A questão dos camelôs

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Sempre que ocorre um conflito entre vendedores de rua e a polícia ou fiscais (o rapa), muitas pessoas que se consideram libertárias automaticamente tomam partido contra a polícia. Elas costumam se referir a situação como “bandidos fardados – os policiais – roubando a propriedade de comerciantes – os camelôs – impedindo-os de ganhar a vida honestamente”.

Sem dúvida, usar coerção para proibir que pessoas pacíficas trabalhem e ganhem seu sustento é um atentado violento intolerável contra as liberdades mais básicas dos indivíduos – como, por exemplo, governos tirânicos de todo o mundo fizeram com seus lockdowns da ditadura covidiana, através de seu braço armado, a polícia. Porém, a questão dos camelôs não é uma simples troca voluntária sendo impedida coercivamente; ela geralmente envolve um local físico de propriedade mal definida e pode ou não afetar negativamente terceiros.

O dito libertário, ao se posicionar imediatamente a favor dos camelôs reflete uma incompreensão do significado da liberdade. Existe uma verdade libertária implícita no jargão popular que define a liberdade: “A liberdade de um acaba quando começa a liberdade do outro”. De fato, não existe liberdade absoluta, uma liberdade de se fazer o que quiser, quando quiser e onde quiser. O que a filosofia libertária faz é estabelecer onde a liberdade de um acaba e começa a do outro. Esta delimitação é determinada pelo direito de propriedade legitimamente adquirida. E o direito de propriedade, diferente da liberdade, é absoluto. Deste modo, posso fazer o que eu quiser com a minha propriedade, a hora que eu quiser e no lugar que for meu quando eu quiser, contanto que eu não viole a propriedade de terceiros no processo – i.e., onde começa a liberdade do outro. Analisado dessa forma mais profunda, poderíamos até dizer que o nome correto do libertarianismo seria proprietarianismo – isso poderia evitar alguns equívocos de auto-denominação política.

Esclarecido esse ponto, podemos entender, por exemplo, porque os libertários dizem que não existe um direito de Liberdade de Expressão; que o que existe é o direito de dizer o que quiser em sua propriedade ou na propriedade de alguém que permita que este algo seja dito. Da mesma forma, não existe um direito de vender o que quiser em qualquer lugar; o que existe é um direito de vender o que quiser em sua propriedade.[1]

E é neste ponto que a questão dos camelôs se complica: quando ela se misturar com o problema – causado pelo estatismo – das ruas públicas. Em uma sociedade libertária onde tudo é privado e nada é público, não haveria este problema; e isto pode ser inferido pela observação do mundo atual, onde não existe este problema nas ruas privadas existentes. Não vemos um camelô montando barraquinha nas ‘ruas’ de um shopping center. Se isso ocorrer o segurança resolve rapidamente expulsando o vendedor. Também não vemos o rapa passando para tirar camelôs das ruas de um condomínio fechado, pois camelôs sequer são autorizados a entrar nestas ruas.

Portanto, em uma ordem social libertária sempre seria legítimo a polícia privada suprimir vendedores desautorizados em ruas privadas. Isto significa que na ordem social estatista que vivemos, libertários devem – ao contrário do que muitos fazem – automaticamente tomar partido a favor da polícia em seus confrontos contra camelôs? Não, pois enquanto uma polícia privada impõe a vontade de proprietários legítimos, a polícia estatal cumpre ordens do Estado, e o Estado não é o dono legítimo das ruas. Todavia, isto não significa que as ruas sejam uma “terra de ninguém”, sem lei, onde tudo é permitido. Apesar de terem sido expropriadas pelo Estado e serem controladas por ele, as ruas possuem donos reais, que são os donos das propriedades adjacentes e os que usam as ruas para terem ou darem acesso a sua propriedade. As ruas são uma propriedade coletiva pertencente a proprietários específicos, e não a um ente abstrato como a sociedade. Logo, assim como no caso de shopping centers e condomínios particulares, são estes donos legítimos que devem decidir se vendedores podem oferecer seus produtos em suas ruas. Mas como saber qual o desejo destes donos, que em muitos casos podem ser conflitantes entre si?

