O futuro que os planejadores nos reservam

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Uma abordagem sob a Obra de C.S.Lewis

Embora as visões modernas partam do pressuposto de que o homem é tão parte da natureza quanto o resto da matéria, uma investigação filosófica desinteressada tenderá a revelar traços do homem que são alheios à uma ordem puramente biológica. A relação de toda a matéria (e aqui incluímos os demais animais) com a natureza é sempre objetiva, ou seja, até mesmo quando são agentes, os animais estão sendo objetos. Um leão que corre atrás de sua caça não está a obedecer aos seus controles racionais mas, simplesmente atende ao clamor desesperado de seus instintos de predador, enquanto a pobre da caça, impelida por uma injeção de adrenalina, corre desesperadamente para se salvar. Ali é tudo química, ninguém está certo e nem errado, fatalismo.

Mas com o homem não é assim. Em seu brilhante “A Alma do Mundo”, Roger Scruton descreve como uma série de empreendimentos humanos não possuem relação alguma com o desenvolvimento darwiniano da espécie. Não que nós não estejamos sujeitos à seleção natural, mas, muito do que compõe a nossa vida moderna é simplesmente inútil (as vezes deletério) para as nossas funções de sobrevivência e reprodução: a matemática, a poesia, a pintura. Nada disso é útil no que tange a matar ursos e fecundar o maior número de fêmeas possível. Em um mundo onde os mais fortes extinguem os mais fracos, não deveria haver espaço para divagações sobre coisas abstratas como números e desenhos em paredes de cavernas. Tais coisas não podem ter nascido da necessidade de sobrevivência imediata; até que o movimento dos astros pudesse orientar nossas plantações e navegações, ele passou séculos (talvez milênios) ocupando um espaço completamente nulo no que tange à nossa prosperidade material neste planeta. Tamanho desperdício de glicose não pode ser creditado a nada que não seja um sentimento de pertencimento, de dívida para com as gerações passadas e futuras, de amor pelo conhecimento desinteressado, de tudo aquilo que veio a se consolidar como o que viemos a chamar de Moral, Verdade, Beleza.

Se não obedecemos unicamente às nossas inclinações hormonais, há que se admitir a existência de uma natureza humana, a qual existe objetivamente e independente da biologia. Enquanto indivíduos biológicos, todas as nossas ações estão atreladas ao corpo e ao seu campo de influência (comida, sono, violência, etc.), contudo, nossa natureza humana vai além, ela existe dispersa no tempo, é o que chamamos de Humanidade. Um macaco nasce macaco e obedece à sua macaquice até o dia de sua morte, no fim do dia, com exceção de seus genes (os quais já estavam presentes no DNA quando ele nasceu), nada mais foi acrescentado à “natureza macaca”.  Com os homens, o oposto ocorre, cada indivíduo que já viveu sobre a terra possui algum grau de influência sobre a humanidade, os homens do passado influenciam nosso presente e nós influenciamos os homens do futuro. Toda a macaquice está contida no macaco, mas a humanidade não está contida no homem, pelo contrário, ela o contém.

A natureza material obedece às suas próprias leis: uma pedra, solta no ar, não pode escolher se obedece ou não à gravitação, ela cairá; um tubarão não pode escolher entre peixes e algas, sua natureza o obriga a comer peixes; a gravitação, o eletromagnetismo, a radiação, os gases e tudo mais o que há na natureza material, obedecem a leis tão imutáveis, tão perfeitas que podem ser descritas sob a forma de equações gerais. Mas com o homem não é assim, apesar de haver (e veremos que certamente há) leis naturais da sociedade humana, o homem pode escolher entre obedecê-las ou rejeitá-las. Mais especificamente, o homem pode condicionar a sua natureza material à sua natureza humana. Nós dominamos a natureza material, arrancamos-lhes árvores e pedras e as transformamos em casas quentes; cruzamos espécies de animais até que eles nos sirvam da melhor forma possível; perfuramos o solo até encontrar os metais que transformamos em armas para matar nossos inimigos e ornamentos para conquistar nossas mulheres.

