Eu me recordo da reação dos colegas ao escutar do professor de história do colegial, que no ancien régime os reis eram legitimados pela teoria do Direito Divino. Impulsionados pelo professor, os alunos riam-se da sociedade passada, a qual por alguma razão, aceitou a ideia de que o próprio Deus designara alguém para lhe representar perante os humanos. O desdém aprendido e mantido pelos alunos em questão é sintoma típico de uma doença cujo surto ocorreu no século XVIII e, uma vez pandêmica, jamais saiu de cena desde então. Refiro-me é claro, ao cientificismo, trazido à tona pelo movimento iluminista e impregnado nas mentes -das mais sofisticadas às mais simplistas- daquela que se convencionou chamar de civilização ocidental.
O cientificismo é a visão de que todo conhecimento verdadeiro é conhecimento científico e que não existe uma forma racional e objetiva de investigação que não seja um ramo da ciência. Por ciência, os cientificistas entendem que é todo o ramo do conhecimento em que se pode utilizar o método científico baconiano. Certamente, o método científico foi responsável por uma revolução nas ciências naturais. O desenvolvimento da biologia, física, mecânica, química e os grandes avanços ocorridos ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX favoreceram à ideia de que a linguagem científica poderia ser a chave para que o homem pudesse entender o universo de forma holística, ou seja, em seu total. Daí, a tentativa de sistematizar todo o conhecimento a partir da ciência fundou a chamada filosofia da ciência no sentido moderno do termo.
A filosofia moderna da ciência rompe as formas e substâncias do modelo tomista-aristotélico e é sistematizada pelo seu principal expoente: Auguste Comte, na doutrina do positivismo. Comte acreditava que, assim como no caso das ciências naturais, as agora chamadas ciências sociais passariam a ser o novo paradigma da verdade, legando à teologia e à metafísica um espaço decorativo e supersticioso na historia humana. O cientificismo iniciou uma guerra fictícia entre aqueles que defendem a fé e os que defendem a ciência. Para os últimos, já que religião não tem fundamento científico (ou assim eles afirmam), ela “portanto” não tem fundamento racional e deve ser expulsa do debate sobre quaisquer assuntos. Assim como a religião e a metafísica não são “úteis” para conhecermos o comportamento dos átomos, também não podem ser úteis para conhecermos a verdade acerca do bom, do belo e das questões éticas. Em nosso tempo, o cientificismo atinge seu ápice no Neoateísmo de Dawkins e Hitchens. Para tais autores, tudo o que somos, pensamos e sentimos não passa de reações químicas a serem descobertas pelo avanço da micro e nanobiologia. Haverá um dia em que, através de uma “injeção” das substâncias adequadas, curaremos não só as doenças do corpo, mas também as da alma humana (aliás, para neoateus, não existe essa coisa de alma).
É difícil definir qual foi o campo das chamadas “ciências sociais” mais prejudicado pelo positivismo. Mas, sejam lá quais forem, certamente dentre eles estarão a Economia e o Direito. Na Economia, o que antes era uma investigação lógica a respeito de como os recursos escassos são produzidos e administrados na sociedade humana, passou a ser uma série de formulações matemáticas que inicialmente foram criadas para se entender a realidade e posteriormente foram usadas para forçar a realidade a se adequar à elas. Se um determinado economista provasse em seu “modelo científico” que seria vantajosa a produção extra de um certo recurso X, o político poderia se valer daquela “verdade científica” para forçar que a tal prescrição fosse cumprida, ignorando a vontade dos agentes e passando por cima de qualquer objeção ética; afinal de contas, quem sabe mais, o médico ou o paciente? Apenas obedeça ao cientista, para o seu próprio bem!
No Direito, e aqui entramos de fato no tema do artigo, o cientificismo foi além. Repudiando os mitos fundadores dos Estados “mortos” pelas revoluções iluministas, os cientificistas acabaram criando novos mitos, os quais eles, de alguma forma pudessem justificar sob a égide do racionalismo científico. Nas palavras de Butler Shaffer:
“Os sentimentos humanistas do Iluminismo ajudaram a transformar essas suposições autocráticas sobre a fonte da autoridade política, substituindo como racionalização para o estado o mito de um “contrato social”.”