Walter Block costuma dizer que transformar uma sociedade estatista atual em uma libertária seria como desmexer ovos. É tão difícil determinar direitos de propriedade legítimos em uma cidade que foi controlada coercitivamente por um Estado durante séculos quanto separar a gema da clara de um ovo mexido. Na verdade, seria impossível. Mas isso não quer dizer que não devamos tentar chegar o mais próximo possível deste ideal, e o meio para isso é a subsidiariedade, com as decisões sobre o uso da propriedade coletiva sendo tomadas no plano local mais imediato possível. Em concordância com o princípio da subsidiariedade, por exemplo, os moradores de uma rua sem saída podem atualmente decidir se querem colocar um portão e controlar quem entra e sai da rua. Porém, isso já não é possível para ruas que não sejam sem saída, já que o propósito de ruas assim é diferente, pois deve servir de passagem também para não moradores/proprietários. Então, não deveria ser um prefeito distante e nem o próprio camelô que deva decidir em quais ruas pode haver vendedores e sim os moradores/proprietários/usuários locais.

Conflitos

Em muitas ruas, camelôs podem ser tolerados ou serem até ser muito bem vindos por todos. Em outras podem ser um estorvo, atrapalhando a circulação ao obstruir a passagem em locais movimentados. Um dos principais elementos do comércio é a localização. Todo comerciante quer ter seu ponto em um local movimentado e nenhum quer se instalar em um local isolado. É por isso que, por exemplo, a rua 25 de março em São Paulo tem o metro quadrado comercial mais caro do Brasil, pois dezenas de milhares de compradores passam diariamente por este local. Da mesma forma que os lojistas disputam os pontos comerciais da região, todo camelô gostaria de montar sua barraca na 25 de março. Até os próprios lojistas gostariam de ter mais um ponto de venda adicional na calçada. Na ausência de direitos de propriedade bem definidos nas ruas, a disputa por locais movimentados gera conflitos tanto entre camelôs e proprietários como entre os próprios camelôs, dando margem para o surgimento de máfias de camelôs,[2] que por vezes dominam violentamente estes locais.[3]

Obviamente que quem está pagando R$100.000 por mês de aluguel de um espaço de 15 metros quadrados na 25 de março não quer que um bando de camelôs entupa as calçadas locais obstruindo a passagem de seus clientes, dificultando que eles cheguem em sua loja. Estes locatários ficam mais do que felizes com a ação da polícia contra camelôs, e todo libertário deveria ficar feliz também, já que a polícia estatal está deste modo agindo em defesa da propriedade privada dos proprietários locais – e dos compradores que querem chegar nas lojas. Não obstante, a configuração do espaço da rua 25 de março e ruas próximas permite uma certa quantidade de barracas nas calçadas. A prefeitura organizou e cadastrou essas barracas, desempenhando uma função que provavelmente seria desempenhada pelos donos se a ruas fossem privadas (da mesma maneira que os shopping centers alugam espaços de quiosques em suas ‘ruas’). Esses camelôs ‘legalizados’ também ficam muito felizes com a ação da polícia retirando outros camelôs ‘ilegais’, que passariam a tornar a presença de camelôs em geral um incômodo para todos.[4]

Outro exemplo um pouco menos complicado que as ruas públicas é o metrô, que também é público no sentido de “pertencer” ao Estado, mas não no sentido de ser uma propriedade que deva necessariamente ser coletiva e servir de acesso para outras propriedades, como as ruas. O metrô poderia – e deveria – ser totalmente privatizado e seus novos donos poderiam limitar o acesso da forma que quisessem. Mas o fato relevante para nossos propósitos aqui é que as estações e trens de metrô são geralmente locais de altíssimo movimento. Novamente, qualquer comerciante gostaria de vender produtos como doces, salgados, brinquedos, acessórios para celulares ou água no metrô. Se fosse permitido, os camelôs e vendedores ambulantes iriam simplesmente dominar os espaços do metrô de tal maneira que a circulação dos passageiros seria dificultada ou se tornaria inviável. E não importa se o ‘dono’ atual do metro é o governo ou uma empresa privada, o combate das forças de segurança contra os vendedores é fundamental. Algum comércio no metrô também é permitido, mas assim como os camelôs legalizados na 25 de março, ele é controlado através do aluguel de espaços pré-determinados, pensados para não atrapalhar o movimento dos passageiros, que é a função primordial e razão de ser do metrô.