O homem começou a batalha contra a natureza perdendo feio, ela matava a maior parte de nossos recém-nascidos, feras nos caçavam, germes invisíveis não permitiam que nossos melhores homens ultrapassassem os quarenta anos, foram tempos difíceis. Mas o jogo virou, colocamos a natureza nas cordas e fizemos dela o que queríamos. Transformamos florestas hostis em plantações e pastagens, aprendemos a caçar os animais que antes nos predavam, temos casas e roupas quentes que nos protegem das intempéries. Vencemos. Mas não paramos por aí, não nos contentamos apenas com a vitória darwiniana (sobreviver e reproduzir), nós queríamos mais. Nossa natureza nos impeliu a conquistas que não necessariamente estão ligadas à reprodução e sobrevivência. Dos cavalos fizemos meios de transporte, da madeira, fizemos barcos para transpor as águas; hoje, máquinas voadoras nos transportam entre continentes em alta velocidade, conversamos com pessoas em qualquer lugar do mundo em tempo real e até rompemos os limites do planeta, estamos dominando o espaço.

O Tao

Mas e quanto às leis que regem a natureza humana, por acaso tais leis existem? Na magnífica obra “Cristianismo Puro e Simples”, C.S. Lewis procura demonstrar a existência de uma lei universal que emerge naturalmente nas sociedades humanas, a qual ele denomina Lei Moral. A Lei Moral está dentro de cada homem, é ela e não as convenções, que nos diz que violentar pessoas pacíficas é errado, que o estupro é errado, que o roubo é errado. Ainda que não haja nenhum cartaz indicando a proibição, todo mundo sabe que não se deve furar a fila, é errado porque é errado, uma regra com um fim em si mesma. Na obra “A abolição do Homem”, Lewis vai chamar essa Lei Natural de “O Tao”. Ele usa a palavra oriental “Tao” porque ela é uma designação que possui o significado mais próximo da ideia que ele queria passar, não havia algo parecido na língua inglesa. O Tao é a Verdade Absoluta, O Bem, O Belo e O Moral.

  • Não matarás”. Judaico Antigo – Êxodo 20:13
  • Não matei ninguém” – Egípcio Antigo – Livro dos Mortos
  • Em Nástrond (no inferno) eu vi assassinos” – Nórdico Antigo. Volospá 38,39
  • Não calunieis” – Babilônio – Hino a Samas
  • Não darás falso testemunho contra teu próximo” – Judaico Antigo – Êxodo 20:16
  • Não faça aos outros o que não gostaria que fizessem contra você” – Chinês Antigo – Os Analectos de Confúcio
  • Assim, em tudo façam aos outros o que vocês querem que eles lhes façam” – Jesus Cristo – Mateus 7:12
  • Que homem bom não considera qualquer desgraça como algo da conta dele”? Romano Antigo. Juvenal XV.140
  • Não roubei nada” – Egípcio Antigo – Confissões da alma de um justo
  • Não furtarás” – Judaico Antigo – Êxodo 20:15
  • Prefira a perda ao lucro indébito” – Grego. Chilon Fr. 10. Diels

Os que gostarem de literatura antiga, certamente não terão dificuldades em continuar a lista de descobertas que se foi fazendo do Tao ao longo da história humana. São regras variadas, as quais cobrem assuntos relacionais dos homens, justiça, sexualidade, bondade, vingança, propriedade, violência, família, guerra e todas as demais variações das possíveis relações entre os homens.

Lewis observa que regras muito parecidas emergiram em sociedades separadas temporal e geograficamente. Ao que parece, tais regras emanam da Natureza do Homem, não são frutos de convenções culturais, religiosas, etc. Tal alegação lança por terra toda a teoria construtivista (tão amada em nossos tempos), que diz que não há Certo e Errado absolutos, tudo é uma construção social. O velho embate entre Trazímaco e Sócrates, no qual o primeiro defendia que a Justiça nada mais é que a “conveniência do mais forte”. Lewis discorda, Certo e Errado são absolutos e possuem um fim em si mesmos. Como dissemos anteriormente, O Homem pode escolher entre obedecer ou não às leis da natureza humana, a questão é que ele não pode escapar das consequências da desobediência. Se uma sociedade resolutamente atenta contra o Tao, ela pagará o preço através de sua extinção. O que poderíamos dizer de uma sociedade que premiasse soldados que fogem da batalha e que punisse os que nela permanecem? O que poderíamos dizer de uma sociedade em que os homens ficam no calor das casas enquanto as mulheres saem para caçar feras, morrer em guerras e transpor os mares? O que diríamos de uma sociedade em que o roubo é louvado e que o estupro faz parte da rotina semanal? No limite, o que poderíamos dizer de uma sociedade em que não há nenhuma punição aos homicidas? Nada, exceto o fato de que tal sociedade hipotética não poderia prosperar, pois atenta contra a natureza dos que a compõe, os homens.

