na primeira metade dos anos 2000.[3] Além das ideias de Mises, Rothbard e Hoppe terem ressoado em mim, também fui impelido a avançar a missão e tentar comunicá-las a Remanescentes falantes da língua portuguesa. Assim, em 2007, ao lado dos meus dois irmãos, fomos uns dos fundadores do Instituto Ludwig von Mises Brasil, com o principal foco de traduzir para o português e divulgar o conteúdo do Mises Institute. Inicialmente, tivemos um grande sucesso ao conseguir sermos reconhecidos por muitos Remanescentes, mas dificuldades surgiriam. O patrocinador do instituto tinha objetivos diferentes e decidiu estabelecer “metas de crescimento” ao nosso editor, que, como bom funcionário, aquiesceu. Ao abrir mão do rigor intelectual para satisfazer os humores das massas, a mensagem é deturpada e os Remanescentes percebem e se afastam, como Nock explica:
“Se for um escritor, seu objetivo é conseguir muitos leitores; se um editor, muitos compradores; se um filósofo, muitos discípulos; se um reformador, muitos convertidos; se for músico, muitos ouvintes; e assim por diante. Mas, como vemos por todos os lados, na realização desses vários desejos, a mensagem profética é tão fortemente adulterada com trivialidades, em todos os casos, que seu efeito sobre as massas é apenas para endurecê-las em seus pecados. Enquanto isso, os Remanescentes, cientes dessa adulteração e dos desejos que a provocam, dão as costas ao profeta e não querem ter nada a ver com ele ou sua mensagem.”[4]
Logo, a situação de disparidade de missões se tornaria insustentável, e em 2014 alteramos o nome do Instituto Mises Brasil para Instituto Rothbard e seguimos caminhos separados dos usurpadores que ficaram com o Mises Brasil.[5] Com isso tivemos uma grande diminuição de audiência, mas nunca nos importamos com isso. Sempre priorizamos a qualidade e nunca a quantidade de nosso público. De fato, até gostamos de diminuir o tamanho de nossa plateia. Por exemplo, periodicamente quando algumas de nossas ideais estão reverberando mais fortemente entre a direita política, promovemos a “Hora de Perder Seguidores”, que consiste em postarmos artigos sobre a liberalização das drogas, os crimes do Estado de Israel ou qualquer outra estultice antilibertária que seja cara à direta. Só nos importamos com os Remanescentes.
Nosso foco era o nosso país, o Brasil, e nem levamos muito em consideração o resto do mundo lusófono, embora soubéssemos que a internet não tem fronteiras e poderíamos chegar a todos os falantes de português no mundo – se eles realmente estivessem buscando respostas verdadeiras. Pois então, em 2021, travei contato, através da rede social Facebook, com José Macuva Chipalanga, um austrolibertário angolano. Pouco depois ele me enviou um artigo de sua autoria, “A pobreza: causas e implicações”[6], para ser publicado no Instituto Rothbard. Me lembro o quão agradavelmente surpreso fiquei com o conteúdo do texto: havíamos nos encontrado com um Remanescente de Angola! Pouco depois, a censura das grandes empresas de tecnologia se agravaria, e após muitas suspensões por divulgar opiniões dissidentes – e verdadeiras – sobre a fraude da ditadura Covid, eu abandonaria definitivamente o Facebook, perdendo assim o contato com Chipalanga, que chegou a me enviar outros dois grandes artigos que foram prontamente publicados.[7]
O contato foi reestabelecido no final de 2024, quando recebi um correio eletrônico de Chipalanga contendo não um artigo, mas um livro, este que o leitor tem em mãos, cujo prefácio estou tendo a honra de redigir, e no qual o primoroso artigo “A pobreza: causas e implicações” reaparece em versão estendida e melhorada como o capítulo 15.
Angola e Brasil compartilham o mesmo idioma oficial, mas a colonização portuguesa deixou mais do que uma língua comum entre os dois países. Durante o período colonial, Angola chegou a se relacionar mais diretamente com o Brasil do que com a metrópole portuguesa, e quando o Brasil proclamou sua independência em 7 de setembro de 1822, surgiu em Benguela uma corrente política determinada a unir Angola ao Império Brasileiro.[8] Esta união política nunca se concretizou, mas a união cultural foi materializada pela grande imigração forçada – vindos como escravos – de angolanos para o Brasil. Os angolanos não trouxeram apenas sua força de trabalho, mas também seus inseparáveis modos de vida e tradições, que se mesclaram a tantos outros e formaram a nação brasileira. Mas Chipalanga não imputa nada de positivo à colonização portuguesa, pelo contrário! No capítulo 1 ele apresenta uma reconstrução revisionista de toda história do território que hoje é delimitado no mapa como Angola e indica como os portugueses destruíram a ordem natural harmônica que prevalecia até então:
“Na costa, os portugueses conquistaram Benguela, Moçamedes e assim se instalaram no interior, conquistando outros reinos. Foi um processo longo que se consolidou ao longo dos 500 anos.