Conclusão

Muitas pessoas costumam olhar para o camelô com um olhar de compadecimento por um desempregado que não teria outra alternativa a não ser vender mercadorias na rua para que a família não passe fome ou seja despejada. Esta narrativa envolve até o camelô mais famoso do Brasil, Silvio Santos, que seria de origem pobre e se tornou camelô para ajudar a família que passava necessidades.[5] A partir dessa visão, consideram uma enorme e revoltante injustiça qualquer ação contra a autonomia do camelô. Tomar a sua mercadoria então é considerado um crime hediondo praticado pelas forças policiais. Mas não é bem assim. Ser camelô é um trabalho como outro qualquer e pode ser bem rentável. Pode ser um trabalho muito mais leve do que muitos outros também. Por isso, mesmo sabendo dos riscos de perder toda sua mercadoria, camelôs seguem atuando em locais onde o rapa passa ao invés de locais onde não há fiscalização, mas que eles também não vendem quase nada.

É verdade que nesse ovo mexido em que vivemos também ocorrem realmente muitas injustiças revoltantes da polícia contra camelôs que atuam em locais que nitidamente não atrapalham nada nem ninguém. O comércio de rua é uma atividade milenar. Em cidades que tem séculos de existência, essa atividade esteve presente em todos esses séculos. No Brasil essa atividade esteve presente desde os tempos coloniais, com as ruas das cidades repletas de vendedores ambulantes. Muitos escravos trabalhavam como camelôs e conseguiram comprar sua alforria com o dinheiro extra oriundo desta atividade. Vendedores ambulantes – que muitas vezes são olhados com desprezo por autoridades ou planejadores urbanos – podem ser mais tradicionais em certos locais do que o comércio regularizado de lojistas. Já em outros locais, a tradição é não haver camelôs. E os motivos que donos legítimos usurpados podem ter para proibir a presença de camelôs são muitos, desde funcionais até estéticos.

Portanto, na questão dos camelôs, o libertário deve sempre considerar caso por caso, procurando focar na vontade dos legítimos donos das ruas e não nos desejos dos camelôs ou das autoridades públicas. Ao contrário do que muitos assumem prima facie, a repressão contra vendedores de ruas pode ser legítima. A única vez que Jesus usou violência física foi para expulsar camelôs do Templo de Jerusalém. E Ele fez isso reivindicando direitos de propriedade legítimos: o templo não apenas foi construído para outro propósito, como foi construído para ser de Deus, ou seja, Dele.

 

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Notas

[1] Logicamente que este algo deve ser propriedade legítima, ou seja, exclui bens roubados. E outro excludente pode ser materiais perigosos, pois sua comercialização pode configurar uma ameaça clara e direta a vida e propriedade vizinha de terceiros e alguma condição especial de segurança pode ser exigida.

[2] É natural que ocorra o surgimento de máfias nestas situações de ausência de definição e proteção de direitos de propriedade, e elas têm surgido por toda a história em inúmeros locais. Para exemplificar, posso citar uma máfia que está sendo combatida pela polícia enquanto escrevo este artigo que obtém através de extorsão mais de R$750 milhões por ano. Ver “Terra de alguém: as milícias que atuam no Brás e loteiam espaços na rua“.

[3] Da mesma forma, imagine se os imóveis da 25 de março não fossem propriedade privada e ficassem diariamente à disposição do primeiro que chegasse. A região seria palco constante de violentas guerras. Ou seja, direitos de propriedade são necessários em toda parte. Sobre a instituição da apropriação original e da propriedade privada como única forma de evitar conflitos, veja Hans-Hermann Hoppe, A ética e a economia da propriedade privada.

[4] Enquanto muitas vezes é difícil saber quem são os legítimos donos de uma propriedade coletiva de ruas usurpada pelo Estado, outras vezes é muito fácil reconhecer quem não são os donos. Em São Paulo, muitos locais de alto movimento foram tomados por camelôs imigrantes recém chegados da África. Este mesmo problema ocorre em muitas cidades da Europa, que têm seus principais pontos turísticos entupidos por estes imigrantes africanos, como as cercanias da Torre Eifel e do Duomo de Florença.

