[N. do T: o texto a seguir é de março de 1991. No entanto, ele poderia muito bem ter sido escrito nos dias atuais. A crise ocorrida no sistema bancário americano daquela época é idêntica à atual crise (e o Brasil também já passou por crise semelhante, o que levou à implementação do PROER). O funcionamento da estrutura bancária não sofreu qualquer alteração nesse ínterim; seus mecanismos continuam igualmente fraudulentos. E é por isso que Rothbard vai explicar por que a indústria bancária não é uma atividade legítima.]
Tem havido uma genuína revolução na postura dos economistas, bem como na do público, em relação ao nosso sistema bancário. Desde 1933, o dogma inflexível entre os autores de livros-textos de economia, escritores da mídia financeira e todos os economistas do establishment, de keynesianos a friedmanianos, era que o nosso sistema bancário comercial era ultra-seguro. Todos eles faziam dessa crença uma verdadeira profissão de fé. A idéia predominante era a de que, devido à “sensata” criação daFederal Deposit Insurance Corporation (FDIC)[1] , aquele temível flagelo – as corridas aos bancos – havia se tornado coisa do passado, um passado reacionário. Hoje os depositantes estariam a salvo porque a FDIC “assegura” – isto é, garante por meio de seguros – todos os depósitos bancários. Aqueles que constantemente alertavam que o sistema bancário era inerentemente insalubre, e até mesmo insolvente, foram considerados loucos e excêntricos, criaturas fora de sintonia com o novo regime.
Mas desde o colapso das S&Ls[2] , uma catástrofe destinada a custar ao contribuinte algo entre meio trilhão e um trilhão e meio de dólares, essa postura otimista mudou. É verdade que após a Federal Savings and Loan Insurance Corporation (FSLIC)[3] ter sido liquidada e incorporada à FDIC, todo o establishment voltou a recorrer à FDIC como última linha de defesa, mas pelo menos a garantia de que tudo funcionava bem já era. Todas as autoridades estão claramente tentando fingir tranqüilidade perante uma situação nada tranqüila.
Foi em 1985 que a corrida aos bancos – algo supostamente reservado apenas a más lembranças e a filmes antigos – voltou com força total, repleta de todos os velhos e conhecidos fenômenos: pessoas formando enormes filas à noite, esperando pela abertura do banco na manhã seguinte para poderem sacar seu dinheiro; promessas mentirosas feitas pelo gerente do banco, que garantia que o banco estava saudável e que todos deveriam voltar para suas casas; insistência por parte do público para que pudessem retirar seu dinheiro do banco; tudo isso sendo seguido de um rápido e subseqüente colapso. Assim como ocorreu em 1932-1933, os governadores dos respectivos estados mandaram fechar os bancos para impedir que eles tivessem de pagar suas dívidas declaradas.
A corrida aos bancos começou com as S&Ls de Ohio e Maryland, que eram seguradas por seguradoras privadas. As corridas voltaram a ocorrer em janeiro de 1991, desta vez com as cooperativas de crédito de Rhode Island, que eram “seguradas” por firmas privadas. E alguns dias depois, o Bank of New England, após ter anunciado prejuízos severos – que o tornaram insolvente -, sofreu maciças retiradas de depósitos, retiradas estas que chegaram aos bilhões de dólares, fazendo com que o presidente da instituição, Lawrence K. Fish, tivesse que sair perambulando por todas as sucursais na tentativa de garantir aos clientes que o dinheiro deles estava a salvo – o que, obviamente, não era verdade. Finalmente, para salvar o banco, a FDIC teve de entrar em cena, e já está em processo a elaboração de um esquema para usar altas somas de dinheiro público para salvá-lo.
Um fenômeno fascinante apareceu nessas atuais corridas aos bancos, assim como já tinha aparecido nas antigas: quando um banco “insalubre” era submetido a uma corrida fatal, isso gerava um efeito dominó sobre todos os outros bancos das proximidades, de forma que eles também eram sugados e aniquilados por essas corridas. Como admitiu um estonteado Paul Samuelson – o legítimo senhor establishment – para o Wall Street Journal,após todo esse surto: “Jamais imaginei que estaria vivo para ver novamente o dia em que corridas aos bancos realmente aconteceriam. E quando os bancos bons sofrem corridas só porque alguns bancos ruins e azarados entraram em colapso… isso significa que fizemos uma regressão no tempo.”