Assim, o período colonial marcou a decadência, perversão e a subordinação dos poderes locais, dando lugar a um novo sistema político baseado no avassalamento e centralização política. Esse período foi igualmente marcado pela degradação moral, aculturação forçada e empobrecimento gradual, causadas por uma cultura política e econômica totalmente adversa à civilização local.” (pág.39)
Logo de início já vemos a importância da obra de Chipalanga, que absorveu os ensinamentos da tradição austrolibertária, passada de Remanescente para Remanescente, e os aplica brilhantemente ao contexto angolano. Não existe uma história neutra. Um historiador, por mais imparcial que tente ser, sempre irá introduzir um viés, nem que seja ao escolher os fatos que pretende incluir e excluir de sua história. O bom historiador deve ser conhecedor da sólida teoria econômica. Rothbard[9] e Hoppe[10] sempre ressaltaram a importância do revisionismo histórico e os grandes economistas austríacos também foram grandes historiadores, como Friedrich A. Hayek[11] e o próprio Rothbard[12]. O nosso Remanescente angolano entendeu perfeitamente que as políticas em vigor no presente são baseadas em narrativas históricas deficientes e que é preciso refutá-las e oferecer uma narrativa alternativa correta para mudar o futuro.
A África, com exceção do Egito, não desenvolveu a escrita, então historiadores precisam recorrer a outros meios para desvendar o passado, como a arqueologia e a linguística. Na chegada dos portugueses, o noroeste da atual Angola era ocupado por parte do que foi chamado por eles de Reino do Congo, governado pelo manicongo. Em sua obra sobre a história da África, A enxada e a lança, Alberto da Costa e Silva relata:
“Para alguns autores, o território sob o mando do manicongo seria bem menor. Poderia até mesmo restringir-se a uma simples chefia numa pequena colina do planalto de Mpemba. O manicongo não passaria, assim, no fim do século XV, de simples soba de aldeia, mas que, por ser herdeiro direto da linhagem de Antino-Uene ou Luqueni, tinha um direito de senioridade sobre os outros chefes de linhagens, cada um deles mestre de suas gentes e de suas aldeias e a competir com os demais. Ele era um ponto inicial de uma rede de fidelidades rituais — e teria sido isso o que os primeiros viajantes e missionários tomaram como a estrutura de um reino. Confundiram com províncias de um estado centralizado um conjunto de grupos de linhagens unidos por laços de parentesco real ou simbólico e a deverem respeito, mas não submissão, ao sucessor do chefe originário comum, o Antino-Uene.”[13]
Podemos ver que, logo de início, os europeus recém-chegados projetaram sobre o território alheio seus próprios sistemas organizacionais, interpretando erroneamente a estrutura política da região. Chipalanga nos mostra como os portugueses imporiam formas de administração estranhas aos territórios conquistados, “que consistiam em modelos mais tradicionais e formais como os municípios e as capitanias-donatárias e os modelos menos institucionalizados como são as fortalezas/feitorias, os contratos, os protetorados, os tratados de paz, vassalagem e os vínculos políticos informais.” A esse respeito, além de relatos da literatura histórica, Chipalanga também se utiliza da tradição oral recebida de seus antepassados e da realidade prática atual de sua vida como habitante local para descrever a Angola antes dos portugueses:
“A nossa história revela a existência de um sistema político-administrativo com regiões ou fronteiras devidamente delimitadas, criadas de forma espontânea ao longo da história. Essas regiões administrativas eram ou são chamadas de Ombalas e tinham como autoridade máxima o Soma, em língua umbundo, tendo-se aportuguesado para soba. Na verdade, a Ombala era historicamente um território habitado por famílias extensivas, sendo o Soba uma extensão do poder paternal. Esses territórios dissolviam-se ou se separavam à medida que a densidade populacional aumentava e se perdiam os laços familiares. As sociedades antigas eram estruturadas por um conjunto de aldeias ou quimbos, todas elas subordinadas a uma única autoridade do ‘Soma’.” (pág.31)
Sendo que os sobados funcionavam como governos soberanos completamente autônomos, o que tínhamos em Angola era algo muito próximo do que Hoppe defende que seja buscado em todo o mundo, uma secessão extensa o suficiente que consista “em centenas de países, regiões e cantões distintos, de milhares de cidades livres e independentes (como as ‘esquisitices’ atuais de Mônaco, San Marino e Andorra). Isso proporcionaria “um crescimento econômico sem paralelo e uma prosperidade sem precedentes.”[14]
Além da vital desmitificação da história, também é essencial refutar os mitos teóricos que fundamentam as políticas públicas que são causa de desgraça e empobrecimento para muitos explorados e dádivas e fortuna para poucos exploradores. Chipalanga ataca a mitologia teórica com maestria, no melhor estilo da tradição austrolibertária. Ele descreve como as ciências sociais foram deturpadas, relativizadas e esvaziadas de sua capacidade de examinar fenômenos sociais e passaram a ser usadas pelas elites como instrumento de opressão:
“Uma vez a ciência econômica transformada no ramo do saber inútil, que não consegue dar informação sobre a realidade social e ainda sendo possível falsear e experimentar por engenharias sociais os fenômenos sociais, foi fácil para os poderosos usarem-na como uma arma na busca de seu próprio objectivo de aumentar o seu controlo sobre os outros homens e de enriquecer-se à custa destes. Com isso, o método positivo passou a granjear todo tipo de apoio e as escolas passaram a ser subsidiadas pelo estado, gerando a economia positiva, direito positivo e a história positiva.” (pág.82)
De fato, a teoria econômica mainstream – ensinada quase que exclusivamente em todas as faculdades e utilizada por praticamente todos os chamados especialistas que orientam políticas públicas e ocupam posições de comentaristas econômicos na grande mídia – é a economia positiva. A economia positiva consiste em um método inapropriado à ciência econômica e “estimula, em termos intelectuais, um distanciamento da ordem de livre mercado, pavimentando o caminho para o coletivismo, o socialismo e até mesmo para o totalitarismo.”[15] Chipalanga, armado com a ciência apriorística austríaca, sai à caça e abate muitos mitos econômicos que ao serem levados à sério geram consequências desastrosas para a sociedade angolana, como “protecionismo”, “assimetrias regionais”, “inflacionismo” e muitos outros.
