A lenta agonia da história progressista, e a dissipação da promessa do futuro liberal

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Historiadores pré-modernos não acreditavam que a sociedade e política humanas obedecessem a alguma regra de progresso constante. As coisas aconteciam. Havia reis bons e ruins, estações de abundância e de fome. Haviam heresias, insurreições e heróis; os cronistas antigos nunca hesitavam em fazer julgamentos morais. Alguns podiam suspeitar que as coisas tinham piorado, ou que seus contemporâneos tinham esquecido as virtudes de outrora. Mas, via de regra, eles não tinham uma visão direcional da história. No Ocidente, a liturgia cristã encapsulava a sua concepção mais alta e formal do tempo humano. Tratava-se de um ciclo sazonal de dias dedicados a certos santos, pontuado pela comemoração da vida de Cristo na terra, e culminando com a Ressurreição na Páscoa. Repetia-se a cada ano.

Admita-se que esta é uma afirmação vaga e que deve ser qualificada. É verdade, por exemplo, que escritores cristãos tinham algumas concepções teleológicas na esfera religiosa. As nações boas e fiéis triunfariam; derrotas militares representavam a justa punição pelo pecado. O cristianismo triunfaria e os pagãos seriam batizados. Este, no entanto, era um entendimento muito limitado de desenvolvimento histórico, comparado com o nosso. Não se esperava que as nações cristãs avançassem em direção a estágios cada vez mais elevados de virtude e devoção. A sociedade humana continuava sendo fundamentalmente deste mundo, e humanos eram falhos e pecaminosos independentemente de sua fé. O momento futuro de transcendência, o Segundo Advento, chegaria de fora, e não através de algum feito puramente humano.

Desde o século XVIII, os ocidentais abandonaram essa visão antiga, e começaram a suspeitar de que a história da humanidade era uma de progresso. Esta nova visão refletia muitas forças entrelaçadas, entre elas o passo acelerado de industrialização e desenvolvimento tecnológico; a ascensão da política liberal; e, associada a esta última, a compreensão histórica progressista de pensadores como Hegel. O fator decisivo, no entanto, foi a secularização universal e penetrante que acompanhou o Iluminismo. À medida que a religião recuava, os ocidentais não abandonaram suas visões escatológicas, mas apenas mudaram elas de lugar. O “reinado” que (nas palavras do Credo de Niceia) “não terá fim” seria realizado, agora, não pelo futuro retorno de Jesus Cristo, mas sim pela perfeição da sociedade humana. Uma nova organização direcional se impôs sobre a história, inspirando na esfera política aquilo que Rolf Peter Sieferle chamou de um movimento em direção à “Realtranszendenz”, ou “transcendência na realidade”[1].

Tanto comunistas como fascistas desenvolveram programas de Realtranszendenz, depositando suas esperanças em esquemas econômicos redistributivos e na delimitação de identidades étnicas nacionais para atingir o estado futuro desejado. Os marxistas sonhavam com um futuro comunista utópico; os nacional-socialistas prometiam o reino milenarista do “Reich de mil anos”. Nenhum deles se tornou realidade; hoje, apenas a esperança da transcendência liberal sobrevive. No momento em que escrevo isto, a visão padrão é de que as coisas estão sempre ficando melhores, que a sociedade está sempre ficando mais livre, e que os governos humanos tendem sempre a um nível maior de sabedoria, justiça e representatividade. Ao final da Guerra Fria, muitos liberais ocidentais se perguntaram se havíamos finalmente atingido o nosso momento de transcendência. Em um famoso artigo de 1989, o turbo-liberal progressista Fracis Fukuyama propôs que o Ocidente havia alcançado o seu próprio “Reich de mil anos”[2]:

“O que podemos estar testemunhando é não apenas o fim da Guerra Fria, ou a passagem de um período específico da história pós-guerra, mas o fim da história como tal: ou seja, o ponto final da evolução ideológica da humanidade, e a universalização da democracia liberal ocidental como a forma final de governo humano.”

O chamado “momento unipolar” de hegemonia liberal progressista americana durou uma geração inteira, até que o desenvolvimento econômico chinês levou a República Popular a uma paridade aproximada com os Estados Unidos nos anos anteriores a 2020. Durante toda essa geração, a história realmente parecia ter chegado ao fim.