Uma regressão no tempo de fato: assim como a queda do comunismo no Leste Europeu nos levou de volta a 1945 ou até mesmo 1914, os bancos estão novamente sob risco, como aconteceu durante a Grande Depressão.
Qual é a razão para essa crise? Todos nós sabemos que o colapso do setor imobiliário está derrubando o valor dos ativos bancários. Mas não há nenhuma “corrida” no setor imobiliário. Os valores simplesmente caem, o que dificilmente tem o mesmo significado de todo mundo quebrar e se tornar insolvente. Mesmo considerando que os empréstimos bancários tenham sido errôneos e que os valores dos ativos estejam caindo, não há qualquer necessidade – sob esses parâmetros – para que todos os bancos de uma dada região entrem em colapso.
Portanto, colocando de maneira mais exata, por que esse efeito dominó afeta somente os bancos, e não o setor imobiliário, a indústria editorial, a indústria de petróleo, ou qualquer outra indústria passível de sofrer problemas? Por que aquilo que Samuelson e outros economistas chamam de “bons” bancos são tão extremamente vulneráveis? E sendo assim, em que sentido eles realmente são “bons”?
A resposta é que os bancos “ruins” são vulneráveis àquelas velhas e constantes acusações: eles fizeram empréstimos temerários, ou investiram excessivamente em títulos brasileiros, ou seus gerentes eram escroques. Em qualquer caso, seus empréstimos malfeitos deixaram seus ativos debilitados ou os tornaram de fato insolventes. Os “bons” bancos não cometeram nenhum desses pecados; seus empréstimos eram sensatos. Ainda assim, eles também podem sofrer uma corrida bancária quase tão repentinamente quanto os bancos ruins. Assim, fica claro que os bancos “bons” são, na realidade, apenas ligeiramente menos insalubres que os ruins.
Portanto, deve haver algo a respeito de todos os bancos – comerciais, de poupança, S&L, e cooperativas de crédito – que os torna inerentemente insalubres. E esse algo é uma coisa muito simples, não obstante raramente seja mencionada: o seu sistema de reservas fracionárias. Todos os bancos desse formato emitem certificados de depósito que são contratualmente resgatáveis ao par (pelo seu valor nominal) quando demandados pelo depositante. Mas acontece que os bancos somente poderiam cumprir essas obrigações contratuais se todos os depósitos fossem lastreados 100% por dinheiro, durante todo o tempo (ou, o que é equivalente nos dias de hoje, por depósitos a vista feitos pelos bancos no Banco Central, depósitos esses que são redimíveis em dinheiro quando demandados).
Ao invés dessa política de 100% de reservas, que é sólida e não-inflacionária, todos esses bancos são autorizados e encorajados por políticas governamentais a manter reservas que sejam apenas uma fração de seus depósitos, indo desde 10% dos depósitos para os bancos comerciais até somente uns 2% para outras formas de bancos. Isso significa que, por meio do multiplicador monetário, os bancos comerciais inflam a oferta monetária em dez vezes a quantidade de reservas que eles possuem, uma política que resulta nesse nosso sistema de inflação permanente, ciclos econômicos periódicos e corrida aos bancos – que é quando o público começa a perceber a inerente insolvência de todo o sistema bancário.
É por isso que, ao contrário de qualquer outra indústria, a existência contínua do sistema bancário depende fortemente da “confiança do público”, e é por isso também que os integrantes do establishment sentem que têm de emitir declarações públicas que privadamente admitiriam se tratar de mentiras fragorosas. Mais ainda, é por isso também que economistas e jornalistas financeiros de todos os matizes ideológicos se juntaram para dizer que a FDIC “tinha” de salvar todos os depositários do Bank of New England, e não apenas aqueles que eram “segurados” em até $100.000 de seus depósito a prazo. A FDIC tinha de fazer esse salvamento, dizem eles, porque “de outra forma o sistema financeiro entraria em colapso”. Ou seja: todo mundo iria descobrir que todo o sistema de reservas fracionárias consegue se manter apenas por meio de mentiras e fraudes, isto é, por meio de uma trapaça do establishment.