Os que antes desdenhavam do Direito Divino citado no início do texto passaram a louvar os novos iluminados, que, despidos de uma metafísica explícita, criaram para si uma falsa metafísica que justificasse o poder dos pensadores sobre os incultos. A ideia de educação libertadora (das artes liberais) deixou de ser o objetivo da erudição, agora, a educação passaria a ser a certificação que habilitaria o homem ao exercício do poder. A educação transformaria o novo homem, o ser bruto medieval passaria a ser um indivíduo de sentimentos nobres e racionais após receber uma formação racionalista e, sempre que esse homem -puro e humanista- fosse tentado à retroagir aos seus instintos individualistas, ele teria ali uma constituição para lhe mostrar o caminho correto a se seguir. Recorrer ao manual -à constituição- seria para o juiz ou legislador, ato semelhante àquele praticado pelo engenheiro que recorre ao manual de física para a boa prática de sua função. A justiça e o legislativo nas democracias liberais, certamente levariam o homem ao paraíso social, de perfeição euclidiana, uma vez que, ainda que falhassem os juízes ou legisladores de graus inferiores, os atos falhos poderiam ser corrigidos por seus colegas dos graus superiores, homens ainda mais elevados e de humanismo e racionalidade ainda mais acurados. Ademais, ainda que todos os graus do promoção do progresso falhassem, haveria ali uma constituição para resguardar os cidadãos de uma possível tirania por parte do Estado.
Os homens que desdenhavam daqueles que criam no Direito Divino passaram a crer -sim, a palavra adequada é crer- em um pedaço de papel. Para um religioso, a constituição não pode ser entendida de outra forma que não a idolatria. Seria de uma ingenuidade sem tamanho, crer que toda a corte e as elites que suportavam os monarcas absolutistas de fato criam nessa história de Direito Divino. Contudo, é conveniente a eles que haja algum meio de garantir a estabilidade do Estado e, ademais, um rei, por mais opulento e esbanjador que seja, possui interesse direto na prosperidade e estabilidade política de seu reino, afinal de contas trata-se de sua propriedade e de seus súditos. Assim, há uma limitação natural à interferência do rei nos negócios privados, seu interesse é majoritariamente externo, tudo o que importa é manter uma boa fonte de impostos que sustentem sua corte, seu reinado e suas guerras.
No Direito Positivo, morre o interesse do legislador/aplicador da lei, pelo benefício social de seus atos. Afinal de contas, ninguém é “dono” do Estado, cada um está ali como mandatário temporário e os recursos acumulados/espoliados não passarão para a próxima geração do homem da lei. Sendo assim, há um interesse por uma pilhagem maior e mais rápida, de forma que o máximo de benefício possa ser extraído do Estado enquanto um determinado mandatário, legislador ou juiz se mantém no poder. Os positivistas acreditaram que poderiam limitar tais instintos humanos através de uma constituição, mas, a quem cabe interpretar a tal constituição? Ora, homens.
Na prática, os positivistas apenas substituíram a divindade por um pedaço de papel, já que no âmbito da aplicação do poder (seja ele dado por Deus ou por uma constituição) estão os mesmos homens de sempre. A diferença é que antigamente eles usavam mantos vermelhos e coroas, agora usam togas e se referem a seus pares por “vsa. excelência”. Um rei absolutista poderia justificar seus atos abusivos como sendo a “vontade de Deus”, já o ministro de suprema corte, pode fazer o mesmo justificando como “a vontade da constituição”. Ora, nos dois casos, quem é que define qual é a vontade de Deus ou da constituição, senão os próprios homens que em seus nomes praticam os atos que melhor lhes aprouver?