Se o Tao é transmitido através das sociedades que sobreviveram, o único meio de conhecê-lo dá-se através daquilo que chamamos de “Tradição”.

A Abolição do Homem

“…A conquista da Natureza pelo Homem é uma expressão usada muitas vezes para descrever o progresso da ciência aplicada…”, assim Lewis começa o último capítulo do seu livro “A Abolição o Homem”. Algumas conquistas do homem sobre a natureza afetam apenas o indivíduo agente e a natureza envolvida, um homem que caça um animal e o come está exercendo seu domínio sobre a natureza e, nenhum outro homem é afetado por tal ação. Contudo, há domínios do homem sobre a natureza que afetam os demais homens, veja o caso do avião: no caso civil, o homem, para dominar a natureza (voar), depende da autorização do proprietário da máquina; no caso militar, o homem é tanto agente quanto objeto do domínio, já que ele pode usar o avião para lançar ou ser alvo de bombas. Assim, o domínio do homem sobre a natureza é, de certa forma, o domínio de alguns homens sobre outros. Pense também no caso dos contraceptivos: os homens do presente dominam sobre os do futuro, negando-lhes ou nascimento ou dizendo quando e como ele acontecerá, assim, os homens do futuro são objeto de domínio dos homens do presente. O que chamamos em geral de “Poder do Homem sobre a Natureza” nada mais é que o Poder de alguns homens sobre outros, tendo a natureza como meio de exercício.

Um aspecto importante da obra de Lewis é que ele – diferentemente daqueles que comumente escrevem sobre as chamadas ciências sociais – considera o aspecto temporal no estudo da humanidade. Assim como os físicos consideram o tempo em sua abordagem acerca do universo, Lewis o considera em sua abordagem acerca da humanidade. Muito se ouve falar do domínio da nobreza sobre o campesinato na idade média, sobre o domínio da burguesia sobre o proletariado no século XIX, mas, quase não se ouve falar no domínio de uma geração sobre outra, na relação existente entre homens do passado, presente e futuro, como se as gerações da humanidade estivessem ligadas assim como o tempo está ligado ao espaço. É assim que Lewis vê o homem.

Nesse sentido, há dois tipos de poderes conflitantes: o primeiro é o poder dos homens do passado, que passam sua tradição (a qual contém fragmentos do Tao) e suas vontades arbitrárias aos homens do futuro. Como dissemos, a humanidade do presente é o que os homens do passado decidiram que ela fosse, quem nasceria, quem não nasceria, quais valores seriam passados, etc. A geração do presente, assim como a do passado, se esforça para exercer seu domínio sobre a geração futura; o segundo poder conflitante é o da geração presente sobre a passada. Toda rebelião contra valores e formas de vida da geração passada é o sinal da luta da geração atual para definir o seu próprio destino, tentando se desfazer da dominação que os antepassados lhe legaram.

A partir desse conflito, Lewis introduz (sem usar este nome) a ideia de singularidade da humanidade. Ele diz:

O quadro real é aquele de uma era dominante – vamos supor o ano 10.000 – que teve o maior sucesso em resistir a todas as eras anteriores e domina todas as eras subsequentes de forma mais irresistível, esse será o mestre real a espécie humana. Mas então, dentro dessa geração mestra (que é em si mesma uma minoria infinitesimal da espécie) o poder será exercido por uma minoria ainda mais reduzida. A conquista da Natureza pelo Homem, se os sonhos de alguns planejadores científicos se realizarem, significa o governo de algumas centenas de pessoas sobre bilhões e mais bilhões.