Nesta feliz era, no entanto, nem tudo tinha o aroma da utopia prometida. Um estranho grupo de demônios surgiu por debaixo das tábuas do soalho. O feminismo dogmático de terceira onda, bizarras teorias raciais anti-europeias e ideologias de gênero, uma nova coleção de preocupações climáticas apocalípticas, e uma série de guerras para espalhar a democracia vieram a caracterizar a nova e irrestrita visão liberal. Estas eram reflexões da despreocupação resultante da prosperidade, da ausência de ameaças externas, e do desejo do liberalismo de se auto aperfeiçoar. A utopia é uma senhora severa.

Hoje, ninguém mais acredita que chegamos ao final da história. A tese de Fukuyama é motivo de vergonha. À medida que a unipolaridade chegava ao fim, os analistas ingênuos da Freedom House notaram (com base em uma variedade de indicadores discutíveis e altamente ideológicos) que a democracia liberal parecia estar em declínio, após atingir um pico duvidoso por volta do ano 2006. A China, e até certo ponto a Rússia, surgiram como rivais páreos à hegemonia liberal americana, e nós parecemos estar nos estágios iniciais de uma nova Guerra Fria. A história não acabou.

Os demônios culturais da Grande Pausa Histórica têm uma aparência um tanto quanto diferente sob a luz do crepúsculo liberal. Eles não mais empurram a democracia liberal em direção a uma perfeição futura, mas parecem determinados a punir seus fracassos e, em última instância, a desmontá-la. A promessa liberal progressista da harmonia étnica e racial parece mais remota do que nunca em luz da teoria crítica da raça e sua militância. Ideologias sexuais que demandam a mutilação de crianças não parecem ser um caminho para igualdade e compreensão mútua, mas sim um caso sério de degeneração cultural. E as emissões de CO2 continuam a crescer a despeito das somas ruinosas que continuam a ser investidas em energia limpa. A doutrina prevalente afirma que processos industriais, dos quais o liberalismo é um efeito de segunda ordem, arriscam destruir toda a vida na Terra. Isso não tem muita cara de progresso.

Nós não vivemos mais na utopia liberal transcendente, e a racionalização de que nós ainda precisamos alcançar essa utopia, através de esforço e dedicação ainda maiores, perde mais força a cada dia. Não só a história não acabou, como o futuro liberal progressista está morrendo, e com ele a narrativa ideológica de todo o nosso mundo político.

A espinha dorsal do progressismo liberal sempre foi o progresso tecnológico consistente de que nós humanos temos gozado desde o advento da industrialização. Assim como o futuro se tornou o foco das aspirações ideológicas transcendentais, também se tornou um lugar conveniente para empilhar soluções para todo tipo de contradições e realidades desagradáveis. Se a energia solar é intermitente, ora, isso não é motivo para desqualifica-la; nós só precisamos esperar para que a tecnologia de armazenamento melhore! Com as soluções tecnocráticas adequadas (que chegarão a qualquer momento!), podemos acabar com a desigualdade, abrigar os sem-teto, alimentar os famintos e acabar com os vírus. Estas histórias felizes sobre o amanhã ficam cada vez mais difíceis de se vender, especialmente à medida que o progresso tecnológico começa a engasgar. Para ter uma ideia do estrago que isso já causou ao edifício do liberalismo tecnocrático progressista, considere o debate público em torno do ChatGPT e da inteligência artificial. Estes raros avanços inspiraram muito menos otimismo do que teria sido o caso há duas ou três gerações; as preocupações distópicas foram tão altas quanto o entusiasmo, se não mais. Um pessimismo tecnológico generalizado tem crescido por um bom tempo; desde a morte da unipolaridade, ouvimos mais e mais sobre as desvantagens de inovações recentes, incluindo as externalidades negativas da mídia social, o advento da espionagem em massa, e o abuso e dependência de produtos farmacêuticos modernos.

A situação hoje é diferente da era de ouro da Realtranszendenz: todos os rivais ideológicos do liberalismo progressista foram eliminados. Não existe uma ideologia alternativa para tirar vantagem da visão liberal progressista moribunda, e o establishment ocidental permanece amarrado a um sistema de crenças que a cada dia perde mais credibilidade entre a população. Eles precisam de uma história para explicar o que deu errado, e a história é sobre os elementos iliberais da sociedade, que seriam responsáveis pelos seus fracassos. Para tornar essa história crível, eles se esforçam para ressuscitar os cadáveres dos rivais históricos do liberalismo – particularmente o fascismo.

A ênfase liberal na individualidade, direitos humanos, tolerância e autodeterminação sempre tornou o liberalismo especialmente vulnerável à dissidência, que é o motivo de a prosperidade ser uma precondição tão importante para a estabilidade de sistemas liberais democráticos.