O ministro do STF Alexandre de Moraes, no dia 27 de maio de 2020 expediu vários mandados de invasão de propriedade e sequestro temporário de bens de pessoas a quem ele julga “inimigas da democracia”. No caso, o inquérito em questão foi aberto por seu colega Dias Toffoli, que não gostou da forma como algumas pessoas vêm se referindo aos representantes da divindade (eles, os ministros) na internet. Tanto o inquérito, quanto as apreensões, quanto às próprias investigações são expressamente proibidas pela constituição do Brasil. Um juiz, em um sistema jurídico minimamente sério, não pode abrir investigação monocraticamente, muito menos indicar aquele que seria o “juiz natural” do processo, incorrendo aí num latente vício processual. Mas, quem se importa? Lembremos da frase do governante divino, Rei da França Luís XIV: “O Estado sou eu”. É neste mesmo espírito que Dias Toffoli declara: “Os ministros são considerados pelo STF à própria instituição, em qualquer lugar em que estejam”.
Os positivistas levaram a sociedade a crer que os cientistas e os homens bem educados seriam aqueles capazes de conduzir a sociedade ao seu apogeu de desenvolvimento. Uma era em que as muidezas e mesquinharias individuais seriam suplantadas pela prosperidade coletiva, pela erradicação das doenças, pela universalização do conhecimento e, principalmente, pela elevação do homem ao posto de divindade, o agente de todo o progresso e o solucionador de toda espécie de males. Para vender sua utopia, os cientificistas fizeram crer à sociedade que o planejamento econômico é superior ao livre-mercado, que a ética se resume ao que está escrito nas leis e que a obediência é superior à liberdade. O homem que age segundo suas próprias convicções não só é mesquinho como também é inimigo do progresso e por consequência, de toda a sociedade. Se você não quer matar o idosos, fique em casa e use máscaras, afinal de contas, quem é você para questionar a ciência?
O que os positivistas não contaram ao mundo é que eles não veem homens em suas individualidades e em sua infinitude de interesses distintos. Tudo o que eles veem é o homem, único e uniforme, o somatório de todas as vontades e interesses dos indivíduos reunidos em um único ser mítico. Este ser mítico, deve caminhar rumo ao progresso, não importam os custos éticos dessa caminhada. O nome deste homem? Estado Democrático de Direito.
Muito bom texto Mateus!
Artigo sensacional! Parabéns! Obrigado por compartilhá-lo!
Artigo muito esclarecedor, parabéns Mateus Vieira,e Instituto Rothbard pela divulgação.
Muito bom!
Muito bom.
Parabéns, Mateus Vieira!
Belíssima, educada e firme reflexão a respeito do momento em que o STF nos envergonha, novamente, novamente, novamente…
Texto cumprido mas vale a pena ler até o final , muito bom
Excelente artigo.
E quando os ministros do STF cometem crimes e o presidente do Senado se nega retirar lhes o cargos? O que a população pode fazer?
Artigo excelente!
Parabéns Mateus!
Eu encontrei apenas dois erros de escrita. O primeiro é: “os homens desenhavam”, acredito que é “Os homens DESDENHAVAM”.
O segundo está no penúltimo parágrafo. Faltou um A entre “levaram” e “sociedade”.
Abraço e espero ver mais artigos seus por aqui!
Texto perfeito! Tiraram o Deus verdadeiro da jogada e se fizeram os próprios “deuses”.
Se estão com saudades de um sisteminha religioso, que tal a sharia islâmica? Não estou defendendo os positivistas, só estou passando aqui para dizer que kogosianismo de cu é rola. Foda-se o estado. Foda-se a igreja também. Fodam-se os deuses também: alla, jeová, jesus,krisna…
Calma ai Sinnead O’connor
Ok karen, agora vai la tomar seu toddynho.
O cientificismo, o pseudo-ceticismo e esse neoateísmo militonto foi uma das piores desgraças que ocorreram no mundo. Essa gente idiota só trocou o Deus criador do universo e da lei natural pelo falso deus-estado que “tudo e vê” e “cuida nós” por meio da justiça social.