O último estágio terá chegado quando o Homem tiver obtido controle total sobre si mesmo por meio da genética, do condicionamento pré-natal, da educação e da propaganda baseadas em uma psicologia perfeitamente aplicada. A natureza Humana será a última parte da Natureza a se render ao Homem.

Quando tal geração singular chegar, ela aplicará o golpe final na natureza humana, pois, ao longo desse processo de crescimento da capacidade de resistir às tradições, rumo a singularidade, jogou-se fora o Tao junto com toda a Tradição. Agora, nossos planejadores não possuem mais um guia estático e absoluto para decidir sobre suas questões e sobre o futuro, eles só têm a si mesmos e a sua vontade. No fim das contas, suas inclinações e desejos (não a Verdade, o Bem e o Belo) serão utilizados para definir os rumos das gerações subsequentes. Naquele dia, a Natureza se rirá do homem, pois a cada árvore arrancada, a cada metal minerado, a cada doença curada, o homem pensava estar dominando a Natureza, mas estava sendo por ela dominado. Agora que nossa geração singular chegou, as inclinações animais e desejos biológicos dos planejadores estão no comando. A Natureza selvagem venceu o homem.

Não estamos dizendo que os nossos planejadores serão homens maus, eles sequer serão homens. Serão apenas seres autômatos agindo sem humanidade alguma. Agora que Bem e Mau podem ser definidos via legislação; que pesquisas com cobaias humanas podem ser feitas sem nenhum tipo de remorso; que abortos, estupros e homicídios não são eticamente proibidos, mas sim planejados para atingir um número ótimo que aumente a produtividade geral da sociedade; agora que a propaganda tornou a totalidade das pessoas (inclusive as que estão no poder), incapazes de exercer quaisquer julgamentos éticos e dispostas a qualquer coisa para cumprir a missão à qual foram programadas pelos planejadores; agora que há um Estado mundial (e por quê não, universal?) controlando via psicologia aplicada e vigilância digital, a totalidade da população, chegamos ao império eterno da geração singular.

Não haverá Winstons nem Julias para resistir e conservar, ainda que em secreto, a humanidade dentro de si. Haverá humanos, mas não haverá mais O Homem. Chegamos à Abolição do Homem.

 

 

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2 COMENTÁRIOS

  1. Artigo bem interessante.

    A Tao, da maneira como Lewis significou a palavra – acredito eu, tem uma coisa óbvia, e que vai de encontro a abolição do homem: não haveria homem possível sem religião, seja qual for ela até o surgimento do Cristianismo – que aboliu todas as anteriores e que não foi superada ainda.

    Muitas pessoas devem imaginar que não matar é algo óbvio, uma noção que existiria com ou sem Deus. Para isso bastaria deduzir que este comportamento é ruim. Se a gente perguntar para alguém: porque é proibido matar ou ser humano, a resposta será: porque está na lei. Agora isso é fácil, mas como os primeiros humanos deixaram de se ver uns aos outros apenas como coisas, ou meios para se atingir um fim? graças a Deus, que tornou o homem como uma entidade com um fim em si mesmo, ou mais modernamente, um sujeito de direito. Não foi de um dia para o outro, mas é óbvio que este processo não se deu por geração espontânea.

    É errado matar outro ser humano não porque está na lei, mas porque ele foi criado por um ser superior, e este lhe dotou com direitos, que hoje são aceitos como naturais. Como disse mestre Rothbard: nada impede que o estado leviatã crie uma lei para exterminar os ruivos. Por não? onde está escrito que não pode? dizer que tem uma lei garantindo o direito a vida não é dizer que esta lei jamais será abolida – até porque em várias ocasiões foi. Ou seja, se dependermos das leis para termos direitos, então não temos nenhum. Só Deus pode nos garantir que é errado matar, não o homem.

    É curioso que quanto mais se estuda o libertarianismo, mais facilmente se chega a conclusão que a sociedade está afastando-se da humanidade, rumo a uma sociedade puramente instrumental – ou funcional, ou seja, como bem colocou Lewis, de volta ao estado de natureza que saímos.

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