Capítulo III – LIVRE EXPRESSÃO- 3. O que nega liberdade acadêmica

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Sobre a questão da liberdade acadêmica, já rolaram mais lágrimas de crocodilo do que, talvez, sobre qualquer outra questão.  Os acadêmicos provavelmente são mais eloquentes quando se trata de sua liberdade do que com relação a qualquer outro tópico que mereça sua atenção.  Aos olhos de alguns, isso parece ser a própria base da civilização ocidental! Dificilmente passa-se um dia sem declarações indignadas do American Civil Liberties Union sobre alguma violação, real ou imaginária, da liberdade acadêmica.  E tudo isso parece fraco, comparado à fúria dos sindicatos dos acadêmicos e professores profissionais. 

Pelo próprio nome, a liberdade acadêmica pareceria bastante inócua.  Certamente, os “acadêmicos”, como qualquer outra pessoa, devem ter liberdade – liberdade de expressão, liberdade de viajar, liberdade de entrar e sair de um emprego -, as liberdades usuais de que todo mundo goza.  Mas não é isso que se quer dizer com o termo “liberdade acadêmica”.  Ao contrário, ele tem um significado muito especial – a liberdade de dar a matéria da maneira que (o acadêmico) bem entender, apesar de quaisquer desejos em contrário que seu empregador possa nutrir. Portanto, a “liberdade acadêmica” proíbe o empregador de demitir o professor, contanto que este ensine a matéria, não importando o quão discutível seja sua prática docente. 

Agora, essa é uma doutrina muito especial; espetacular mesmo.  Consideremos o que aconteceria, se fosse aplicada a praticamente qualquer outra ocupação – obras sanitárias ou encanamentos.  A “liberdade do encanador” consistiria do direito de instalar canos e equipamentos de encanamento da forma que achasse melhor.  E daí que o cliente quisesse seu encanamento feito de forma diferente da do julgamento profissional do encanador? Sem a doutrina da “liberdade do encanador”, o encanador teria, é claro, a liberdade de recusar o serviço.  Mas sob a doutrina da “liberdade do encanador”, ele não teria de rejeitá-lo; ele teria o direito de pegar o serviço e fazê-lo sua moda.  Teria o direito de dizer que suas opiniões deveriam prevalecer, e o cliente não teria o direito de dispensá-lo. 

A “liberdade do motorista de táxi” garantiria aos motoristas o direito de irem aonde quisessem, independentemente de para onde os clientes que os estivessem pagando quisessem ser levados.  A “liberdade do garçom” daria ao garçom o direito de escolher o que você iria comer.  Por que os encanadores, os garçons e os motoristas de táxi não poderiam ter uma “liberdade vocacional”? Por que esta deve ser reservada aos acadêmicos?

Basicamente, a diferença que se diz existir entre essas vocações e a acadêmica, é que a acadêmica exige livre investigação, direitos irrestritos de expressão e o direito de seguir ideias, aonde quer que elas levem.  Essa alegação e essa distinção são feitas, naturalmente, pelos acadêmicos.  Além de ser censuravelmente elitista, falta a esse argumento um ponto importante, que não diz respeito ao quê a atividade intelectual envolve: a impropriedade de a “liberdade vocacional” sustentar o “direito” do empregado a um emprego à base de requisitos puramente formalistas, independentemente das vontades e desejos dos clientes e dos empregadores. 

Havendo aceitação do argumento elitista de que às profissões “intelectuais” deve ser atribuída uma liberdade inadequada a outras profissões, como ficariam outras que se qualificam como “intelectuais”? E a “liberdade médica” para os médicos, a “liberdade jurídica” para os advogados, a “liberdade artística” para os artistas etc.? A “liberdade médica” poderia dar aos médicos o direito de fazerem cirurgias quer os pacientes aprovassem ou não.  Impediria os pacientes de dispensarem os médicos cujos procedimentos aqueles desaprovassem? A “liberdade do artista” daria aos artistas o direito de cobrarem pela arte que não se quis nem se apreciou? Considerando a forma como opera a “liberdade acadêmica”, todas essas perguntas têm de ser respondidas afirmativamente. Estremecemos com a possibilidade de essas liberdades serem concedidas a químicos, advogados ou políticos. 

O que realmente se debate na questão da “liberdade acadêmica” é o direito dos indivíduos fazerem contratos livremente uns com os outros.  A doutrina da liberdade acadêmica é uma negação da inviolabilidade de um contrato.  As vantagens são contra o empregador e cristalizam a situação a favor do acadêmico.  Isso lembra nem mais nem menos o sistema medieval de corporativismo, com suas restrições, protecionismo e o fomento de um sistema de castas. 

Até aqui, implicitamente foi presumido que as escolas e universidades eram particulares, e o argumento foi o de que a liberdade acadêmica chega a ser uma violação dos direitos dos donos dessas propriedades. 

Mas praticamente todas as instituições de ensino nos Estados Unidos são controladas pelo governo, ou seja, são propriedades roubadas.  A liberdade acadêmica pode, por isso, ser defendida, em virtude de que ela é, talvez o único artifício através do qual o controle sobre o sistema educacional pode ser, pelo menos em parte, arrancado à classe dominante ou elite do poder que o controla*.  Admitindo-se como verdadeira essa alegação, em razão de tal argumento, eis aí uma poderosa defesa da liberdade acadêmica. 

Neste enfoque, não seria o inocente estudante-consumidor quem está sendo fraudado sob o pretexto de liberdade acadêmica; pois não é o inocente estudante-consumidor quem está, no momento, sendo forçado a continuar empregando um acadêmico cujos serviços ele não quer.  Seria a não inocente classe governante quem está sendo forçada a isso.  Se a teoria da classe dominante está correta, os acadêmicos com opiniões favoráveis à classe dominante nada têm a ganhar com a liberdade acadêmica.  Eles serão mantidos no emprego de qualquer forma.  O acadêmico com pontos de vista não submissos à classe dominante e somente ele, é que se beneficia.  Ele ganha com a liberdade acadêmica, porque ela impede que os empregadores da classe dominante o demitam por razões ideológicas ou outras não ligadas a formalidades. 

A liberdade acadêmica, como tal, pode ser considerada uma fraude e um roubo, porque nega aos indivíduos o direito a contratos livres e voluntários.  Mas que um meio tão “ruim” também possa ser usado para bons fins, não é de causar qualquer surpresa. 

 

*Veja The higher circles, de G.  William Domhoff, Ramdom House, 1970, (NA.)

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