[5] Existe o mito de que Silvio Santos era pobre e começou a vida como camelô, mas isto faz parte da lenda criada por Senor Abravanel para seu personagem popular Silvio Santos. Ele não nasceu o bilionário que é hoje, mas também não era de família pobre e seu período de camelô foi uma forma de ele obter uma renda própria durante sua adolescência, dos 14 aos 18 anos. Senor vem de uma das famílias judaicas mais tradicionais e bem sucedidas da história. A ascendência da família Abravanel é traçada até o próprio Rei Davi e antepassados diretos de Senor incluem gerações de ricos financistas que ocuparam altos cargos nos reinos europeus e fizeram fortunas, sendo que um deles, Don Issac Abravanel, chegou a patrocinar a viagem do descobrimento da América de Colombo de 1492. O nome “Senor” é uma abrasileiração de “Don”, que significa senhor, que o pai de Silvio Santos fez para batizá-lo em homenagem ao antepassado Don Issac. Sobre a construção do mito Silvio Santos veja Mauricio Stycer, Topa tudo por dinheiro: as Muitas Faces do Empresário Silvio Santos, Editora Todavia, 2018. Sobre a história da família Abravanel veja Alberto Dines, O baú de Abravanel: uma crônica de sete séculos até Silvio Santos, Companhia das Letras, 1990.

2 COMENTÁRIOS

  1. Fora os camelôs, também há a existência das chamadas “Cracolândias”, ruas dominadas por usuários de drogas e traficantes, e os políciais não apenas fracassam em solucionar o problema, como também ajudam á espalhar todos esses usuários por meio de suas intervenções e operações, criando novas Cracolândias que estão se tornando cada vez maiores, e o pior é que nada disso é novo: Isso já existe desde 2012, e às intervenções recentes da polícia de São Paulo só está piorando mais a situação em geral.

    Isso é apenas mais uma das provas claras de que uma força de segurança isolada e extremamente limitada, bancada não pelos consumidores, mas pelo Estado, ao ponto de não possuir concorrência que afete negativamente seus negócios, não é capaz de manter a segurança e a ordem de forma apropriada para os supostos “consumidores”, que são os pagadores de impostos.

    E como ponto final, toda essa balbúrdia em relação às drogas sendo dominadas por organizações criminosas só existe porque às mesmas são proibidas de ser produzidas legalmente para os consumidores, o que eleva á lucratividade para quem está disposto á vende-la ilegalmente, que são às organizações criminosas fortemente armadas.

  2. Excelete artigo!
    O Murray fucking Rothbard dizia que a máfia estatal se coloca em uma situação contraditória, na ausência de uma propriedade privada das ruas, que no caso, foram roubadas pelo estado. Ao mesmo tempo em que eles tem que cumprir o direito de ir e ir (o que é todavia uma falácia já que esses caras não garantem nenhuma segurança), não pode proibir o direito de manifestação, caso as pessoas resolvam se aglomerar as ruas. O que fazer? Sem propriede privada, a questão acaba sendo a vontade dos burocratas, que ás vezes retiram os camelôs outras não…

    O Walter Block (eu conheci pessoalmente em 1992 eu acho, em uma Feira do Livro. Eu tenho uma edição do “Defendendo o indefensável” desde essa época) tem razão. Pelo o que eu vejo por aí, até mesmo alguns libertários não conseguem entender em toda a sua extenção o que seria uma sociedade sem uma instituição que sobrevive do conflito e violência eu diria, não há séculos, mas há milênios…

    Esses aluguéis de R$100.000 por 15 etros quadrados é simplesmente a falência de uma sociedade de mercado, pois fica evidente que tal concentração é um sintoma profundo de uma distorção econômica. Eu sempre vou associar o capitalismo ao declínio sistemático dos preços de mercado, não o aumento. Eu fui uma vez com a minha filha “faria limer” na 25 de março e pelo o que eu vi no local, jamais poderia imaginar que um aluguel cujo valor é possível locar um prédio inteiro de quatro andares bem localizado aqui em Porto Alegre. Lamentável.

    Quando eu debato com algum estatista aloprado, eu uso o termo anarquia de propriedade privada, para deixar bem claro de onde vem a ética que eu defendo: sem estado e com as relações sociais – que tendem a ser justas, decididas por proprietários.

    Achei curiosa a informação sobre a origem do nome Abravanel… O SS seria o meu primeiro voto se o sistema não tivesse trancado a sua candidatura. Provavelmente ele ganhasse no primeiro turno. Se política é circo, então é circo.

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