Durante décadas, o professor Hoppe não apenas refutou mitos econômicos e destruiu mitos históricos como também formulou propostas positivas sobre o que deveria ser feito. O que deve ser feito[16] é o título de um de seus livros, que foi inspirado no título do livro de 1902 de Vladimir Lenin, Que fazer?[17]. Lenin descreveu o que deveria ser feito para implantar o comunismo, enquanto Hoppe, ao contrário, descreveu o que deve ser feito para se alcançar uma sociedade livre. Por sua vez, Chipalanga se inspira em Hoppe para intitular este livro, Angola: o que deve ser feito? Um enquadramento teórico-histórico, e expõe a seguir o que deve ser feito em seu país para restaurar a antiga ordem natural de liberdade e justiça. Se você está lendo este livro é porque Chipalanga aceitou a missão de se comunicar com os Remanescentes, e você muito provavelmente faz parte da minoria destes que “precisam ser encorajados e animados porque quando tudo tiver sido completamente deteriorado, são eles que voltarão e construirão uma nova sociedade”.[18]
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Notas
[1] Albert Jay Nock, “A missão de Isaías”. Disponível em https://rothbardbrasil.com/a-missao-de-isaias/
[2] Murray N. Rothbard, “Mises e o papel do economista nas políticas públicas”. Disponível em https://rothbardbrasil.com/mises-e-o-papel-do-economista-nas-politicas-publicas/
[3] Fernando Chiocca, “Hoppe e o atual estágio do austro-libertarianismo no Brasil”. Disponível em https://rothbardbrasil.com/hoppe-e-o-atual-estagio-do-austro-libertarianismo-no-brasil/
[4] Nock, “A missão de Isaías”. Ibid.
[5] Cristiano Fiori Chiocca, “Colocando o IMB de volta nos trilhos – Uma entrevista esclarecedora com o presidente Cristiano Chiocca”. Disponível em https://rothbardbrasil.com/colocando-o-imb-de-volta-nos-trilhos-uma-entrevista-esclarecedora-com-o-presidente-cristiano-chiocca/
[6] José Macuva Chipalanga, “A pobreza: causas e implicações”. Disponível em https://rothbardbrasil.com/a-pobreza-causas-e-implicacoes/
[7] Chipalanga, “A falácia da proteção e da segurança estatais” e “A economia petrolífera e o rastro de maldição e miséria”. Disponíveis em https://rothbardbrasil.com/author/jose-macuva-chipalanga/
[8] Alberto da Costa e Silva, Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2011.
[9] Murray N. Rothbard, “Em defesa do revisionismo (e contra uma história a priori)”. Disponível em https://rothbardbrasil.com/em-defesa-do-revisionismo-e-contra-uma-historia-a-priori/
[10] Hans-Hermann Hoppe, “A busca libertária por uma narrativa histórica global”. Disponível em https://rothbardbrasil.com/a-busca-libertaria-por-uma-grande-narrativa-historica/
[11] F.A. Hayek, ed., Capitalism and the Historians. Chicago: University of Chicago Press, 1954.
[12] Conceived in Liberty. Auburn, AL: Mises Institute, 2011
[13] Alberto da Costa e Silva, A enxada e a lança: A África antes dos portugueses. Nova Fronteira, 1992.
[14] Hans-Hermann Hoppe, “Nacionalismo e Secessão”. Disponível em https://rothbardbrasil.com/nacionalismo-e-secessao/
[15] Thorsten Polleit, “O apriorismo de Mises contra o relativismo na ciência econômica”. Disponível em https://rothbardbrasil.com/o-apriorismo-de-mises-contra-o-relativismo-na-ciencia-economica/
[16] Hans-Hermann Hoppe, O que deve ser feito. Instituto Rothbard, São Paulo, 2012.
[17] V.I.Lênin, Que Fazer? Problemas Candentes do Nosso Movimento. Editorial Avante, 1977.
[18] Nock, “A missão de Isaías”. Ibid.