A anatomia do estado

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1. O que o estado não é

O estado é quase universalmente considerado uma instituição de serviço social.  Alguns teóricos veneram o estado como sendo a apoteose da sociedade; outros consideram-no uma organização afável, embora muitas vezes ineficiente, que tem o intuito de alcançar objetivos sociais.  Porém quase todos o consideram um meio necessário para se atingir os objetivos da humanidade, um meio a ser usado contra o “setor privado” e que frequentemente ganha essa disputa pelos recursos.  Com o advento da democracia, a identificação do estado com a sociedade foi redobrada ao ponto de ser comum ouvir a vocalização de sentimentos que violam quase todos os princípios da razão e do senso comum, tais como: “nós somos o governo” ou “nós somos o estado”.

O termo coletivo útil “nós” permite lançar uma camuflagem ideológica sobre a realidade da vida política.  Se “nós somos o estado”, então qualquer coisa que o estado faça a um indivíduo é não somente justo e não tirânico, como também “voluntário” da parte do respectivo indivíduo.  Se o estado incorre numa dívida pública que tem de ser paga através da cobrança de impostos sobre um grupo para benefício de outro, a realidade deste fardo é obscurecida pela afirmação de que “devemos a nós mesmos” (ou “a nossa dívida tem de ser paga”); se o estado recruta um homem, ou o põe na prisão por opinião dissidente, então ele está “fazendo isso a si mesmo” — e, como tal, não ocorreu nada de lamentável.

Nesta mesma linha de raciocínio, os judeus assassinados pelo governo nazista não foram mortos; pelo contrário, devem ter “cometido suicídio”, uma vez que eles eram o governo (que foi eleito democraticamente) e, como tal, qualquer coisa que o governo lhes tenha feito foi voluntário da sua parte.  Não seria necessário insistir mais neste ponto; no entanto, a esmagadora maioria das pessoas aceita esta ideia enganosa em maior ou menor grau.

Devemos, portanto, enfatizar a ideia de que “nós” não somos o estado; o governo não somos “nós”.  O estado não “representa” de nenhuma forma concreta a maioria das pessoas[i].  Mas, mesmo que o fizesse, mesmo que 70% das pessoas decidissem assassinar os restantes 30%, isso ainda assim seria um homicídio em massa e não um suicídio voluntário por parte da minoria chacinada[ii].  Não se pode permitir que nenhuma metáfora organicista, nenhuma banalidade irrelevante, obscureça este fato essencial.

Se, então, o estado não somos “nós”, se ele não é a “família humana” se reunindo para decidir sobre os problemas mútuos, se ele não é uma reunião fraterna ou clube social, o que é afinal?  Em poucas palavras, o estado é a organização social que visa a manter o monopólio do uso da força e da violência em uma determinada área territorial; especificamente, é a única organização da sociedade que obtém a sua receita não pela contribuição voluntária ou pelo pagamento de serviços fornecidos mas sim por meio da coerção.

Enquanto os outros indivíduos ou instituições obtêm o seu rendimento por meio da produção de bens e serviços e da venda voluntária e pacífica desses bens e serviços ao próximo, o estado obtém o seu rendimento através do uso da coerção; isto é, pelo uso e pela ameaça de prisão e pelo uso das armas[iii].  Depois de usar a força e a violência para obter a sua receita, o estado geralmente passa a regular e a ditar as outras ações dos seus súditos. Poderíamos pensar que a simples observação de todos os estados ao longo da história e de todo o globo seria prova suficiente para esta afirmação; mas o miasma do mito incrustou-se na atividade do estado há tanto tempo, que se torna necessária uma elaboração.



[i] Não é o objetivo deste trabalho desenvolver os inúmeros problemas e enganos da “democracia”. É o suficiente dizer que o verdadeiro agente de um indivíduo, ou “representante”, está sempre sujeito às ordens desse mesmo indivíduo, pode ser demitido a qualquer momento e não pode agir em contrário aos interesses ou desejos do seu chefe. Obviamente, o “representante” numa democracia nunca poderá satisfazer estas funções de agente, as únicas conformes com uma sociedade livre.

[ii] Os sociais-democratas respondem muitas vezes que a democracia — a escolha majoritária dos governantes — implica logicamente que a maioria tem de deixar determinado grau de liberdade à minoria, pois a minoria pode um dia tornar-se a maioria.  Aparte de outras falhas, este argumento obviamente não se mantém onde a minoria não se pode tornar a maioria, por exemplo, quando a minoria pertence a um grupo étnico ou racial diferente da maioria.

[iii] Joseph A. Schumpeter, Capitalism, Socialism, and Democracy (Capitalismo, Socialismo e Democracia)(New York: Harper and Bros., 1942), p. 198.

A fricção e o antagonismo entre a esfera privada e a pública foi intensificada desde o princípio pelo fato de que o estado tem vivido do rendimento que tem sido produzido na esfera privada com propósitos privados e que tem que ser desviado desses propósitos através da força política. A teoria que interpreta os impostos em analogia à filiação de um clube ou à aquisição do serviço de, digamos, um médico só prova quão removida se encontra esta parte das ciências sociais dos hábitos mentais científicos.

Ver também Murray N. Rothbard, “The Fallacy of the ‘Public Sector'”, New Individualist Review (Summer, 1961): 3ff.

 

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