E quando o público descobrisse que todo o seu dinheiro não está de fato nos bancos, e que a FDIC também não tem o dinheiro equivalente, o sistema bancário entraria rapidamente em colapso. De fato, mesmo os jornalistas financeiros estão preocupados, já que a FDIC só consegue cobrir menos de 0,7% dos depósitos que supostamente deveria “segurar”. E estima-se que em breve esse número cairá para 0,2% dos depósitos. Divertidamente, especialistas garantem que o nível “seguro” é de 1,5%! O sistema bancário, em resumo, é um castelo de cartas – tanto a FDIC como os próprios bancos.
Muitos defensores do livre mercado estranham: por que eu, que sou um grande promotor do mercado desimpedido, das privatizações e desregulamentações em todas as áreas, não adoto a mesma postura em relação ao sistema bancário? A resposta já deve estar clara: bancos não são e nem nunca serão uma indústria legítima, que fornece serviços legítimos, enquanto eles continuarem praticando o sistema de reservas fracionárias: isto é, enquanto eles continuarem fraudulentamente fazendo contratos que eles sabem ser impossíveis de honrar.
Adotar um esquema de seguro privado para os depósitos – a proposta dos defensores do “sistema bancário livre” – é evidentemente absurda. Agências privadas que garantem depósitos são as primeiras a entrar em colapso, pois todos sabem que elas não têm o dinheiro para cobrir os saques. Ademais, os defensores desse esquema não conseguem responder a seguinte pergunta: já que os bancos são uma indústria tão legítima como qualquer outra, por que eles precisam desse tipo de “seguro”? Qual outra indústria tenta se assegurar a si própria dessa mesma forma?
A única razão pela qual a FDIC ainda se mantém, ao passo que a FSLIC e as companhias privadas seguro já sumiram, é porque as pessoas acreditam que, mesmo que ela tecnicamente não tenha o dinheiro, se a coisa ficar feia o Banco Central entraria em cena e simplesmente imprimiria o dinheiro e o daria para a FDIC. A FDIC, por sua vez, daria esse dinheiro aos bancos, sem sequer importunar os contribuintes (porém levando a uma inevitável inflação), como fez o governo em recentes operações de salvamento bancário. Afinal, não dizem que a FDIC é toda lastreada “pela fé e pelo crédito” do governo federal, seja lá o que isso significa?
Sim, a FDIC poderia, em última análise, imprimir todo o dinheiro e entregá-lo aos bancos, à guisa de algum decreto ou estatuto emergencial. Mas . . . há um porém. Se ela fizer isso, todos os trilhões de dólares de depósitos bancários iriam se transformar em dinheiro vivo. O problema, no entanto, é que se o dinheiro for re-depositado nos bancos, suas reservas hipoteticamente aumentariam aqueles mesmos trilhões, e os bancos – por meio do multiplicador monetário – poderiam então multiplicar imediatamente esse novo dinheiro por algo entre dez e vinte trilhões, dependendo da política de compulsório adotada pelo banco central. E isso, é claro, seria inacreditavelmente inflacionário, e iria nos atirar imediatamente para o estilo de hiperinflação ocorrida na Alemanha de 1923. É por isso que nenhum membro do establishment se dispõe a uma discussão mais profunda sobre essa solução adotada, que juram ser à prova de falhas.
É por isso também que seria bem melhor sofrer, de uma só vez, uma contração deflacionária desse fraudulento sistema de reservas fracionárias, e voltar para um sólido sistema de 100% de reservas.
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[1] Agência governamental americana, criada durante o New Deal, que tem como objetivo garantir os depósitos feitos em bancos comerciais. Atualmente, a FDIC garante depósitos a vista e de poupança em valores até US$ 100.000 por depositante. [N. do T.]
[2] Savings and Loans: Poupança e Empréstimo. Instituições financeiras que captam fundos – e pagam juros aos seus investidores – para investi-los principalmente em hipotecas, e que podem também oferecer depósitos em conta-corrente e outros serviços bancários. A crise desse setor começou em 1986 e só acabou em 1995 (N. do T.)
[3] Instituição governamental criada em 1934 e abolida em 1989. Sua função era administrar os depósitos assegurados feitos nas S&Ls. Ao ser abolida, ela passou essa responsabilidade para a FDIC. Durante a crise das S&Ls na década de 80, a FSLIC se tornou insolvente, sendo recapitalizada com o dinheiro do contribuinte americano por várias vezes, com quantias estimadas em $15 bilhões em 1986 e $10,75 bilhões em 1987. Em 1989, ela foi considerada excessivamente insolvente (mesmo para padrões estatais), sendo então finalmente abolida. (N. do T.)