Enquanto os dissidentes puderem ser apaziguados com pão e circo, o liberalismo não precisa confrontar suas contradições internas. As nações ocidentais ainda são muito ricas, mas elas estão empobrecendo, e a capacidade paliativa futura do Estado está em dúvida, mais do que jamais esteve. A solução será a exclusão e a repressão. Afirmações de que Trump venceu a eleição de 2016 devido a “interferência russa”, de que a Alternative für Deutschland é um partido de “simpatizantes russos”, e acusações similares revelam a forma que esta polêmica excludente tomará: dissidentes internos iliberais serão colocados no mesmo saco que inimigos externos iliberais. O risco é de uma espiral de autonegação, em que Estados ostensivamente liberais empregam métodos cada vez mais iliberais para marginalizar os sabotadores iliberais que estão arruinando a utopia liberal progressista. Mesmo que esses ataques consigam estabilizar por um tempo o establishment político, eles desacreditarão cada vez mais profundamente as ideologias que supostamente estão sendo defendidas.

Que nem tudo estava certo com o liberalismo é algo que muitos têm suspeitado por um longo tempo. A arte e arquitetura do mundo liberal pós-guerra, em particular, sempre foram uma mancha de vergonha sobre as alegações liberais quanto ao atraso do passado e à superioridade do futuro progressista. Por que é que imóveis pré-guerra comandam um prêmio tão alto, e as realizações dos grandes compositores clássicos nunca foram superadas, e a literatura do período liberal recente degringolou para uma gororoba emotiva de autoajuda? Também é notável que o liberalismo, apesar de estar firmemente no comando ideológico por gerações, nunca conseguiu desalojar a principal realização do nacionalismo: o Estado-nação. À medida que narrativas históricas liberais morrem, a reputação do passado crescerá ainda mais.

Antes do século XVIII, a política humana não se fundava em sistemas ideológicos elaborados. Os governantes de Estados, reinos e impérios governavam pragmaticamente, com vista a objetivos concretos. Este é o estado normal da organização política humana, que os efeitos sociais da industrialização e do progresso tecnológico perturbaram por vários séculos. Estes desenvolvimentos e suas ramificações políticas permanecerão conosco indefinidamente, mas a Realtranszendenz do comunismo, fascismo e liberalismo não continuará, pois este fenômeno foi um produto não dos avanços em si, mas de sua trajetória ascendente. É difícil prever qual será o tipo de política que veremos em nossa nova era de estagnação, mas visões utópicas não farão parte dela.

 

 

 

Artigo original aqui

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Notas

[1] Sieferle, Epochenwechsel: Die Deutschen an der Schwelle zum 21. Jahrhundert (1994).

[2] Francis Fukuyama, “The End of History?”, citação da sua página na Wikipedia. A retórica nacional-socialista sobre o “Reich de mil anos”, é claro, não sugeria que o novo império estabelecido por Hitler duraria literalmente mil anos, mas que marcaria um estágio histórico final, não tão diferente da concepção de Fukuyama.

1 COMENTÁRIO

  1. De fato, o liberalismo vêm entrando em declínio de idéias desde à segunda guerra mundial, época aonde o liberalismo clássico começou à ser ignorado cada vez mais em meio à popularização do comunismo, do nacional-socialismo e das teorias de “demanda agregada” entre os acadêmicos. Como ideologia popular, entrou em seu ápice nos anos 90, época aonde à maior parte da população estava iludida com os avanços tecnológicos, e o colapso da União Soviética também tinha elevado muitos animos, mas às diversas tentativas dos progressistas de criar uma sistematização da vitimização e expansão de poder condernado já vinha sendo elaborado há muitos séculos, atingindo seu ápice com o abandono do padrão-ouro e com à criação de thinks-tanks progressistas de todos os tipos, com objetivos demasiadamente contra-culturais inspirados nos ensinamentos da escola de Frankfurt. O fato de que quase todas às nações do mundo hoje em dia possuem praticamente às mesmas respostas para os mesmos problemas mostra que o padrão de pensamentos das pessoas se encontra demasiadamente distorcido, apoiado às políticas globalistas de coordenação global, e tal como vimos durante à “pandemia”, poucos políticos ousaram ir contra à elite, e aqueles que foram contra o senso comum da época foram massacrados pela opinião pública internacional e rebaixados e neutralizados por seus próprios colegas políticos e juízes.

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